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Prima Facie expõe fragilidade de um sistema pensado por e para homens

Sob direção de Yara de Novaes, a atriz Débora Falabella desconstroi a realidade jurídica e social do país

Por Gabriela Mellão
Atualizado em 22 out 2024, 15h39 - Publicado em 21 out 2024, 08h00
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 (Ilustração criada com auxílio da ferramenta de AI Midjourney/Redação Bravo!)
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No ato inicial de “Prima Facie”, primeiro solo da carreira de Débora Falabella, a atriz é uma advogada que crê não ter responsabilidade sobre seu ofício. Entre os melhores lugares onde trabalhou e estudou, foi ensinada que não lhe cabe a reflexão sobre a culpa ou inocência de seus clientes, mas atendê-los para que a instância suprema legislativa, o tribunal, chegue a um veredicto. Para ela, quem decide é a lei.

Como um taxista que não escolhe seu próximo passageiro e atende ao primeiro da fila sem lançar juízo de valor algum, seu trabalho é servir os clientes que aparecem, sejam eles suspeitos de homicídio, agressão sexual ou outro ato criminoso qualquer. 

A personagem surge do outro lado da justiça na segunda parte deste solo escrito pela australiana Suzie Miller que estreou em Sidnei em 2019, arrebatou o West End londrino em 2022 e a Broadway em 2023 – vencendo como Melhor Peça os prêmios inglês Laurence Olivier e o americano Tony Award; neste último conquistou também o de Melhor Atriz (para Judie Comer). 

Antes advogada bem-sucedida, temida por testemunhas, ferina e assertiva com as palavras, criada para ser a melhor da raça, cavalo puro sangue treinado e pronto para a corrida. Depois (ou agora como frisa a projeção da encenação de Yara de Novaes) uma mulher violentada sexualmente por um amigo e colega de trabalho. Considerando os números assustadores revelados em cena de que uma a cada 3 mulheres foi ou será violentada, ela é uma mulher comum, presa entre os pilares do patriarcado, vitima do machismo, vitima do sistema legislativo, vitima de sua própria sensibilidade. 

É a segunda vez que Débora vive uma mulher violada em cena. “Neste Mundo Louco, Nesta Noite Brilhante”, peça em que contracenou com sua atual diretora escrita por Silvia Gomez e encenada por Gabriel Paiva em 2019, teve como inspiração um caso real de estupro coletivo ocorrido no Piauí em 2015 com quatro meninas. Nela, a atriz deu vida a uma cena antológica de estupro em meio a uma estrada que cortava o palco. Sozinha em cena, servindo-se apenas de seu movimento corporal, fez o espectador vislumbrar o mais cruel dos estupros: aquele realizado por sua imaginação. 

Desta vez ela discute o tipo de violação apontado por pesquisas como o mais comum, o mais praticado, o qual, por ser executado por pessoas íntimas, frequentemente companheiros, maridos ou parceiros sexuais da violentada, muitas vezes não tem seu ato reconhecido como violência sexual. 

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Em “Prima Facie” a atriz soma ao papel de vitima o papel de algoz, mulher masculinizada dessensibilizada pelo sistema capitalista. 

A vasta amplitude do arco da personagem exige versatilidade de Falabella e o domínio com que ela transita entre estados emocionais opostos não deixa dúvida de que a atriz vive um dos grandes momentos de sua carreira. 

Em cena ela é veloz, monumental, animalesca, como um puro sangue. É também a própria encarnação da vulnerabilidade. 

Antes de tornar-se dramaturga, escritora e roteirista – a peça teve tanto sucesso que virou livro, série e um filme que devem ser lançados em breve -, Suzie Miller foi advogada de direitos humanos. Usava o termo Prima Facie quando precisava saber se uma evidencia seria suficiente para permitir a consolidação de um fato. 

