Vera Holtz de volta aos palcos
Atriz entra em cartaz com o monólogo "Ficções", uma adaptação teatral de "Sapiens", livro existencialista do filósofo israelense Yuval Noah Harari
Facilmente, Vera Holtz pode ser confundida com uma pessoa comum, uma que não está tão presente no imaginário dos brasileiros por sua forte presença nas telenovelas. Uma pessoa com jeito e gostos simples, que fala sobre a cidade em que nasceu, Tatuí, no interior de São Paulo, e de sua família com muito carinho. Não parece haver resquícios de deslumbramento pelo patrimônio artístico que construiu desde começa sua carreira no teatro profissional, em 1979. Mas quando pisa no palco, ela é uma explosão.
Vera é a terceira de quatro irmãs. Seus pais, José Carlos e Terezinha, ao contrário de muitas famílias que entendiam que as mulheres deveriam ser criadas para casar e servir seus maridos, educaram as filhas para serem livres. A liberdade, a disciplina – herdada do lado alemão da família –, e um profundo senso de coletividade diante de ter crescido rodeada de gente: “Aprendi, desde muito cedo, a conviver numa mesa com crianças até pessoas mais longevas. Essa tessitura de comportamento, de pessoas das mais variadas, estão presentes na minha vida desde muito cedo.”
O contato com as artes foi paulatino, mas completo. Primeiro, na adolescência, estudou no Conservatório de Música em Tatuí. Em seguida, na graduação, cursou Artes Plásticas na FAFICILE (Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Tatuí). Por último, encontrou o teatro. Um encontro meio por acaso. Com frequência, em suas entrevistas, ela lembra do primeiro encantamento que teve com os palcos, quando assistiu à peça Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come, com a atriz Myriam Muniz. “Me lembro que eu não acompanhava o texto, ficava só observando a luz, o figurino, o movimento e sentia aquele encantamento com a capacidade de construir uma narrativa daquela caixa.”
Então decidiu se mudar para São Paulo, em 1978, para estudar na EAD (Escola de Arte Dramática), da USP. Na época, ela se dividia entre os estudos e o trabalho como desenhista de mapas no IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas), também na cidade universitária. Em São Paulo, ficou apenas dois anos até se mudar para o Rio de Janeiro devido a outra oportunidade de emprego, também como desenhista. O trabalho como atriz acontecia simultaneamente. Fez sua estreia profissional com a peça Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho.
45 anos se passaram desde que ingressou na EAD. Já se foram mais de 50 peças, 40 novelas e 30 filmes. Em 2023, ela começa o ano pisando nos palcos, dessa vez em São Paulo, com a peça Ficções, escrita e dirigida por Rodrigo Portella, com estreia no Teatro FAAP. Seu parceiro de cena é o violoncelista Federico Puppi, que constrói a trilha sonora durante o espetáculo.
Inspirada na obra Sapiens – Uma Breve História da Humanidade, do filósofo israelense Yuval Noah Harari, o monólogo faz com que a Vera tenha que se desdobrar em muitas personagens, que abrangem um asno, um fóssil, até ela própria: uma atriz cujo desafio é concluir um espetáculo e responder aos questionamentos de uma plateia aflita. Ao mesmo tempo, que se mantém no compromisso com a obra original, de resumir uma história de mais de 13 bilhões de anos, que culminou no surgimento da humanidade, das sociedades, até os pequenos conflitos que carregamos no nosso dia a dia.
Com vocês, Vera Holtz.
Vera, em que momento o teatro entra na sua vida?
No momento em que eu vou ver uma peça no Teatro Anchieta, com a Myriam Muniz, Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come. Me lembro que eu não acompanhava o texto, ficava só observando a luz, o figurino, o movimento, e sentia aquele encantamento com a capacidade de construir uma narrativa daquela caixa, um palco italiano. Tem uma energia, uma vibração de comunicação muito grande. Eu tive uma epifania: “Acho que é, realmente, esse o lugar que eu vou seguir.”
