“Selvagem” fala das infâncias viadas que não puderam ser
Em monólogo, o ator e dramaturgo Felipe Haiut explora as memórias da infância, quando foi ensinado a negar tudo que remetesse ao universo feminino
“Não cruzarás as pernas, não chorarás, não aceitarás o não como resposta, olhará a bunda das mulheres quando passarem na rua, saberás de futebol e evitarás o número 24.” Essas são algumas das doutrinas que o ator Felipe Haiut se lembra da infância, quando todo esforço era empregado para evitar que os meninos se tornassem gays. Para ele, nenhuma delas funcionou.
Apesar dos pesares, Felipe já se reconciliou com o passado. Fez isso recentemente através do teatro. Em sua peça Selvagem, que estreou no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto, no Rio de Janeiro, ele reflete com generosidade seus desejos, seus trejeitos e todo o seu imaginário reprimido durante os anos de menino. Felipe, como tantas outras, foi uma criança viada, como ele próprio diz. Quer dizer, tentou ser, mas foi empurrado de todas as formas a investir na masculinidade, postergando sua emancipação identitária e sexual.
Seu solo faz emergir memórias pessoais, referências culturais dos anos 1990, e também inspirações de outros relatos semelhantes aos seus, de pessoas com sentimentos e dores iguais às suas. O processo, ele conta nasceu de uma oficina que fez, em 2021, com Denise Stutz e Debora Lamm. A época marcava um novo momento, com o avanço da vacinação contra a pandemia da covid-19, e para Felipe, em especial, uma etapa em que buscava voltar ao teatro. A pesquisa que fariam coletivamente era sobre a memória, e o ator escolheu vasculhar as ruínas de sua infância queer invisibilizada.
Decidiu, nesse percurso, estabelecer algumas diretrizes. “A primeira baliza é que nesse mergulho eu precisaria brincar. Eu precisaria me divertir nesse retorno, precisaria viver de uma maneira leve descontraída. A segunda baliza que coloquei era que eu precisava recuperar o olhar que eu tinha naquela época sem julgamentos, tentando entender quais eram as perguntas que eu me fazia, quais eram as impressões de mundo que eu tinha”, conta.
A experiência foi tão potente que decidiu transformá-la numa peça. Convidou Debora Lamm, para dirigir o espetáculo, e Denise para cuidar da direção de movimento. Uma vez decidido, precisou tornar a investigação a mais cuidadosa possível, como se estivesse apurando as diferentes camadas de sua biografia. Compartilhou o processo com seus pais, Márcia e Marcelo. E os convidou a participarem. Pediu que escrevessem uma carta para essa criança. Foi pego de surpresa diante dos depoimentos que recebeu.
“Minha mãe me escreveu uma mensagem muito curta. Um dia, ela me disse que estava indo nas Lojas Americanas. Ela tem mania de ir até lá e ela me perguntou se eu queria alguma coisa, eu falei que eu queria Barbie que ela não pôde me dar quando eu tinha cinco anos e ela comprou essa Barbie que eu queria e, de alguma forma, presenteou essa criança”, ele conta.
Com seu pai, no entanto, a reação foi um pouco mais complexa. “Nós ficamos um longo tempo sem se falar e a gente recuperou essa relação em 2018, mais ou menos. Ele me mandou um áudio de mais de 15 minutos, no qual explicava todo o processo dele, as violências que ele sofreu quando era pequeno, e o que ele sentiu quando começou a perceber que eu não ia cumprir as expectativas e as projeções que ele tinha sobre mim. E nesse áudio, ele falou muitas coisas para essa criança que eu nunca soube.”
Explorar e analisar o próprio passado não são tarefas fáceis, mas o desafio maior é conseguir dar uma forma a todo esse conteúdo e moldá-lo numa obra artística. O segundo passo, então, era sair de si e se conectar com uma audiência. Restava apostar que muitos outros se identificariam com aquela história. “Até os anos 1990, a homossexualidade era considerada uma doença, pela OMS. Eu nasci nesse mundo onde os pais tinham essa referência. Leva muito tempo para você desconstruir uma verdade. A única referência que a gente tinha se davam pela televisão. A imagem que eu tinha do que é ser viado eram os personagens caricatos dos programas de humor, onde eram muito mal interpretados por homens héteros brancos.”
Ele brinca que os pais se tornaram dois soldados durante sua infância, restringindo tudo que pudesse afetar sua masculinidade. “Tudo de rosa foi tirado da minha casa, não podia mais andar com as meninas, eu entrei para luta. E aí eu vou falando sobre as primeiras experiências na peça. Lembro da primeira Playboy que ganhei. E lembrar do meu primeiro beijo e não consigo. Lembro até mesmo de buscar na internet alguém com 13 anos, já que não podia viver isso [experiências de afeto] na escola. E, inclusive, podendo estar na mira de pedófilos. Lembro que o meu primeiro apaixonamento foi por um amigo do colégio, mesmo isso não podendo acontecer.”
Todo o movimento para criar uma peça, ao fim, serviu como um lugar de cura para Felipe e também para o seu pai, com quem divide uma cena do espetáculo. Ele lembra que em 1998, quando vivia em Salvador, ele participou e venceu um concurso, em um parque aquático, que procurava o “Mini Jacaré” (em referência ao dançarino da banda É o Tchan). O prêmio era um ano de aulas de lambaeróbica, que nunca pôde usufruir. A memória virou uma letra de axé, “O coco”, a qual canta e dança com o seu pai. Felipe explica que selvagem é toda criança que foge das normas e padrões e que pôde, pela crença popular, contaminar a sexualidade alheia. Mas há muito, ele ressignificou esse termo, e hoje o abraça como uma qualidade. “Fico imaginando que essa criança está viva numa outra realidade paralela. E se eu sinto algo de diferente aqui e agora, é possível que essas criança sinta também. Então, é possível me conectar com ela e transformar alguma coisa. Gosto de pensar assim.”
Espaço Cultural Sérgio Porto – Sala Preta
Rua Humaitá, 163 – Humaitá, Rio de Janeiro – RJ
De 5 a 28 de maio. Sextas e sábados às 19h, domingos às 18 horas
Ingressos: R$60 inteira l R$30 meia