O novo voo de Renata Sorrah
Em ‘Voo Livre’, a atriz se junta à Cia. Brasileira de Teatro para criar experimentos cênicos inspirados em “A Gaivota”, de Anton Tchekhov
Com frio na barriga, Renata Sorrah entra em cena novamente. Dessa vez, de um modo completamente diferente de todas as outras em que pisou no palco ao longo de suas cinco décadas de carreira. A experiência pode ser inédita, mas a ansiedade frente ao palco, não. “Isso nunca passa”, ela conta em entrevista à revista Bravo!. Essa não se trata exatamente de uma peça, mas sim de um experimento cênico da Companhia Brasileira de Teatro, intitulado “Voo Livre”, no qual Renata se junta. A proposta se desdobra em três momentos temáticos: Arte, Tempo e Futuros, com apresentações até 14 de outubro. O projeto é liderado pelo diretor Marcio Abreu, com quem Renata mantém uma longa relação artística e de amizade. Encanto e confiança resumem o vínculo entre os dois artistas, que trabalham juntos desde o espetáculo “Esta Criança”, de 2012.
O experimento, que ocorre na moderna arena do Sesc Copacabana, surgiu a partir de algumas preocupações de Marcio, sobre os últimos anos da jornada brasileira, que envolvem o desmantelamento da cultura, as milhares de mortes na pandemia e o enfraquecimento da vida coletiva. “Depois de muitos anos de violência e transformações profundas, tanto individualmente quanto na sociedade, é impossível pensar em ocupar o lugar da arte e agir no mundo da mesma forma como fazíamos antes”, afirma Marcio. O projeto, ele explica, envolve um escopo mais amplo que inclui uma peça de teatro, com estreia em São Paulo prevista para julho de 2024, e um longa-metragem programado para ser lançado em 2024 ou 2025.
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Da reflexão, brotava a necessidade de repensar os modos de fazer arte. “Como não cair na frustração de continuar relacionando-se com os mesmos parâmetros em um momento histórico em que tudo foi e precisa ser ressignificado? Isso tem a ver com abrir perspectivas e expandir a experiência para além de nós mesmos, e questionar como reencontrar o público atualmente.”
Nessa iniciativa, as ações se desenvolvem como um ensaio aberto, sem um planejamento rígido do que será feito. Nada é decorado, e não há marcações prévias. O que importa para o diretor é o encontro entre os artistas, os convidados e o público, que resultará em novas práticas poéticas e teatrais. Pode parecer enigmático, mas isso se justifica pela abertura à surpresa e ao improviso. Entre os convidados, estão a escritora e professora Leda Maria Martins e os neurocientistas Sidarta Tollendal Ribeiro e Luiza Mugnol-Ugarte. “Cada convidado traz para a cena uma ação baseada nas provocações que fiz, relacionadas à forma de pensar o futuro. Todo esse processo tem um elemento comum, que é o texto ‘A Gaivota’, de Anton Tchekhov. Esse texto serve como um elemento que permeia toda a experiência”, pontua o diretor.
Participam de “Voo Livre” Cássia Damasceno, Danilo Grangheia, Felipe Storino, Bárbara Arakaki, Flow Kountouriotis, Leda Maria Martins, Yumo Apurinã, Jessyca Meyreles, Cristina Moura, Rafael Bacelar, Bianca Manicongo, Luiza Mugnol-Ugarte e Sidarta Tollendal Ribeiro.
A presença de Renata nessa nova fase e experiência do diretor parece algo muito natural, já que ambos compartilham um estado constante de inquietação diante das transformações do mundo e da arte. “Renata é uma artista muito conectada com o seu tempo, tem uma trajetória no teatro com um repertório muito sofisticado, tanto de autores quanto de tipos de montagens. É uma carreira que apresenta proposições de vanguarda. E ela é uma figura muito inquieta, muito investigativa, e muito aberta a se colocar como uma pensadora do seu próprio tempo, enquanto atriz e produtora”, compartilha o diretor. Havia também a coincidência da atriz ter participado da primeira montagem de “A Gaivota” (1974), no Brasil. Naquele momento, ela interpretava Nina, a atriz mais jovem da peça. Agora, ela recria momentos da dramaturgia na pela de Arkádina, a artista mais velha. “Ela ocupa esse lugar no mundo com coragem e um intenso entusiasmo. É muito bonito ver Renata se colocar na perspectiva da performance e da criação aberta diante do público”, confessa o diretor com carinho.
Com a alegria e o entusiasmo de alguém que está apenas começando, Renata fala sobre o novo projeto, os novos aprendizados que a arte proporciona e seu longo compromisso com o teatro. Com vocês, Renata Sorrah.
