A revolução e fúria de Teoria King Kong
Adaptação teatral de Yara de Novaes de “Teoria King Kong", livro da francesa Virginie Despentes, encerra temporada no Sesc Bom Retiro
A primeira vez que a atriz e diretora Yara de Novaes ouviu falar sobre o livro “Teoria King Kong” e a autora francesa Virginie Despentes foi através de sua amiga, a tradutora e atriz Márcia Bechara. Não se tratava de uma simples recomendação; Márcia traduziu o livro de Virginie para o português e pensou deveria haver uma adaptação da obra, que mistura autobiografia e excertos de filosofia, para o teatro. Ela estava convencida de que Yara seria a pessoa ideal para encená-la. Entretanto, a diretora não estava segura de que conseguiria. “Não sei fazer isso no teatro”, respondeu à amiga. Era 2014.
No entanto, isso não significa que Yara tenha lido o livro de forma desinteressada ou apática. Ela fez o que parecia natural: compartilhou a recomendação com outras amigas. Aliás, essa foi uma reação comum quando o livro foi publicado no Brasil em 2016. Meninas e mulheres liam e presenteavam suas amigas com essa obra. Havia um certo poder dentro daquelas páginas, indecifrável no primeiro contato com o título enigmático. O que se sabia era que aquela leitura era, de alguma forma, transformadora.
No livro-manifesto, Virginie declara guerra às antigas convenções que historicamente subjugaram o corpo da mulher ao domínio e às vontades do homem. Ela escreve a partir da divergência e do desejo de libertação. “Escrevo a partir da feiura e para as feias, as caminhoneiras, as frígidas, as mal comidas, as incomíveis, as histéricas, as taradas, todas as excluídas do grande mercado da boa moça”, inicia o livro. King Kong, ela diz, “é uma metáfora de uma sexualidade que precede a distinção de gêneros tal como politicamente imposta no final do século XIX”.
Em seu tratado, ela recupera algumas de suas memórias, mas o grosso de suas ideias tem um pilar fundante: um estupro do qual foi vítima aos 17 anos, uma espécie de “punição” a duas jovens (ela e uma amiga) que ousaram passar muito tempo na rua. As violências, das quais ela constantemente se volta, que vão além do estupro, são, afinal, um projeto político, ela reconhece. “[O estupro] É uma pedra fundamental. Daquilo que sou como escritora, como uma mulher que já não é completamente mulher. É o que simultaneamente me desfigura e me completa”, ela declara no livro.
Durante muito tempo, Virginie tentou se desvencilhar daquele trauma, mas percebeu que era impossível e que ele foi constituinte de grande parte do que se seguiu, inclusive em sua carreira como autora e cineasta. Ao longo do texto, ela relata outras experiências que ocorreram após aquela violência, como a prostituição, que, em sua visão, a ajudou em sua recuperação e libertação. Traduzir todas essas experiências para o palco não parecia – e estava longe de ser – algo fácil.
“Escrevo a partir da feiura e para as feias, as caminhoneiras, as frígidas, as mal comidas, as incomíveis, as histéricas, as taradas, todas as excluídas do grande mercado da boa moça”
Virginie Despentes
Nesse intervalo, algo muito importante aconteceu e devolveu a Yara a antiga proposta. Em meados de 2023, a peça “Teoria King Kong” estreou no Rio de Janeiro, com as atrizes Amanda Lyra, Ivy Souza e Verónica Valenttino no elenco, e a direção de ninguém menos que Yara. “Fiquei muito impactada com todos os paradigmas que o livro revelava em mim, trazendo outras perspectivas sobre temas femininos. Passou o tempo, comprei o livro, dei de presente para algumas pessoas. Em 2021, recebo o convite das meninas da Quintal Produções para dirigir o livro. Aí, imediatamente, eu topei.” Traduzir parece ser o verbo exato para o que Yara construiu cenicamente, de modo que as vozes do espetáculo são de Virginie e de Márcia (identificada como MB).
Foi então a vez de Yara convidar Márcia para construir a dramaturgia para o palco. “Ela seria a pessoa ideal para dividir essa empreitada de transformar um livro teórico. De lá para cá, se apresentou um mundo muito diferente daquele que Virginie dizia e insinuava no final do livro. Não só a literatura mudou, mas a nossa realidade também. Era necessário que ele fosse colocado como um interlocutor, e que pudesse gerar outras coisas.”
Durante os ensaios, as atrizes também se colocaram em um lugar de tradução e cocriação. Elas ocupam um lugar central na compreensão dos possíveis caminhos e leituras da Teoria King Kong, na perspectiva de um feminismo interseccional. Em cena, estão uma mulher trans, uma mulher negra e uma mulher cis. Na dramaturgia, elas conseguem incorporar suas próprias visões e realidades na poética de Virginie, abordando questões que vão além da violência de gênero, como o casamento, os acordos entre homem e mulher e a transfobia. “Márcia apresentou uma primeira estrutura dramatúrgica, que foi sendo experimentada pelas atrizes nas salas de ensaio. Eu ia com algum tema que poderia emergir dentro da cena. Eu propunha um improviso e, a partir dos experimentos, eu reportava para Márcia e íamos evoluindo.”
Uma das sensações ao ver a peça é de que a autora, por intermédio das atrizes, está rasgando milhares de páginas da história, sobre um ideal de mundo que foi prometido e propagado. Mas além da destruição, há um erguer-se, que se dá pela própria autora, a partir de suas palavras. Tanto a peça quanto o livro revelam a violência em sua forma mais crua, mas ela se recusa a dar conta dela sozinha. De todos os personagens invisíveis neste espetáculo, a figura masculina também está no meio da cena. “E quando será a sua emancipação?”, questiona uma das atrizes durante a aventura teatral. É capaz que esse homem que não assume a própria violência, seja incapaz de reconhecer a violência da qual também está submetido.
“A Virginie convoca esse homem para falar sobre si também. O espetáculo tem uma porta aberta para os homens entrarem. Dei esse livro para muitos homens, e eles liam isso com muita atenção, quase como algo formativo, como se essa obra pudesse revolver séculos para eles. Como se ela revelasse para eles um mundo que eles não estavam vendo, um mundo em que eles também eram atores”, afirma a diretora.
Contudo, dentre todo o potencial do universo Teoria King Kong, que abarca o livro e o espetáculo, sua força reside no desejo em devolver às mulheres sua máxima potência, frequentemente encoberta pela própria história, e não em imobilizá-las diante da cena e do risco constante da violência.
O espetáculo permanece em cartaz até 17 de dezembro no Sesc Bom Retiro. Em 2024, o elenco pretende abrir novas temporadas e levar a peça para outros estados.
Sesc Bom Retiro
Alameda Nothmann, 185, Bom Retiro – São Paulo
Sextas e sábados, às 20h.
Domingos, às 18h
20 de novembro (feriado)
Segunda, às 18h
80 min | 16 anos
Ingresso – R$50,00 (inteira) | R$25,00 (meia) | R$15,00 (carteirinha Sesc)