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Peça premiada, “Monga” resgata a história da ‘Mulher-macaco’

Em Monga, a atriz e dramaturga Jéssica Teixeira usa a biografia de Júlia Pastrana para refletir sobre a discriminação de corpos dissidentes

Por Humberto Maruchel, de Curitiba
Atualizado em 10 abr 2025, 09h58 - Publicado em 1 abr 2025, 07h00
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 (Lina Sumizono/divulgação)
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Das diversas funções que o teatro, com sua poesia, pode desempenhar, uma das mais importantes é o resgate da memória de histórias de pessoas cujas trajetórias foram apagadas ou, pior, corrompidas. Um dos maiores exemplos disso é a artista circense mexicana Júlia Pastrana (1834 – 1860), que também foi uma talentosa cantora, além de falar várias línguas.

No entanto, ela ficou eternizada na história como “Monga, a mulher macaca” e até hoje inspira um dos números circenses mais apresentados no último século. Júlia vivia com hipertricose, uma condição médica que provoca o crescimento excessivo de pelos por todo o corpo, e hiperplasia gengival, que engrossava seus lábios e gengivas.

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Cena da peça “Monga”, de Jessica Teixeira (Lina Sumizono/divulgação)

A curta biografia de Júlia, que morreu com apenas 26 anos, é recuperada no espetáculo Monga, de Jéssica Teixeira, que foi apresentado na primeira semana do Festival de Teatro de Curitiba, onde lotou a charmosa arena do Teatro Paiol. A obra é uma continuidade da pesquisa que a artista iniciou no solo “E.L.A” (2019).

Na nova peça, que foi contemplada com o Prêmio Shell de Melhor Direção neste ano, Teixeira assume as funções de atriz, dramaturga e diretora, mesclando reflexões sobre sua intimidade e a experiência de ser PCD com a história da personagem Júlia.

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(Lina Sumizono/divulgação)
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Nua em cena, durante todo o espetáculo, ela ressignifica uma condição que a torna alvo de discriminação, como uma maneira de afirmar que aquele corpo tem suas diferenças, mas não é exótico e deve ser dotado da autonomia de contar sua própria história da forma que quiser. Algo que Júlia nunca teve a possibilidade.

A narrativa não segue uma trama linear. Jéssica canta em cena, interage com o público sobre seus medos e suas intimidades, e compartilha ideias, medos, sonhos e uma visão sobre a diversidade humana. E confronta a audiência sobre suas próprias fragilidades e dissimulações. 

“Ela era intérprete, cantora, bailarina, poliglota. Imagina só uma mulher ser muito brilhante naquela época. E, apesar disso, sofreu muito abuso. Foi criada dentro de uma jaula e não tratada como ser humano, mas como um animal doméstico, ainda que fosse uma artista exímia. Isso tudo porque ela nasceu com uma doença rara.”

declara Teixeira em coletiva de imprensa da qual Bravo! participou.
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A atriz explica que, para contar essa história, foi importante investigar o gênero do terror psicológico no cinema para adaptá-lo para o teatro. “Eu olho para essa história e, em certo ponto, me perde a graça. Aí, começo a investigar um gênero que é muito novo para mim: o terror psicológico no teatro. E, ao refletir, percebo como esse paralelo não parou no século XIX. Como a deficiência e a pele ainda são pautas identitárias que, muitas vezes, chegam à frente de uma construção de linguagem, de uma pesquisa, de uma criação ou de uma produção. ‘Será que estão me contratando porque sou uma artista massa, ou porque sou PCD e querem suprir uma cota?’”

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(Lina Sumizono/divulgação)

Apesar de utilizar a figura de Júlia como uma metáfora para o preconceito e desumanização de corpos diferentes, Julia não faz qualquer tipo de reprodução do número da Monga, como sua própria maneira de colocar um ponto final nessa violência. “Nela, eu me reconhecia estranha. Eu aceitei que eu era estranha. O mundo me fez acreditar que eu era estranha, e eu tinha uma pergunta muito crucial: quem aqui nunca se olhou no espelho e se sentiu estranho no corpo que tem? Será que estou sozinha nessa? Não. Então, quem me fez acreditar de uma forma tão violenta que eu era estranha foi a deficiência, o meu jeito de falar. Eu aceitei isso e dei a virada com essa pergunta de uma forma muito sutil e muito generosa.”

Vale lembrar que foi apenas em 2013 que Júlia teve o direito a alguma dignidade. Ela morreu alguns dias após dar à luz seu filho, que teve com o empresário do circo, Theodore Lent. Muitos historiadores acreditam que ele tenha se casado com a atriz como forma de controlar os ganhos sobre a sua imagem.

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A criança, que nasceu com a mesma condição da mãe, morreu poucas horas depois de nascer. Theodore, então, os embalsamou e os manteve como objetos de exibição no circo, viajando por todo o mundo. Anos mais tarde, os corpos seriam doados para o Instituto Forense de Oslo, na Noruega. 

Em meados dos anos 2000, a artista Laura Anderson Barbata, de Nova York, iniciou uma campanha para que o instituto norueguês devolvesse o corpo de Júlia ao México para que ela pudesse finalmente ser enterrada. Isso aconteceu em 2013, após 10 anos de luta. Júlia foi finalmente enterrada em Sinaloa de Leyva. O corpo de seu filho, no entanto, se perdeu durante a Segunda Guerra Mundial, quando os corpos foram roubados.

 

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Cena da peça “Monga”, de Jessica Teixeira (Lina Sumizono/divulgação)
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“Eu não entro na jaula, eu não me coloco nesse lugar que querem me colocar. Na verdade, coloco essa jaula na cabeça de cada um. A prisão do pensamento já está lá, sim. Na lida com corpos como o meu, o de Júlia, ou qualquer outro que apresente diferenças mais gritantes, vejo que essa é a diferença”, afirma Jéssica. “A cruel realidade é que o corpo de Júlia continuou sendo exibido. Não preciso reproduzir tudo isso, eu simplesmente vou lidar com a cabeça de uma sociedade completamente enclausurada e dizer: isso não é meu, lidem com isso, recebam e vamos criar perspectivas de melhores modos de existir nesse mundo que está difícil para todos.”,

conclui. 

Após o Festival de Curitiba, o espetáculo irá percorrer alguns países da Europa, antes de iniciar uma nova temporada no Brasil.

Bravo! está em Curitiba a convite do Festival de Teatro 

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