Você poderia me ajudar a entender o que é o projeto Voo Livre? Como ele se desenvolve no palco?
Essa foi uma proposta da Cia Brasileira de Teatro, um trabalho muito diferente de tudo que eu já fiz nesses 50 anos de carreira. Nós criamos três estações. Sempre tem convidados. Nessa semana, a nossa convidada é Leda Maria Martins. Nós terminamos no domingo e temos quatro dias para montar a próxima parte.
Não é pré-ensaiado?
Não, nada. Nós temos tudo rascunhado. Essa é a primeira vez que estou fazendo algo do tipo. É bonito estar sempre aprendendo. Não é algo pré-estabelecido. Estou experimentando um espaço mais leve entre mim e o público, onde tudo pode acontecer. Compartilhamos as ações com o público na hora. É como se fosse um ensaio aberto, nada é pré-determinado, não tem marcações. Nós decidimos na hora, e um dia pode ser muito diferente do outro.
O que aconteceu nesse último final de semana?
Foi incrível. Foram sessões completamente diferentes nos três dias. A estrutura estava toda ali, tudo o que queremos passar. A base do nosso trabalho é “A Gaivota”, do Tchekhov. O texto fala da humanidade, independente do seu tempo. Fala sobre o que move as pessoas no mundo. Durante os ensaios, nós fizemos áudios, cada um dos quatro, falando sobre como a arte nos afetava. Eu faria a Arkádina nesse experimento. Interpretei a Nina (atriz mais jovem da peça) há 50 anos, no Teatro Municipal do Rio. Foi a coisa mais linda do mundo. Eu deveria entrar em cena como Arkádina, a atriz mais velha. Estava esperando e vendo a Bárbara (Arakaki), interpretando a Nina, numa cena com Trepliov (Flow Kountouriotis), que é apaixonado pela Nina. E nessa cena, a Arkádina simplesmente entra e acaba com os dois. Mas era tão fascinante o que eles estavam fazendo que eu não podia entrar e acabar com aquilo. Esse foi o ponto mais forte do nosso experimento. Diante do que eles estavam fazendo, não tinha como encaixar a Arkádina.
Isso é explicado para o público na hora?
Não, nós mudamos na hora. Outro exemplo foi que o Marcio me pediu para ler um trecho do personagem Kepler, uma das cenas mais lindas do texto. Aquilo não foi combinado, foi coisa do momento. Essa liberdade de mudar é o que torna o experimento tão lindo e vivo.
E nada era decorado?
Nada, o Marcio não queria que nós ensaiássemos o texto. Nessa semana, vou fazer a Arkádina com o Danilo (o ator Danilo Grangheia). Nós vamos fazer, mas com o livro na mão, lendo, ao invés de fazer a cena decorada. Isso é muito bonito.
Esse formato te deixa nervosa?
Olha, é para não deixar (risos). O Marcio falou para nós ficarmos calmos, mas é impossível.
É quase impensável pensar em você nervosa antes de entrar em cena.
Impensável, mesmo? Não, isso não acaba nunca. Minha cabeça fica até tonta na hora. Tem certos atores que não ficam, mas eu fico e muito. Quase sinto falta de ar. Isso sempre.
Isso dura até alguns instantes antes de entrar no palco?
Total. Depois que eu entro, fica tudo bem, mas antes eu sempre penso ‘Por que fui me meter nessa?’ Mas nesse processo estou um pouco menos nervosa, pois parece um jogo. E adoro essa ideia de brincar, de jogar, torna mais leve. Para mim, ser atriz é muito motivado pela ludicidade. Teatro é um jogo para mim.
Fico imaginando quando você trabalha com atores mais jovens, muitos devem ficar nervosos também.
O tempo todo é uma troca. Acabei de fazer a primeira parte com a Bárbara e o Flow, que são super jovens e excelentes atores. A cena da Nina e do Trepliov foi uma das melhores, foi surpreendente para mim. Eu pensava: ‘Nossa, que coisa linda essas escolhas, esses caminhos que eles estão fazendo agora’. Acho que essa é uma qualidade mesmo, ter essa alegria de trocar e aprender com o jovem.
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E como tem sido a sua experiência pessoal nesse experimento?
