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Em ‘Prima Facie’, Débora Falabella entrega sua melhor performance

Peça escrita por Suzie Miller ganha adaptação dirigida por Yara de Novaes e faz sucesso no Teatro Adolpho Bloch do Rio de Janeiro

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 28 Maio 2024, 16h33 - Publicado em 15 Maio 2024, 10h00

Foi uma daquelas coincidências inexplicáveis. Débora Falabella estava procurando uma oportunidade para trabalhar novamente com a atriz e diretora Yara de Novaes. Era um desejo voltar a ser dirigida por Yara, com quem já havia colaborado diversas vezes no Grupo 3. O momento parecia ideal para buscar um projeto diferente de tudo que já tinha feito. Surgiu então a oportunidade de trabalhar com um texto contemporâneo, um monólogo, escrito pela renomada dramaturga australiana Suzie Miller, intitulado Prima Facie.

Desde sua estreia em 2019, o texto causou grande comoção nos teatros, destacando-se pela precisão com que aborda o contrassenso jurídico e a dissonância entre o Direito e a justiça. Suzie Miller apresenta o drama através da perspectiva de Tessa Ensler, uma jovem advogada brilhante que vive o momento mais alto de sua carreira.

De origem simples, Tessa ocupou um espaço que historicamente foi ocupado por gerações de famílias poderosas. Isso, no entanto, não a impede de ser seduzida por aquele sistema. E, mais do que isso, acreditar e defendê-lo com unhas e dentes. A lógica é essa: o Direito é basilar para uma democracia saudável e ele deve buscar a verdade acima de tudo. Dentro das dinâmicas de um processo, isso significa que a dúvida não pode se sobrepor à presunção de inocência. A liberdade é o bem mais valioso. E o advogado é um ator nesse jogo. Nele, ele não quer e não deve se comportar como Deus.

Mas então, Suzie desafia toda essa ideologia com um contexto: o crime de estupro. Ao longo de sua curta carreira, Tessa se destacou por conseguir reverter condenações em casos de violência sexual. Ela se vê como uma operadora que não pode escolher o caso que cai em suas mãos. Seria como um taxista em uma fila de aeroporto, ela crê, que precisa aceitar a próxima corrida que ele pega, por mais distante que possa ser. Cabe a ela buscar as brechas que coloquem em dúvida a acusação. Se uma possível vítima diz ter sofrido um estupro, ela (Tessa) precisa testar de todas as formas a verdade daquela afirmação.

Até que nossa protagonista leva um tropeço do destino e se torna vítima de um estupro por um colega de escritório. De imediato, ela perde toda a sua armadura e fica em dúvida, até mesmo, se deve prosseguir com a denúncia. E coloca em cheque todas as alegações que poderiam ir contra ela: lutou contra o agressor? Deixou claro que não era consensual?

A expressão em latim “Prima Facie”, que dá título à peça, refere-se a um evento considerado como verdadeiro com base apenas em uma primeira impressão.

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Poderíamos formular a estreia de “Prima Facie” da seguinte maneira: uma grande atriz encontra um ótimo texto. E tudo parecia indicar que era Débora quem deveria encarná-lo. Decidiu ir atrás dos direitos para traduzir e adaptar “Prima Facie”, mas soube que eles já haviam sido comprados por outros produtores brasileiros.

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Débora Falabella em cena na peça “Prima Facie”. Foto: Annelize Tozetto (Prima Facie/divulgação)

A burocracia para adquirir a licença de um texto estrangeiro envolve um acordo de exclusividade; não pode haver mais de uma montagem do texto ao mesmo tempo naquele país, ou no mesmo idioma. Restaria abandonar a ideia e procurar outra peça. Mas logo aconteceu uma reviravolta, mostrando que o universo estava alinhado com aquela vontade. Pouco depois de uma semana, Débora recebeu o telefonema do produtor Luciano Borges, que estava com um texto em mãos e tinha pensado nela. Era “Prima Facie”. A atriz tinha uma condição; que Yara a dirigisse.

Em cartaz no Teatro Adolpho Bloch, no Rio de Janeiro, Débora tem arrancado suspiros em cena, com uma encenação que talvez seja sua melhor performance na carreira. Em pouco mais de uma hora, ela vive todas as emoções possíveis; do êxtase ao desamparo, ao retratar uma mulher que luta para se reestruturar após ser vítima de um dos crimes mais bárbaros da humanidade.

Débora e Yara conversaram com a Bravo! poucas horas antes da apresentação. Além da potência do texto, elas declararam amor mútuo numa parceria artística que dura mais de 20 anos.

