Teatro Municipal do Rio ganha fôlego com gestão de Clara Paulino
À frente da Fundação Theatro Municipal desde 2020, historiadora conversa com exclusividade revelando os desafios e compromisso com a excelência artística

A atual presidente da Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Clara Paulino, estudou História e assumiu sua função em meio à pandemia de COVID-19 e uma série de desafios, tanto de gestão quanto de programação. Desde então, Clara vem conduzindo uma administração focada em organização, previsibilidade e diversidade artística, sem abrir mão da excelência. Não tem sido um caminho fácil.
Na semana em que a programação cultural do ano estava começando, ela se sentou para conversar com a Revista Bravo! sobre essa transformação no Municipal, lembrando os bastidores dessa gestão e o que vem pela frente para um dos palcos mais simbólicos do país. Leia a entrevista a seguir:
Bravo!: Quando foi a primeira vez que você esteve no Theatro Municipal do Rio?
Foi com um passeio de escola na minha oitava série, foi lindo. A gente veio de metrô, eu estudava numa escola pública. Confesso que, depois disso, só voltei ao TM depois de um longo período, já na época de faculdade, para assistir Carmen. Sentei lá no último lugar da Galeria, que era o que conseguia comprar. [risos]. Depois, voltei num evento de entrega de certificação quando trabalhava no Iphan e voltei para assistir uma outra ópera com a minha família. Sempre achei o teatro lindo. Eu sou historiadora, então é uma referência, é um patrimônio. Mas nunca imaginei estar presidindo, né? Sempre vim aqui como público e não era uma frequentadora assídua.
Bravo!: Como surgiu o convite para assumir a Presidência? Pensou duas vezes ou aceitou de primeira?
Aceitei de primeira, mas com bastante nervosismo. Já trabalho na gestão há algum tempo, em todas as esferas, trabalhei na Prefeitura do Rio de Janeiro e depois no interior do estado, vim para o Iphan, trabalhei no governo federal. Na época, a secretária de cultura era a Eva Doris e me chamou para trabalhar na superintendência de museus do estado do Rio. Aceitei, fui trocando de funções e aí, no meio da pandemia, no meu aniversário, ela me disse que ia me tirar da presidência da instituição que eu estava, que era o Museu da Imagem e do Som, para assumir o Teatro Municipal. A ficha demorou a cair.
Olhei para ela e falei ‘mas por que que você tá me colocando no Teatro? Eu não sei dançar, eu não sei tocar, eu não sei cantar…’ Ela falou ‘não preciso disso. Eu preciso de alguém que faça a gestão deste equipamento e eu acho que você tem esse perfil’. Tenho essa visão. O Teatro é uma referência de um espaço de cultura, é a referência de um espaço que tem profissionais qualificados, então fiquei muito honrada, mas também com muito medo porque junto com essa possibilidade vinha uma série de exigências. E eu já sabia que, de certa forma, muitos funcionários estavam desmotivados por n questões. E no meio disso tudo, ainda tinha a pandemia.
Bravo!: Um senhor desafio.
Sim, e a pandemia foi decretada exatamente no dia de abertura da temporada do Teatro Municipal. Então, aceitei de imediato, mas isso ficou rodando na cabeça por um bom tempo. Mas foi bom. Quando cheguei, fiz o que eu costumo fazer ao assumir uma instituição, sou muito certinha, muito metódica. Chamei todos os dirigentes para entender o que é que eles consideravam pontos positivos e negativos dentro do Teatro Municipal. Isso me possibilitou entender em que pé a gente estava.
Bravo!: E como foi?
Depois das conversas montei um plano de ação, que podia dar certo ou não, mas que tinha as suas linhas entre a regularização de contratos administrativos, a retomada da programação colocando um prazo e como, mesmo no meio da pandemia, isso teria seria retomado. E uma tentativa também de recuperar, de certa forma, e motivar a equipe. Fazer com que eles voltassem a se sentir valorizados.