Acho que qualquer trabalho, especialmente com a Cia e com o Marcio, sempre me renova. Ele (Marcio) sempre me mostra novos caminhos, é como se ele me desse a mão e dissesse ‘vamos juntos’. É uma troca linda entre nós. Trabalho muito com a memória nesse projeto. Traz a minha memória de atriz com 27 anos fazendo a Nina, trabalhando com o Sérgio Britto, Tereza Rachel. Toda a nossa vida entra nesse experimento. O que aconteceu em todos esses anos? Uma peça depois da outra. “A Gaivota”, de 1973 até hoje, fazendo esse trabalho. É toda uma vida, aconteceu tanta coisa no mundo, tantas transformações, tantas conquistas e tantas perdas. Não é explícito, mas tudo isso está lá, está na minha pele, na minha voz, no meu coração que continua batendo com muita força antes de eu entrar em cena.
Você faz teatro há mais de 40 anos. Poucas pessoas podem dizer que trabalham há tanto tempo com a mesma coisa e sentem tanto prazer. O que o teatro te proporciona?
É verdade. É a profissão que escolhi, onde posso colocar o melhor de mim, onde posso me aproximar das pessoas. Isso me faz muito feliz, me completa.
Você mencionou que interpretou a personagem Nina em “A Gaivota” (1973) no início de sua carreira e agora está desempenhando o papel de Arkádina na mesma peça. Como tem sido essa experiência de explorar essas personagens em momentos diferentes de sua carreira?
Ao longo dos anos, me convidaram algumas vezes para fazer a Arkádina. A montagem que fizemos foi em 1974, com a direção do Jorge Lavelli. Essa foi a primeira montagem de “A Gaivota” no Brasil, eu fiz a primeira Nina.
O Jorge é um diretor argentino, que se radicou em Paris a vida toda. A Tereza Rachel fazia a Arkádina, era uma atriz incrível. Depois, a Fernanda Montenegro fez essa personagem. É uma loucura, é a atriz mais velha da peça. É muito forte fazer a Arkádina hoje porque tem a ver com o passar dos anos, com o envelhecer, com o não envelhecer. Tem a ver com entender o outro lado dessa peça, entender onde a Nina se perdeu, e acho que a Arkádina é uma atriz que está paralisada, ela não busca o novo. Essa cena que faço com o Trepliov, o filho, que é um autor maravilhoso. Ele bate de frente com a mãe, pois ela não reconhece o talento dele e acha que ele é incompetente.
Acho que o Tchekhov se via como Trepliov jovem. Os outros autores que aparecem são todos famosos, mas são medíocres.
Pensando nisso. Você é uma atriz muito famosa, mas parece que você coloca o seu empenho no teatro muito à frente de toda essa névoa da fama.
Eu não gosto disso. Nunca me deixei levar. Comecei a fazer teatro no TUCA (Teatro Universitário Carioca). Era um grupo de esquerda, na época da ditadura, dirigido por Amir Haddad. Essa era nossa forma de nos manifestarmos contra a ditadura: fazendo teatro. Eu tive a sorte do meu mestre ser o Amir, ele que me abriu todas as janelas. Ele me mostrou o que é o teatro e por que nos tornamos atriz. Nunca perdi isso. Não passa pela minha cabeça que ser atriz é ser famosa, não, nunca. É trabalho. É fazer uma peça, é conseguir chegar nas pessoas.
Essa coisa da fama pode ser prejudicial para um artista?
Sim, se a pessoa se deixar levar. Tem que tomar um cuidado louco, principalmente agora. Acho esse momento muito assustador. De saber que chamam os jovens atores para fazer um papel pelos… como se chama isso?
Os seguidores?
Isso, pelos seguidores. Isso eu realmente não entendo. Tem pessoas que falam que é assim mesmo e não tem volta. Tem volta, sim. Não vai ser desse jeito, não pode ser. Esse não é o caminho da humanidade, esse não é o caminho dos artistas. Esse não é o nosso caminho. Não é! O teatro é mais protegido disso tudo, eu acho.
No começo do ano, conversei com Andrea Beltrão e ela falou sobre a experiência com o espetáculo “O Espectador”, no qual você também atuou. Ela quebrou um pouco o romantismo dessa visão de um artista que precisa encarnar seu personagem, e contou que os bastidores da peça eram uma grande farra. Para você, qual é a experiência ideal de bastidor tanto na concepção, quanto na realização de um espetáculo?
Para mim, o grande acontecimento é no palco e não nos bastidores. Sei que dizem que precisa de um bom bastidor, mas acho que precisa mesmo é de um bom palco, de você entrar no palco, olhar para as pessoas e saber que todos os seus canais estão desimpedidos, desentupidos com relação às outras pessoas. De você poder jogar.