Vou fazer um salto no tempo. Naquele momento foi esse encantamento, mas e hoje, nesse retorno, no pós-pandemia, o que te deslumbra no teatro?
Acho que é a mesma coisa. Primeiro, no pós-pandemia, o teatro é se torna um lugar de celebração, de encontro. Retornando agora, sinto que ele tem que ser muito protegido por sua capacidade de conectar as pessoas, de criar, e de recriar, de encontrar respostas e também perguntas.
É um espaço que, você como indivíduo, está presente coletivamente, você se encontra no outro. É algo que percebi nessa retomada, após tanto tempo de confinamento. As pessoas estão indo pro teatro para se rever, para se tocar, para se abraçar, para se reconectar com o outro. Eu acho que é o outro que nos aproxima de um sublime, de um divino. O outro me traz felicidade, o outro me traz amor.
E quais foram os desafios de voltar a estar em cena?
Vou começar falando em termos de idade. Tenho 70 anos. Então você começa a perceber as limitações do corpo, do seu instrumento de trabalho. Você percebe as limitações que adquiriu com o tempo. O seu corpo não tem a mesma agilidade, o seu joelho já não tem a mesma sustentação. Foi muito interessante notar essas mudanças.
Já que eu não posso fazer a peça nessa potência, para onde posso ir? Mudam as escolhas, escolhas físicas. A memória também é outra coisa que temos que ter bastante cuidado. E isso pode te causar medo. Então criamos nossos recursos. Colocaram um ponto em cena, um profissional para me acompanhar caso eu esqueça o texto e, efetivamente, é um profissional que está ali para te ajudar e que te deixa muito mais confortável.
Acho que é uma coisa sensacional de você entender sua limitação e encontrar novos caminhos. E não se amedrontar diante disso.
Um aspecto muito importante na sua história é a sua ligação com a família. Qual era o perfil dos seus pais? Como eles reagiram diante da sua escolha pelo caminho das artes?
Nós éramos muito livres, cada uma das filhas escolheu o próprio caminho. Nós levávamos um tipo de vida que não nos confinava numa caixa. Nascemos no interior, então estávamos mais próximas da natureza do que de um sistema fechado. Isso traçou as características de cada uma e traçou escolhas reais. Meus pais sempre apoiaram minhas escolhas. Tinham uma visão de que se você fez essa escolha, você tem que seguir com ela. E papai me deu liberdade para isso, apesar de ter sido muito rigoroso na minha formação. Ele fez o máximo que pôde para ensinar as filhas a ter independência e aprenderem a sobreviver. “Primeiro se forma, depois casa”, ele dizia. E ele sempre falava: “Uma irmã deve cuidar da outra”. Mamãe era dona de casa, então cuidava de todo o necessário, para alimentar, proteger, e trazer toda a doçura materna. Então tinha uma corrente de afetividade, de cumplicidade e de cuidado.
Lembro de uma vez que o Faustão fez um Arquivo Confidencial para mim e perguntou ao papai. “Zé Carlos, a Vera te deu muito trabalho?” E ele respondeu: “A Vera nunca me deu trabalho, ela só me deu saudades.” Porque eu me mudei para o Rio de Janeiro em determinada época.
Isso é lindo demais, Vera.
Ele protegia, mas nos criou para sermos livres.
“Acho que é uma coisa sensacional de você entender sua limitação e encontrar novos caminhos. E não se amedrontar diante disso”
Vera Holtz
Você se mudou de Tatuí para São Paulo para estudar na Escola de Arte Dramática. Como foi essa mudança? Qual foi a sua impressão da cidade?
Quando entrei na Escola de Arte Dramática, eu achei São Paulo uma cidade fantástica, mas era 1968, um período de muita pressão política. Eu achava fascinante esse anonimato que a cidade grande nos traz. Ela é muito potente nesse sentido. Sem falar na diversidade, pessoas de tudo que é lugar do Brasil, de nichos e linguagens tão diversas. É uma cidade muito ligada ao movimento do mundo.