Bravo!: Como é que você os encontrou, porque o Teatro passou por vários momentos difíceis, mas esse certamente foi ainda pior…
A gente fala que “casa fechada acaba se deteriorando com mais rapidez” e foi isso que aconteceu no Teatro. Não tinha contrato vigente quando cheguei aqui, precisava retomar tudo. Segurança, limpeza, recarga de extintor, sistema de incêndio, ar-condicionado, elevador. A gente ficou quase um ano subindo de escada porque os elevadores estavam desligados. O carpete estava ruim, os estofados estavam velhos, o Municipal necessitava de pintura. Você andava pelos corredores e tinham buracos, áreas estufadas. A instituição teve a sua grande obra entregue em 2010 e não tinha passado por manutenção até 2021. Eram 10 anos com pessoas circulando, usando, transitando e logicamente, tudo se desgasta, tudo acaba. Então foi necessário sentar, pensar com calma e estabelecer prioridades.
Bravo!: Também tinha a questão dos salários atrasados…
Exato. Os salários estavam sendo pagos, mas o estado tinha passado por uma situação difícil, o salário de todo o estado do Rio ficou atrasado. E a gente tinha alguns benefícios também atrasados e que precisavam ser regularizados. Foram essas diversas frentes. Primeiro, na parte administrativa cuidando do básico para a gente poder reabrir o teatro: os contratos de limpeza, os contratos de segurança, o elevador, porque a gente tem um público muito grande de idosos vindo aqui. Era fundamental a questão da regularização da parte de incêndio e do ar-condicionado. Essas foram as prioridades. Recarga de extintor e tal. Isso feito, a gente começou a atuar em outros pontos.
Bravo!: Em quanto tempo conseguiu ajustar o básico?
Um ano, mais ou menos um ano e 2 meses para a gente conseguir fazer tudo. E aí a gente começou a atuar em outros pontos. A troca das cortinas, a troca de carpete. Por último, a troca dos estofados. Desde janeiro de 2025 a gente vem fazendo a pintura da área social de circulação, do teatro. Os serviços na parte dos funcionários, a gente regularizou. Tinha ainda benefício de 2019 a ser pago, a gente pagou. Hoje em dia a gente paga regularmente.
Bravo!: E novas contratações?
A gente vem conversando com o governo do estado para a realização de concurso e o processo está tramitando. Temos muita esperança que aconteça, uma vez que os corpos artísticos estavam defasados, por isso a gente teve autorização de fazer a contratação temporária para reforçar tanto a área administrativa quanto os próprios corpos artísticos. Isso não para.
Bravo!: Enquanto isso tudo o Teatro continuou aberto e funcionando?
A gente brinca que a gente é especialista em trocar o pneu com um carro andando. [risos] No ano retrasado, para mudar o estofamento de toda a sala de espetáculos a gente pegava os ensaios no palco e o período de montagem e trabalhava por espaço. Era a plateia, depois outro pedaço.

Bravo!: E por ser do governo, todo o processo é mais complicado, não?
Não recebemos verba diretamente. A gente recebe o orçamento do Tesouro. O Teatro até tem trabalhado com uma fonte de recursos próprios, mas ela tem que ser licitada. É uma questão de transparência da malha pública. Realmente as pessoas esquecem que a gente segue uma legislação e segue alguns ritos, que é a burocracia que existe em todo lugar.
Bravo!: E não ficou sendo prioridade em muitos anos, né?
Exatamente. Felizmente, hoje fazemos parte de um governo que acredita na cultura. Temos uma parceria muito grande com a Secretária de Cultura, que veste a camisa e acredita nessa questão da democratização e na valorização. Mas em outros momentos não foi uma prioridade. Até porque disputamos verba e orçamento com Educação, Saúde e Segurança Pública. Temos uma complementação de recurso grande por patrocínio também. Mas esse cenário um pouco mais confortável só está acontecendo de 2 anos para cá. Opatrocínio no ano passado aumentou consideravelmente.
Bravo!: E como foi que isso mudou?