Bravo: Gostaria de começar perguntando como o texto chegou até vocês e quem teve a ideia inicial de montar essa peça?
Débora Falabella: Estávamos procurando por um texto há cerca de um ano. Eu realmente queria encontrar algo para a Yara me dirigir. Já fazia muito tempo desde a última vez que ela me dirigiu. O Grupo 3 está se encaminhando para sua última peça em agosto, cada um seguindo seu próprio caminho. A Yara já não estava mais conosco. Fazia muito tempo desde a última vez que ela me dirigiu, e eu realmente sentia vontade de trabalhar com ela novamente. Temos uma longa história juntas.

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Achava que um monólogo seria um pouco desanimador, ter que ficar sozinha, viajar e não ter alguém no camarim para conversar. Lembro que conversávamos sobre isso. Mas era algo que eu nunca havia feito antes. Pensei que agora que estava saindo do grupo, saindo da TV, de um lugar onde trabalhei por anos, talvez fosse o momento. Procuramos por textos, consideramos adaptações, especialmente de autoras contemporâneas. Porém, esse é um processo desafiador, pois teríamos que começar do zero na sala de ensaios. Foi quando me lembrei desse texto. Na época, estávamos interessados ​​nele, mas ele acabara de ser vendido. Em menos de 15 dias, o Luciano [Borges] me ligou e disse: “Tenho um texto aqui e gostaria que você fizesse”. E era “Prima Facie”. Ele já tinha uma visão e uma direção incrível em mente, e eu disse que queria chamar a Yara. Acabei me envolvendo na produção e nos juntamos.

Yara de Novaes: Foi incrível, quase mágico, quase algo providencial.

Bravo: O direito da peça já havia sido vendido aqui no Brasil?
Débora: O texto tinha acabado de ser vendido para esses produtores, que me chamaram. Naquele momento, pensei que eles já soubessem da minha vontade, que alguém tivesse comentado que eu estava interessada, mas eles não sabiam.

Yara: Parece quase como se fosse destinado. Quando vemos a Débora em cena, ela está voando, em uma conexão tão orgânica, tão intrínseca ao tema, à personagem. Era dela, não pertencia a mais ninguém. Não consigo imaginar outra pessoa interpretando.

Débora: E eu só conseguiria fazer isso com a Yara. Não havia outra opção. Quando li o texto, pensei: “Estou ferrada, não sei se consigo”. É um texto que vai para muitos lugares. Precisávamos encontrar uma abordagem direta, sem cair em excesso de sofrimento. Como atriz, não poderia ficar tão abalada.

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Yara: Com tudo o que o texto aborda, é importante se dedicar a ele, respeitá-lo. Mas, ao mesmo tempo, é crucial libertar-se dele para criar algo próprio, com nossa perspectiva.

Bravo: Débora, o que a fez pensar na Yara para dirigir?
Débora: Não havia outra opção. Para um monólogo, não é algo fácil. Hoje, admiro muito quem está em cena sozinho. Você precisa estar bem preparado e também sentir liberdade. A Yara sempre dizia: “Isso precisa ser seu”. Se algo não parecesse certo, não deveríamos fazer. Entramos na sala de ensaio, eu e a Yara, com uma química já estabelecida, o que nos poupou tempo de adaptação.

Yara: O “Prima Facie” conta com uma equipe que trabalha junta há muito tempo. Na primeira vez que dirigi a Débora, já éramos uma equipe consolidada. Agora, mesmo com os cabelos grisalhos, continuamos juntas. Trabalhamos juntos desde 1996. Trabalhei com o pai da Débora, o Rogério, e fui professora da Cynthia (irmã de Débora).

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(Jorge Bispo/divulgação)

Bravo: Como vocês se conheceram?
Débora: Em BH. A Yara era minha musa. A primeira vez que me impactou de verdade foi quando vi “Mão na Luva”, com a Yara e Luiz Arthur, que depois fez “Noites Brancas” comigo.

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Yara: Já são muitos anos juntas. Tivemos uma companhia, o Grupo 3, por 15 anos, e fizemos muitas coisas incríveis. Foi quando nossa parceria se tornou um grande projeto. Depois, deixei de dirigir e voltei para o palco. Temos uma química incrível, consigo até imaginar ela me dirigindo um dia. Hoje em dia, essas fronteiras estão muito tênues. A Débora tem habilidades para dirigir, como já fez. Sei que ela seria muito carrasca (risos).

Débora: Até parece (risos).

Yara: Com certeza, porque ela é disciplinada. E eu estou mais velha agora, mais relaxada.

Bravo: Vocês são muito diferentes?
Débora: Temos algo em comum quando se trata de trabalho, algo que não conseguimos abandonar. Até comentamos que precisamos dar uma pausa.

Yara: Aí paramos, e de repente uma liga para a outra com uma nova ideia.

