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Fluxo de pensamento: Reynaldo Gianecchini

O ator faz um apanhado sobre sua carreira, e a peça “A Herança” e o que busca deixar como legado

Por Reynaldo Gianecchini, em depoimento a Humberto Tozzi
26 Maio 2023, 11h04

No auge da pandemia, eu estava super recluso em casa. Não sabíamos quando iríamos voltar. Enquanto isso, os projetos, as vontades iam se acumulando. Estava com alguns planos em vista. Sempre busco fazer audiovisual intercalado com o teatro. Nunca deixo o teatro. Certo dia, ainda nessa incerteza do nosso futuro, Bruno Fagundes me escreve: “Cara, tenho um texto que amei. Posso te mandar?”

Quando ele encaminhou, pensei que não havia espaço para aceitar mais nada. Na época, estava escalado para fazer Verdades Secretas 2 – que acabei não fazendo – e estava me preparando para estrelar Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças no teatro. A peça era A Herança, de Matthew López. O texto tem pouco mais de 300 páginas. Bruno me disse que meu personagem seria Henry Wilcox.

Embora seja uma peça muito volumosa, quando comecei, não consegui mais parar de ler. Fiquei completamente acachapado. Era como se estivesse maratonando aquela leitura. As vidas dos personagens iam se desdobrando, e fui ficando super interessado em tudo. Acho que esse foi o texto mais lindo de teatro que já li. Me tocou em muitas camadas. Ele amarra muito bem, do começo ao fim, a curva dramática dos personagens, e como acompanhamos o que está dentro de cada um deles: suas loucuras, suas carências. Entendemos todos eles. E o mais bonito de tudo: conseguimos nos identificar sem julgar suas escolhas.

Quando, finalmente, terminei, liguei para o Bruno e disse: “Não quero saber, mas não faça a peça sem mim”.

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Hoje em dia, tudo que aceito fazer tem a ver com a escolha do que quero falar, do processo que quero viver, o que quero aprender com aquilo, como ser humano ou como artista. As minhas escolhas são pautadas nisso

Ali, não pensava que conseguiríamos montar o espetáculo com tanta rapidez. Imagina a dificuldade: uma peça que trata de pessoas LGBTQIA+, numa pandemia, num governo Bolsonaro, que acabou completamente com a nossa cultura. Parecia uma missão impossível. Cheguei a pensar que esse era um projeto para dali 5 ou até 10 anos. Fora isso, leva muito tempo até conseguir captar recursos para uma montagem teatral. Mas por uma surpresa, o negócio andou de uma hora para outra.

Soube que A Herança teve uma temporada muito especial lá fora, quando estreou. O sentimento era de catarse coletiva, de pessoas na plateia se abraçando e saindo completamente comovidas. Para um artista, essa é a maior realização. Foi uma peça transformadora e vem ao encontro a uma fase minha que tem sido bem determinante. Não tenho mais um compromisso fixo com uma emissora, então não sou obrigado a fazer nada em função de um contrato.

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Hoje em dia, tudo que aceito fazer tem a ver com a escolha do que quero falar, do processo que quero viver, o que quero aprender com aquilo, como ser humano ou como artista. As minhas escolhas são pautadas nisso. Não é por dinheiro ou por obrigação contratual. Tento cada vez mais entender quem eu sou enquanto artista e qual comunicação quero estabelecer com o público.

Não sei se eu faria ou estaria tranquilo para aceitar esse convite anos atrás. Apesar de que temos que vislumbrar que um trabalho artístico é um trabalho artístico. Você não precisa ser gay para fazer uma peça com personagens gays. Não é sobre isso que estamos falando, estamos indo além. Todos os atores que estão lá têm um compromisso com quebrar os tabus, dar uma voz para essa comunidade. Foi um elenco escolhido a dedo, são pessoas com uma história. E nesse momento, considero que tenho também uma história de abertura com o movimento LGBTQIA+. Recentemente, falei sobre ter uma sexualidade fluída, que não se encaixa numa caixinha. Acho que tempos atrás não sei se teria maturidade de encarar esse desafio, mexer nessas coisas. Acho que tinha muito medo.

Tenho o hábito de acompanhar as discussões no meu Instagram. Não consigo responder a tantas mensagens, mas sempre olho o que a galera está falando. Principalmente durante uma peça, já que queremos uma comunicação com as pessoas. Busco ver a reação do público. E nesses dias teve alguém questionando: “Por que não se posicionou antes?”. Acho que tudo acontece na hora certa, não é algo que dá para forçar. A vida vai mostrando os caminhos, tem hora que a gente se sente maduro para olhar e falar sobre certos assuntos. Se antes não é possível, é porque estamos tentando entender o turbilhão de coisas que acontecem em nós.