Tivemos alguns percalços. Tínhamos dois patrocinadores quando cheguei no Teatro e a gente trabalhou com eles por algum tempo. Pouco depois que a gente retomou a programação, um dos patrocinadores nos deixou. Quem continuou conosco foi a Petrobras, que já é parceira há 20 anos da instituição. Ela patrocinava parte da temporada, mas há mais ou menos uns 3 anos conversamos e a Petrobras, felizmente, com uma visão muito acolhedora e entendendo a importância do trabalho do Teatro, abraçou e conseguimos um patrocínio de 20 milhões de reais, com parte da verba destinada à programação e outra destinada à manutenção do espaço.
Bravo!: A divisão é igual?
Não, são 60% desse valor para a programação porque a temporada sempre é a prioridade. Mas com esse recurso tiveram ações como a revitalização do Boulevard, como a própria manutenção do ar-condicionado. As pessoas nem sempre veem, né? São trabalhinhos que a gente faz e que ninguém olha.
Bravo!: Até estarem no espetáculo pro sentido calor.
Exatamente, até reclamar. Mas encaro isso sempre na vida, né? Sempre há uma possibilidade de aprendizado. Cheguei entendendo de patrimônio, de conservação – que são as minhas áreas de estudo, especialização e de gestão – e quando eu cheguei no Teatro, não sabia qual era a formação de uma orquestra, como funcionavam os naipes, qual a necessidade desses artistas, a questão de manutenção de instrumento. A mesma coisa de um bailarino: você assiste o espetáculo, acha muito bonito, mas tem que pensar que cada figurino é feito para aquela pessoa, quantas sapatilhas ela vai utilizar, que se o piso não tiver adequado, ela pode ter uma lesão. Muitas pessoas pedem que a gente faça récitas, mas existe um desgaste físico. Na equipe temos um médico, fisioterapeuta, enfermeiro. Como uma boa dona de casa, você tem que ir vendo onde colocar cada peça para que a casa funcione.
Bravo!: E os ingressos a custo popular esgotam rapidamente, não é?
Em 40 minutos, por isso os dividimos por lote, porque esgota e assim tem uma possibilidade de comprar depois. São essas coisas que a gente pouco a pouco vai entendendo se dá certo ou se não dá.

Bravo!: O valor do ingresso deve ser complexo porque as montagens de espetáculos completos são muitas vezes luxuosos, mas com preços populares. Se eleva o preço, não necessariamente enche o teatro, mas a conta fecha?
Isso vem também da visão da Secretaria de Estado de Cultura. Que eu já tinha também, porque a Arte, a Cultura e a Educação têm que ser acessíveis a todas as pessoas. Passei por isso. Quantas vezes não vim ao Teatro porque não tinha como pagar o ingresso? Com o tempo, isso gera um distanciamento das pessoas da instituição. Por mais que eu conhecesse o Teatro Municipal, admirasse a programação, nem sempre me sentia pertencente, ou tinha recursos para estar aqui. Esse mote da democratização de acesso é um dos grandes desafios, ainda maior do que retomar a programação. Eu acho que, enquanto servidora pública, o nosso papel é servir. E as pessoas precisam usufruir dos seus espaços.
Bravo!: E também tem o clichê de que arte erudita não é popular, mas quando se vê o Teatro lotado, sabemos que não é assim.
Não, não existe isso. E aí a gente já vem até discutindo, né? Podem até dizer que a arte erudita não é popular. Mas se você pegar a base de inúmeras músicas que são julgadas extremamente populares, como funk, a base do funk é a música clássica. Então, assim, é uma contradição muito grande. Esse público consumidor existe. E aí a gente se depara, por exemplo, com o Lago dos Cisnes, onde você tem vários comerciais que tem um trecho daquela música, né? E assim como tantas outras…então, a arte é para qualquer pessoa, ela tem que ser consumida e eu preciso oferecê-la ao público.
Bravo!: E essa democratização foi menos complicada?