Foi incrível fazer “O Espectador”. Andrea é uma das melhores atrizes do mundo. Marieta Severo e Ana Baird também são maravilhosas. Nós fizemos 8 meses, lotando o Teatro Poeira. Nós somos amigas, e foi a primeira vez que trabalhamos juntas, então foi muito importante. Era um bastidor maravilhoso, de amizade e de confiança. Mas, para mim, o bom acontecimento é aquele do palco. Aliás, nunca tive, nesses anos todos, um palco que não tivesse confiança e jogo limpo. Essa é uma grande sorte que tive.
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Você saberia dizer qual foi a experiência mais transformadora no teatro?
Ai, difícil, são tantos anos. Tenho muito orgulho de todas as minhas escolhas, do meu caminho no teatro. Não tenho nenhum arrependimento, todas elas foram muito importantes. Desde os trabalhos com o Amir Haddad, o Teatro dos Quatro, no Rio de Janeiro. Tudo foi bom, tudo foi um crescimento. O encontro com a Cia. Brasileira de Teatro nos últimos 10 anos foi muito transformador.
Não queria perder a oportunidade de perguntar sobre como foi fazer teatro durante a ditadura.
Eu comecei a fazer teatro no auge da ditadura. Não conseguíamos fazer nenhum espetáculo sem que antes um censor sentasse na plateia com o texto e uma caneta na mão, riscando tudo o que ele achasse que não podia ser dito ou encenado. Era a época do Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Me lembro de estrear uma peça do José Wilker, “Trágico Acidente que Destronou Tereza” (1968). Eu fazia Tereza. Nós trabalhávamos com pedaços de pau no camarim, caso o teatro fosse invadido pelo Comando. Nós fazíamos muitas reuniões para discutir o que fazer, como fazer, como disfarçar, como montar peças sem que fosse censurada.
Teatro é uma luta constante, uma permanente busca de espaço. É muito importante fazer teatro agora também, num período que melhorou muito, em que há uma satisfação enorme para quem trabalha nesse setor. Tivemos o retorno do Ministério da Cultura, temos uma ministra agora. A Funarte está com a Maria Marighella, descentralizando. É muito forte o que está acontecendo.
E aconteceu do Comando invadir a peça?
Não. Aconteceu com a Marília Pêra, enquanto ela fazia Roda Viva, a peça do Zé Celso.
Você sentia medo?
Tinha. Eu fui à passeata dos Cem Mil, em 1968. Era uma jovem atriz, começando a fazer teatro. Tinha muito medo porque as pessoas eram presas repentinamente. Vários atores do TUCA foram presos e torturados. Alguns tiveram que sair do país. Era terrível.
Tem uns três anos que o grupo do TUCA se juntou. Cada um seguiu uma profissão, mas nós nos juntamos com o Amir para contar a história desse grupo de teatro na época da ditadura, que montava uma peça para uma resistência. Eu fiz sempre que pude. Nós fizemos em escolas, associações, falando justamente sobre essa época. Eu ainda faço parte deste grupo. Durante a pandemia, nós fizemos on-line, e o Amir dirigia.
Qual foi a lição mais importante na sua carreira?
Aprender a respirar. A carreira me ensinou a respirar, a sentir prazer. Respirar é viver.
E o que faz uma boa atriz ou ator?
Ai, que pergunta difícil. Não sei, acho que é talento, persistência, vocação. “A Gaivota” fala sobre isso, é importante ter talento, mas sem vocação, de nada adianta. O trabalho não vai para frente, você não vai querer trabalhar de final de semana. É também saber olhar para o outro com generosidade e curiosidade.
Tem alguma coisa que você gostaria de acrescentar?
Não, já falei demais. Eu preciso ir para o ensaio. (risos)
Alguns minutos depois, Renata pede que ligue novamente, pois faltou falar algo importante. “Humberto, queria dizer que é muito importante para um ator quando ele forma uma companhia. Estar em cena com o Danilo Grangheia tem sido maravilhoso. Nós fizemos ‘Krum’ (2015). A Cássia Damasceno também; nós fizemos ‘Preto’ (2017) juntas. E muitas vezes, naquele meu nervosismo, ela segurava minha mão antes de entrar em cena. Ela é uma atriz incrível. Os dois são. É um prazer estar com eles. Nós reconhecemos o outro. Há uma cumplicidade, um olhar que você conhece em cena e muda tudo.”
“Voo Livre”
Arena do Sesc Copacabana
Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Rio de Janeiro – RJ
Ingressos: R$ 7,50 (associado do Sesc), R$ 15 (meia-entrada), R$ 30 (inteira)
Sessões de 22 a 24 de setembro e 12 a 14 de outubro (os horários variam conforme o final de semana)
Classificação indicativa: 16 anos
Duração: 90 minutos