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Outras pessoas me atacaram: “Acho que você devia militar mais”. Penso que essa cobrança não deveria existir e acho que não tem militância maior do que fazer uma peça como essa. Acredito muito nisso: como artista, criamos um canal através da sensibilidade para que as pessoas possam se envolver em determinadas questões. A minha militância está nos projetos que escolho e nas discussões que quero movimentar.

Acho que tem algo muito bonito no envolvimento de pessoas LGBTQIA+ com a história da comunidade, que é um mundo que muita gente não adentra com facilidade para conhecer de verdade. A identidade, o porquê se reuniram para fortificar essa identidade e a sua existência. É muito especial fazer esse mergulho de tentar entender quem são essas pessoas.

Acho que tudo acontece na hora certa, não dá para forçar. A vida vai mostrando os caminhos, tem hora que a gente se sente maduro para olhare falar sobre certos assuntos.Se antes não era possível, é porque estamos tentando entender o turbilhão de coisas que acontecem em nós”

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Eu sou muito aberto, já falei de minha sexualidade, mas nunca tinha me adentrado, nunca frequentei a noite gay. Meus caminhos não me levaram a fazer parte da comunidade. E agora estou muito feliz de, através do processo dessa peça, me abrir para entender. Tem gente que diz: “Vocês estão fazendo apologia com essa peça, parece que querem converter a ser gay”. Primeiro que não se converte ninguém à sexualidade x ou y. Segundo que tem uma questão de olhar para o ser humano para além de seu mundo que se abre a partir de sua sexualidade.

Eu fico com o olhar muito atento, principalmente no pós-pandemia. Lembro da discussão do Black Lives Matter. Aquilo abriu um espaço gigante para começarmos a entender que precisamos ser antirracista. Temos que ter um posicionamento, lutar para não haver mais racismo. Acho que a cultura LGBTQIA+ é um pouco isso. Não adianta falar: “convivo com amigos gays”. Temos que lutar para ter espaço, para uma vida com igualdade. É um trabalho de todos. Você não precisa ser gay ou negro para se identificar com as causas de uma existência igualitária.

Embora esse texto se localize nessa comunidade, ele é, para mim, uma peça que fala de humanidade, do ser humano, das suas dores, seus amores, suas loucuras, suas carências e suas dificuldades de afeto. E ele emociona muito porque isso é colocado a todo momento. É para um público que se interessa pelas questões básicas do ser humano. Para mim, o texto fala do que vamos deixar para a próxima geração. Há a herança, como o título diz, de bens materiais, mas também do que deixamos de conhecimento. Quais os caminhos você vai abrir para que a próxima geração não precise sofrer tanto? O meu personagem fala disso, que ele sofreu muito para abrir os caminhos para essa geração ter seus direitos. E tem a herança da doença também, a peça fala sobre o momento da epidemia da Aids. A essência é o que se herda de geração para geração, com o seu exemplo, com a sua luta e com a sua ação.

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Eu não consigo chegar na dimensão exata do que quero deixar como legado. A minha luta diária é viver com verdade. De uns tempos para cá, principalmente com a maturidade, me faço algumas perguntas com frequência: “Quem eu sou de verdade? O que eu estou falando, eu estou fazendo? Qual é o exemplo que dou no dia a dia?”.

Me importa ser uma pessoa que vive conforme a própria verdade, que age com a consciência do momento. Acho que uma pessoa encaixar com a verdade dela é muito maravilhoso. Não tem nada mais desconfortável do que viver numa mentira. Já vivemos numa sociedade que está o tempo inteiro com máscaras. Então, quando você vê uma pessoa sendo verdadeira, sem máscara, fazendo suas escolhas com base na sua expressão, isso tem muito valor. E é o que eu tenho lutado para fazer.

Não adianta falar: ‘convivo com amigos gays’. Temos que lutar para ter espaço, para uma vida com igualdade. É um trabalho de todos.Você não precisa ser gay ou negro para se identificarcom as causas de uma existência igualitária”

Acho que quando a gente entra nesse território de busca da própria verdade, entendemos a nossa complexidade, as nossas sombras. Quando você consegue entender isso, você passa a ter compaixão por si mesmo e pelos outros. Eu quero deixar isso, saber que fui verdadeiro e coerente com o que sou. Quero cada vez mais seguir no meu trilho, quero que esse seja o meu legado.

Leva muito tempo para alcançarmos esse tipo de maturidade. Cada um tem o seu tempo. Viver é passar pelos processos e aprender com eles. Não é possível cobrar o processo alheio.

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