Você comentou sobre a experiência na EAD. Até hoje ela é uma escola muito cobiçada por aqueles que desejam construir um caminho nas artes cênicas. Mas é também conhecida pela dificuldade e concorrência na seleção. Fiquei curioso para saber como foi o seu processo seletivo na escola.
Eu era um pato fora d’água, aquele não era o meu universo. Estava vindo do universo da música, das artes plásticas, então eu não entendia muito essa mítica, esse sistema de crenças do mundo do teatro. Para mim, era tudo arte e aquela era mais uma arte que eu que estava querendo aprender. Mas de fato era muito pesado. Na época tinha uma proporção de 400 pessoas para ocupar 20 vagas. E eu não entendia nada daquilo. Tinha todo esse fuxico sobre a dificuldade de entrar na EAD, mas para mim foi um caminho de acaso mesmo. Eu consegui fazer minha matrícula fora do prazo porque o funcionário me autorizou. Era um dia de muita chuva. Então foi uma sucessão de situações que me levou a passar.
Foi tudo descoberto ali, não sabia o que esperar. Teve prova de improvisação, de interpretação, de dança, de português. A prova de português era sobre uma obra que eu nunca tinha lido, mas eu era bem espertinha.
O meu aprendizado de teatro foi através da escola. Fiquei dois anos em São Paulo, na EAD. Eu trabalhava no IPT durante de dia e ia para EAD à noite. Depois, consegui um trabalho Rio como desenhista técnica, no departamento de Geologia, e fui embora.
Você transitou por diversas linguagens artísticas e, mais recentemente, começou a produzir essas fotografias fantásticas para as redes sociais, refletindo contextos e situações diversas. Como nasceu essa persona performática?
Percebi que consigo me comunicar muito mais por uma imagem do que pela elaboração da palavra. E como aprendi muito cedo com o desenho, com a história em quadrinhos, então a imagem, para mim, vem antes do que as palavras. Durante muito tempo, eu falava desenhando, estudava desenhando.
Quando isso [as fotografias] aconteceu, gostei muito. As pessoas podem refletir comigo a partir de uma imagem. Algumas fotos são meio premonitórias, elas são produzidas muito antes de eu publicar. Fico aguardando a hora dela ser publicada. É uma forma que encontrei de me comunicar sem ter que juntar um monte de palavras.
Isso era algo que você já fazia no seu particular e quis mostrar para os seguidores?
Não, foi tudo descoberto online. Me disseram que eu precisava criar uma conta nas redes sociais. E eu achava que não ia conseguir acompanhar o ritmo, ainda mais uma pessoa da minha geração, que leu muito cedo 1984 [de George Orwell]. Não é da minha natureza ficar registrando cada instante da minha vida. Tentei, mas não deu certo. Até que um dia, estava com o Charles Azevedo, que também é ator, e eu estava muito invocada porque todos os homens estavam usando aquele coque samurai. “Por que estão todos usando esse coque?”. Aí ele pendurou um saco plástico na minha cabeça e eu gostei e pedi para ele fotografar. Em outro momento, estava em Tatuí, minha prima pendurou um balão no meu coque e eu pedi para ela fotografar. Aí comecei a expandir, comecei a série do coque.
É uma linguagem que você executa e aprende ao mesmo tempo. É um bate-cabeça.
“Eu era um pato fora d’água, aquele não era o meu universo. Estava vindo do universo da música, das artes plásticas, então eu não entendia muito essa mítica, esse sistema de crenças do mundo do teatro. Para mim, era tudo arte e aquela era mais uma arte que eu que estava querendo aprender”
Vera Holtz
Você já pensou em expor?
Já fui convidada, mas senti que ainda não estou nesse movimento. Ela [a imagem] foi feita por um telefone móvel para aquele espaço, naquele formato e tamanho. Acho que expor é para outro momento. Mas vai chegar.
Você falou sobre como apreende o mundo através da imagem. Isso se reflete também no seu trabalho de atriz, na construção de um papel?