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Débora: Já estamos em cartaz há duas semanas. E comentamos: “Vamos fazer um ensaio técnico direto?” Claro que faremos, sem dúvida.

Yara: Temos muita disciplina e vemos o teatro como uma necessidade.

Bravo: Yara, depois de tantos anos trabalhando com a Débora, você ainda se surpreende com ela em cena?
Yara: Muito. Já fazia muito tempo desde a última vez que a dirigi. Ela sempre foi uma ótima atriz, mas quando a dirigi pela primeira vez, ela era muito jovem. Naquela época, nossa relação era muito simbiótica. Agora, vejo uma atriz e diretora completamente integradas, mas com caminhos diferentes. Foi maravilhoso ver a Débora nesse sentido.

Há uma aquiescência técnica. É uma atriz de curvatura muito grande. Você percebe a técnica porque é afetado pelo trabalho, e depois reflete sobre o que aconteceu. Só alguém com muita técnica consegue fazer isso.

Débora: Quando fui dirigida pela Yara, como estava trabalhando com outros atores e não estava tão envolvida na produção. Desta vez, foi incrível vê-la dirigindo enquanto pensava em todos os aspectos, incluindo trilha sonora e cenário. Eu não conseguia enxergar o que ia virar. A Yara é genial. Foi muito legal vê-la desenvolvendo tudo isso.

Yara: Mas agora você tem uma visão mais ampla. Antes, você estava muito imersa.

Bravo: Qual foi a abordagem de vocês para entender o texto e como queriam montá-lo no palco?
Débora: Houve um momento muito sofrido. Por sermos mulheres, lidamos com temas muito pesados no texto. No início, foi quase um processo de purificação, uma catarse em cena, para depois conseguirmos transformar. O início foi importante para mim, pois me permitiu trilhar um caminho mais técnico e compreender como dar diferentes nuances ao texto, evitando ser totalmente dominada por ele.

Yara: E tem uma conexão universal com qualquer mulher.

Débora: É impossível não nos vermos ali.

Yara: Ela precisava fazer com que as palavras se tornassem corpo, sentimentos, gestos, tempo. Encontrar isso foi um processo. Lembro-me de alguns momentos em que ela chorava, e eu precisava me conter. Eu amo a Débora, é uma grande amiga. Tenho uma relação maternal com ela. Ela chorando, e eu ali. Não podia abraçá-la e confortá-la o tempo todo, pois precisava que ela se mantivesse firme. Mas houve um dia em que não aguentei e fui até ela. Há essa dualidade, mas precisamos manter uma certa distância.

Débora: Mas o ambiente era muito seguro, com todos.

Yara: Não poderíamos montar esse texto sem um envolvimento genuíno. Quando ela fecha os olhos e diz: “Eu vejo minha mãe, eu vejo a policial”. Quando traz as mulheres que vieram antes dela, quando a Débora está ali, incorporando essa personagem, ela precisa trazer tudo isso consigo. Ela precisa passar por essa dor, essa consciência como intérprete. A dor e a consciência são a mesma jornada que a personagem Tessa faz. O que você representa como artista ao dizer um texto assim, não pode simplesmente dizê-lo, precisa ser impulsionado por algo íntimo, de profunda compreensão. Ela só teve coragem de fazer isso porque estávamos em uma sala de ensaio extremamente confiável. Temos muita história juntas.

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A atriz Débora Falabella em cena na peça “Prima Facie”. Foto: Annelize Tozetto (Prima Facie/divulgação)

Bravo: Tem ficado mais fácil contar essa história ao longo do tempo?

Débora: Espero que sim. Estou me sentindo mais confortável, espero que cada vez mais.

Yara: Não, você já está voando, Débora.

Débora: Mas ainda tenho algumas inseguranças. Estou ali sozinha, sem ninguém para me salvar. Deixo meu texto no cenário. Se algo acontecer, tenho ele ali. Quanto mais eu conseguir me divertir em cena, melhor. Mas também há um cansaço físico e mental. É muito texto, e exige muito fisicamente. No início, achava que não conseguiria decorar.

Yara: Mas esse é um medo comum para atores e atrizes.

Débora: Está ficando mais fácil agora. Se eu cometer um erro, consigo retomar. Isso já aconteceu algumas vezes e é normal, é teatro.

Yara: Lembro da Andrea [Beltrão] contando sobre uma cena dela com a Marieta, em “As Centenárias”. Um dia, a Marieta esqueceu o texto, começou a repetir, e elas pararam para discutir: “Não, não é isso”. Então pegaram o texto e recomeçaram. E o público adorou aquilo.