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Miller conhece intimamente o funcionamento e as falhas do sistema judiciário. Entendeu na prática que a experiência que uma mulher passa ao ser sexualmente violentada não se encaixa no sistema moldado por gerações sequenciais de homens. Lembranças nebulosas decorrentes de um evento traumático produzem falas incertas que afetam a credibilidade dos advogados afeitos a personagens invulneráveis em histórias lineares, de bases sólidas, as quais, de tão consistentes, beiram a apatia de um mundo asséptico. 

O veredito final é que a lei desconsidera um depoimento composto pelas fissuras naturais da intensidade do sentir. A fragilidade, consequência natural de um trauma, está associada à mentira. 

Além de obra cultural, o teatro aqui é arma civil, hábil em apontar injustiças e sustentar mudanças sociais. A denúncia de “Prima Facie” contra o sistema judiciário é além de contundente, precisa, feminina, feminista, social, jurídica e política, capaz de mobilizar transformações ao apontar erros e sinalizar possibilidades de caminhos para novas construções de leis, de civilização, de mundo. 

Por onde passa “Prima Facie” gera debates públicos sobre a necessidade de um sistema de justiça mais justo e sensível para vítimas de violência sexual. Ao encorajar mulheres a falarem abertamente sobre suas experiências, contribuiu para o movimento #MeToo e outras iniciativas de apoio a vitimas de agressão sexual. 

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O teatro desafia normas e impacta social e politicamente a civilização desde as tragédias gregas. Ao questionar a autoridade do Estado afrontando as ordens do rei Creonte para enterrar seu irmão, Antígona (“Antígona”, de Sófocles, 441 a.C.), por exemplo, tornou-se símbolo de resistência contra regimes opressivos, instrumento de reflexão sobre justiça social e direitos humanos.

Como exemplos mais recentes podem ser citadas as obras “As Bruxas de Salem”, de Arthur Miller, de 1953 e “Os Monólogos da Vagina”, de Eve Ensler, de 1996. A primeira é baseada nos julgamentos das bruxas de Salem de 1692, escrita como crítica ao Macartismo nos EUA. Chamou a atenção aos perigos da perseguição política sem provas, influenciou debates sobre liberdades civis e abuso de poder.

A segunda, inspirada em 200 depoimentos reais coletados durante quatro anos entre mulheres de culturas distintas sobre suas experiências com a sexualidade e a violência, transcendeu o palco e transformou-se em libelo neofeminista que inspirou o movimento global V-Day (Dia da Vagina) ajudando a moldar políticas e campanhas contra a violência de gênero.

Em “Prima Facie”, a encenadora Yara de Novaes opta por concretizar em cena a decadência do sistema patriarcal sugerido pela dramaturga e indicar outras possibilidades de ordenamentos. Composto por mesas e cadeiras sobrepostas, o cenário vertical de André Cortez se desmantela no segundo ato até se horizontalizar por completo. Também há um rompimento na parede do fundo do cenário, originalmente uma estrutura sólida que remete ao revestimento de um escritório, um muro intransponível. Abre-se uma fenda. Por um instante a plateia vê além, vê mais fundo, mais profundo. Por um instante, as imperfeições nunca vistas do espaço teatral aparecem. A realidade está longe de ser ideal. 

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Yara despe o teatro em busca do desnudamento das estruturas civilizatórias. A fresta que se anuncia é um hiato, quem sabe o vislumbre de um novo caminho, ainda há uma certa obscuridade envolvida nesta abertura. Para se ter certeza sobre o que ela significa, seria necessário avançar sobre a fenda. É esta, aliás, a última ação de Débora antes de sair de cena. 

O que acontece a seguir nesta história? “Prima Facie” é um convite ao público rememorar o poder transformador do teatro. Falabella e Yara são artistas engajadas em oferecer ao público, além de um teatro da melhor qualidade, a clareza da necessidade de revisão de normas e padrões sociais. São guerrilheiras da cultura e da desnormalização da violência, defensoras de um mundo mais artístico, libertário e justo. 

Prima Facie

Onde: Teatro VIVO (Av. Chucri Zaidan 2460)

Quando: Quinta à sáb. às 20h e domingo às 18h; até 1/12

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Quanto: De R$ 40 a R$ 150

Classificação: 14 anos

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