Eu nunca sei qual é o caminho. Ou eu percebo pela música, pela dança, pelo desenho. Minhas percepções são muito circulares. E com o trabalho é a mesma coisa. Ontem mesmo, o Rodrigo falou: “O que um diretor tem que fazer com você, Vera, é tirar o excesso”. É como se eu viesse com uma dinâmica muito elaborada porque, para eu chegar numa personagem, dou uma volta gigantesca para tentar entender em toda a sua complexidade. Então, percorro um caminho gigante e, quando chego, estou muito carregada.
É um processo demorado?
Depende, pode ser uma fagulha. De repente, eu entendo e estou pronta. Ou pode demorar um pouquinho mais.
E como foi com Ficções?
Eu já tinha lido o livro. Ele trata das coisas criadas pela natureza e pelo homem. E nunca imaginei que isso fosse chegar até mim. Até que o Rodrigo me liga e disse querer fazer uma adaptação do livro e que gostaria que a narrativa fosse contada por uma mulher. “Eu queria muito que fosse você. Para mim só tem sentido se for você”, ele me disse.
Até fui bem flexível. Normalmente, eu não sou muito quando me colocam na parede. Eu já sabia bastante sobre o Rodrigo, ele já fez muita coisa no Rio de Janeiro. Muitas pessoas falavam dele com muito afeto. Eu ficava admirada com essa vibração que ele transmitia de manter as pessoas conectadas a ele, desejosas de sua presença. Fiquei curiosa para conhecer e estar próxima a ele em um trabalho. E disse: “Vamos nessa”.
Fomos estudando a obra no caminhar. Não tinha nada prévio, a não ser a minha relação com o livro. Eu comecei a reler, mas parei porque entendi que precisava ter outra linguagem, teatral mesmo. Começaram a vir os textos do Rodrigo, um volume muito grande. Com 15 dias de ensaio, já estávamos lendo a peça para convidados. E ela foi se firmando no dia a dia.
“Fomos estudando a obra no caminhar. Não tinha nada prévio, a não ser a minha relação com o livro. Eu comecei a reler, mas parei porque entendi que precisava ter outra linguagem, teatral mesmo”
Vera Holtz
No ano passado, você deu uma entrevista dizendo que não sente que houve um afunilamento de personagens disponíveis para você conforme foi envelhecendo. Esse, entretanto, é um debate muito forte por atrizes nos EUA, a respeito da limitação de papéis que chegam até elas. O que você acha que muda no cenário brasileiro? A presença da teledramaturgia tem um peso nisso?
A teledramaturgia precisa disso, da diversidade etária do elenco. Se você reduzir a idade de todo o elenco, você limita demais. Não vamos ter Laura Cardoso, Fernanda Montenegro ou Lima Duarte. E, até antes da pandemia, estava todo mundo trabalhando, é um núcleo muito forte.
É fundamental construir um casting bem equilibrado, com várias idades e temperamentos.
Eu acho que se deve, sim, a isso. Agora com a entrada do streaming, das séries, essa limitação diminuiu bastante. Você pega as séries internacionais, todas elas têm atrizes de várias idades protagonizando ou como antagonista ou coadjuvantes, mas com papéis bastante significativos.
Gostaria de fazer uma última pergunta. Você tem algum desejo não realizado nas artes cênicas? No teatro ou cinema?
Nunca tenho uma resposta para essa pergunta. Não tenho esse desejo antecipado do amanhã. Estou muito presente no aqui e agora. Acho também que as personagens encontram a gente em algum momento, então não crio muita expectativa.
Tenho alguns projetos pela frente, já encaminhados. Mas venho bem até aqui. Foi uma escolha bastante feliz na minha vida e continuo olhando para ela com muita alegria e motivação.
Teatro FAAP
R. Alagoas, 903 – Higienópolis
Até 26 de março de 2023
Sextas e sábados às 20h; domingo às 18h
Entre R$ 50 e R$ 150