Esse vai e vem da cena e da personagem talvez seja o mais interessante para o público. Eles precisam ver que aquela pessoa tem a habilidade de entrar e sair.

Bravo: Como tem sido o feedback do público?
Débora: Muitas pessoas vêm falar conosco. Muitas mulheres, muitos homens. Muitos advogados também têm vindo. Sinto que as pessoas são genuinamente impactadas. Sinto isso também durante a peça.

Yara: Vemos o público se divertindo com a personagem, vendo alguém tão integrado ao sistema, tão bonita, tão dançante. E quando o estupro acontece, há uma energia completamente diferente. São duas experiências distintas, dois atos. Um ato de poder, de assertividade, repleto de promessas. De repente, quando esse horror acontece, entramos em outro lugar com ela.

Bravo: Como foi o processo de colocar com cuidado esse momento do estupro em cena?
Yara: A linguagem teatral não é suficiente para isso. Precisávamos de outra abordagem. No caso dela, ela descreve o estupro. Fomos muito cuidadosas, exploramos diversas possibilidades. Chegamos à conclusão de que não podíamos simplesmente dramatizar o estupro, pois correríamos o risco de nos perdermos. Não poderíamos fazer uma encenação direta disso. Testamos algumas abordagens. Percebemos que precisávamos negar o espaço teatral e apresentar o depoimento de forma distanciada. Apenas depois, poderíamos intensificar.

A descrição não poderia ser dramatizada. Precisávamos apresentá-la de forma épica, narrativa, em outro tempo. Como se ela estivesse negando o teatro naquele momento. Ela nega a representação, a Débora retira completamente a representação dela e depois volta.

Débora: Ao mesmo tempo, é um dos momentos mais difíceis, em que me sinto mais vulnerável. Porque antes, me sinto um pouco protegida ao interpretar.

Yara: A cena do estupro é muito delicada. Desde a linguagem que não consegue capturar até o risco de fetichizar. Poderíamos começar a fetichizar o estupro sem perceber. Uma vez, em uma peça que fiz, eu era estuprada em cena. Em uma apresentação para alunos de Publicidade, quando o estupro aconteceu, alguns começaram a gritar como se fosse um rodeio. E quando o estupro se realizou, eles aplaudiram. Foi algo extremamente complicado. Talvez hoje não acontecesse. Havia um machismo ali, como se aquela possessão fosse algo aceitável. Então, ao descrever minuciosamente, temos que ter cuidado, sair do momento teatral e ir para outro lugar. O estupro é uma fantasia.

Bravo: Quais caminhos vocês acreditam que sejam possíveis para conscientizar e acabar com essa epidemia de violência sexual?
Débora: É uma forma de violência muito cruel, muitas vezes em um relacionamento afetivo, até mesmo dentro do casamento. Acho que é uma discussão muito importante para as mulheres e para os homens. Os homens precisam participar dessa discussão. Todos os homens têm o potencial de serem agressores.

Yara: E muitas vezes nem percebem. Quando dirigi “Teoria King Kong”, a equipe era composta apenas por mulheres. Na segunda vez, quis incluir homens. Lembro-me que quando lemos o texto para eles pela primeira vez, ficaram muito impactados. O texto tem revelações e, em muitos momentos, acredito que alguns homens se reconheceram como agressores. Porque é uma maneira diferente de abordar o debate. “Estávamos transando e ela não quis, então forcei.” Para eles, talvez isso não seja considerado estupro. E nós estamos dizendo que sim, e que isso pode até resultar em um processo judicial. Tessa só vai a tribunal porque ela pode. Ela vai sabendo que pode perder. E mesmo assim, sai do tribunal intacta, deslocando essas barreiras que parecem intransponíveis. Acho que esse texto ressoa muito com os homens. Se não houve consentimento, é estupro. Não importa se aconteceu em um relacionamento.

Débora: Há algo ainda maior que gostaríamos que acontecesse. Em outras produções, como na Inglaterra, tornou-se uma peça obrigatória para quem estava se formando como juízes. Esperamos que advogados e juízes venham assistir.

Yara: Acredito que é sempre importante tornar públicas as histórias das mulheres que decidem levar seus casos aos tribunais. Poucas mulheres denunciam. Quando isso acontece, esses casos se transformam em lei, como ocorreu com Maria da Penha e Mariana Ferrer. Você pode perder no tribunal, em um sistema que reconhece apenas a verdade masculina, onde o que a mulher diz não é levado em consideração, mas aquilo reverbera.

Prima Facie

Teatro Adolpho Bloch (Rua do Russel, 804)
Temporada: 02 de maio a 30 de Junho
De quinta a sábado, às 20h | Domingo, às 18h
Ingressos a R$ 150 e R$ 75 (meia)

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