Quando retomei a programação com balé coloquei o ingresso gratuito, mas terminei com a porta da bilheteria literalmente quebrada. A fila foi longa e as pessoas ficaram frustradas. Falei ‘não posso mais botar ingresso gratuito’. A gente tem que cobrar, mas, se a gente quer que o público venha, o primeiro passo foi diminuir o custo dos ingressos com 100 reais o valor máximo. E aí a gente foi investindo em outras ações e para valorizar não só o público, mas ações em que a gente pensasse no estado. Fomos fazendo pequenos projetos, como exposição itinerante, reuniões, oficinas de vivência musical pelo interior do estado, convidando as pessoas a virem ao teatro. Em paralelo, dentro da própria instituição, a gente começou a trabalhar com projetos que traziam o interior para o teatro municipal. Outro projeto que eu tenho muito carinho é o Projeto Escola que trabalha com os professores da rede pública de ensino e com alguns projetos sociais encaminhando material para trabalhar em sala de aula e em um dia específico a gente faz o espetáculo às 2:00 da tarde e recebe esses alunos e professores. É uma cartilha educativa com a história contada de maneira mais lúdica e algumas atividades como palavra cruzada, caça, palavra e etc. Quando as crianças vibraram no final do Lago dos Cisnes, eu vi que elas tinham entendido a história e que o propósito tinha sido cumprido.
Bravo!: E a programação de 2025?
Abrimos com outro projeto gratuito, que é um projeto que aconteceu no teatro há 22 anos e que os artistas, principalmente do coro, sempre pediram muito a retomada, que é a ópera ao meio-dia, com grandes títulos de ópera, como Dom Pasquale, que é apresentado na escadaria principal. Não é a produção completa, é uma coisinha pop com alguns artistas caracterizados, mas o cenário é a escadaria principal do Teatro. A gente tem a expectativa de atender de 60 a 80 pessoas sentadas. Esse projeto está fechado até às vésperas do Natal. Também temos visitas guiadas que acontecem de terça a sábado, visita aos bastidores, que é para conhecer somente o palco. Em outubro, faremos a “visita fantasma”, que é uma visita teatralizada e fala dos grandes fantasmas do Teatro e conta a história por meio deles. E a gente ainda tem alguns projetos feitos com parceiros, como a oficina de desenho. Também vamos lançar a segunda edição da revista interdisciplinar do Theatro Municipal. A primeira edição foi lançada em 2024 falando da relação do teatro com o Carnaval, a segunda é sobre moda. Na próxima revista o tema proposto é sobre africanidade.
Bravo!: Fora as temporadas de concerto, balé e ópera, não é?
Tudo isso ainda tem outras coisas, muitas que a gente faz é. Abril é mês de ópera, ballet é em maio, junho é concerto, julho é ópera, agosto é ballet. A gente vai até dezembro assim.
Bravo!: Olhando para o futuro, que legado espera deixar da sua administração?
Uma instituição consolidada e funcionando de maneira correta. Para valorizar os artistas e para os artistas terem um ambiente de trabalho mais aprazível, é necessário que a instituição esteja totalmente saudável e para isso a gente precisa de estrutura, de movimento, de um trabalho diário, e precisa se sentir bem fazendo este trabalho. Acho que o principal mote é esse.
Eu optei por trabalhar com cultura, por ter esses desafios e amo o que faço. E acho que isso faz uma diferença tamanha porque eu não venho obrigada a trabalhar. Eu sei todos os problemas que eu vou encontrar durante o meu dia, mas eu não venho obrigada porque respeito os meus colegas de trabalho, porque dialogo e aprendo com eles. E eu acho que isso de certa forma vai se propagando pelas pessoas, né? A partir do momento em que o teatro está fornecendo programação e que os artistas estão trabalhando num ambiente minimamente aprazível e saudável, conseguimos fornecer algo melhor para o público.
Bravo!: E o Theatro Municipal do Rio está “pronto”?
Eu acho que nunca está pronto, sempre tem uma coisinha para fazer. A gente avançou, fez muita coisa, mas enquanto uma instituição que já é centenária e que já tem toda uma história, a gente sempre pode avançar mais. A gente pode sempre fornecer mais. A gente sabe que existem gargalos que precisam ser contornados, como a carência de profissional, a manutenção dessas pessoas. Então, a gente está falando de um patrimônio que é material histórico, mas a gente também está falando de vários outros patrimônios que são quase 600 vidas que a gente lida diariamente e que a gente sempre vai trabalhar para tentar melhorar.