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Com Vera Holtz, peça “Ficções” evoca paradoxo entre criação e vida

Transposição teatral do livro “Sapiens”, adaptação de Rodrigo Portella aborda a realidade ficcional do ser humano

Por Gabriela Mellão
Atualizado em 22 Maio 2024, 12h08 - Publicado em 22 Maio 2024, 09h00
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 (Ale Catan/divulgação)
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Uma moldura, ornamento que dá status de arte a uma obra, enquadra um meteoro na peça Ficções, livre adaptação assinada por Rodrigo Portella do best-seller “Sapiens- Uma breve história de humanidade”. A moldura tomba (idealização da cenógrafa Bia Junqueira), evocando o paradoxo entre criação e vida que está no cerne do livro escrito pelo filósofo israelense Yuval Noah Harari.

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(Companhia das Letras/divulgação)

Nele, Harari salienta a realidade ficcional do ser humano, já destacada por Shakespeare em Medida por Medida“O mundo é um palco; os homens e as mulheres meros artistas, que entram nele e saem” —, transformada em paródia por Portella no espetáculo que foi um dos destaques da cena teatral do ano passado e está de volta ao teatro Faap, em São Paulo, até 20 de julho, após uma turnê de 22 cidades do Brasil e de Portugal.

A peça explora o sentido de ficção em diversas direções, conectando realidades criadas pela humanidade com o próprio acontecimento teatral. Enquanto a protagonista Vera Holtz repassa fragmentos da história criada por sua espécie sobre ela própria, invenções se transformam, se misturam. Num momento, uma banana é uma banana. No outro, é um telefone por meio do qual a atriz conversa com seu suposto marido, de mesmo nome que o autor de “Sapiens” — ele próprio representado de diferentes maneiras dependendo da cena.

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Vera Holtz em cena de Ficções (Ale Catan/divulgação)

De primata, Holtz passa a imperador da Babilônia, asno com pinta de professor, fóssil em busca de identidade, ela mesma e ainda, visitando o trágico que chega com a força do desavisado, uma mulher tiranizada, violentada, escravizada, entre outros personagens. A peça se propõe a descortinar ficções da civilização quebrando a ilusão teatral. As metamorfoses são desconstruídas de modo a revelar o máximo de realidade que se pode chegar em um território ficcional como o teatro.

Numa atuação híbrida entre Vera e a multiplicidade de personas que atravessa, a atriz ressalta a realidade fantasiosa da vida e, ao mesmo tempo, o caráter verdadeiro dessa irrealidade. A ficção não é falsa. Existe, e é justamente por isso que a atriz está em cena tentando construir uma verdade sobre si mesma, um entendimento sobre o que supõe, o que inventa, quem é, o que sabe sobre si, sua espécie e o mundo em que vive.

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(Ale Catan/divulgação)

Está em busca de compreensão e satisfação e vai terminar sua jornada nômade como seus ancestrais, rejeitando, se não todas, ao menos uma boa parte das construções que o homem criou com o intuito de organizar e fazer progredir a sociedade como dinheiro, sistemas políticos, religiões, ideologias, cujo resultado hoje é: de um lado a disparidade social, do outro o aprisionamento progressivo da liberdade individual. Holtz tenta conscientizar seus companheiros de raça e descontentamento sobre o fato de que, apesar da humanidade contemporânea ser mais poderosa em relação a seus ancestrais, não é mais feliz e deveria fazer algo a respeito disso.

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No livro, um fenômeno com mais de 23 milhões de cópias vendidas em todo o mundo, Harari compõe uma narrativa histórica de todas as instâncias do percurso humano sobre a terra para leitores comuns. Com rigor científico e linguagem acessível, explica de forma leve e descontraída como o Homo Sapiens se tornou espécie dominante no planeta. Além do conteúdo, a linguagem da obra também inspira a adaptação teatral de Portella — autor e diretor que ganhou todos os prêmios importantes de teatro brasileiro na última década. Ao lado de Christiane Jathay, ele é o encenador brasileiro mais internacional do país (atualmente, ele está à frente da turnê europeia de “Tom na Fazenda”, peça escrita pelo canadense Michel Marc Bouchard).

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(Ale Catan/divulgação)

Portella conduz o espectador em uma viagem livre e descompromissada pela história da humanidade. A graça e abrangência da linguagem da peça estabelecem uma forte conexão com o público. Da mesma forma, Holtz se atém à capacidade de comunicação do trabalho. Atravessa a miríade de personagens que representa com despojamento e presença de palco raros de se ver. Sua atuação se equilibra entre a magnitude de uma artista em plena maturidade artística e a liberdade de uma criança intocada pelas convenções do mundo, que dá vida a tudo o que toca dotada de uma força vital contagiante.

Em Ficções, Holtz está em casa. Domina a cena e os Homo Sapiens da plateia, tal como o trigo fez com a população nômade no início da civilização humana. O cereal acabou por domesticar o homem (do latim domus, casa – domesticar: manter em casa) — a perspectiva da vida farta e segura da atividade agrícola gerou a necessidade de estocar grãos e, como consequência, surgimento de doenças, títulos de propriedades, invasões, violências, explosões populacionais.

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(Ale Catan/divulgação)

Na contramão deste movimento, a atriz domina os Sapiens para libertá-los do ciclo de aprisionamentos no qual se encontram consciente ou inconscientemente. Desarma suas proteções para torná-los mais receptíveis às reflexões críticas que conduz, adensadas no desenrolar do espetáculo.

É visível a musculatura adquirida por Ficções após quase 1 ano de estrada – 75 mil espectadores, 31 indicações de prêmios na bagagem e 5 estatuetas, como a de melhor atriz no Prêmio Shell e APTR.

Vera surge ainda mais à vontade, livre e potente em cena para entreter e despertar a consciência da plateia. Está só e muito bem acompanhada no palco. Ficções é um monólogo feito em dupla. A atriz divide a cena com o músico italiano radicado no Brasil Federico Puppi, cujo talento para criar trilhas originais já foi destaque no país em peças como Enquanto você voava, eu criava raízes, da Cia. Dos à Deux e Mutações, de André Guerreiro Lopes.

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(Ale Catan/divulgação)

Holtz e Puppi travam um diálogo constante que aproxima o espetáculo de uma Jam Session. A troca parece ter a linguagem do improviso como norte tamanha a espontaneidade e a vitalidade conquistadas. Ora a trilha executada ao vivo imprime o tom e o ritmo para a atriz, ora o caráter da cena conduz a criação de Puppi. Também cantam juntos, como no duelo memorável no qual cada um se serve de seus melhores instrumentos – ela a voz e ele o cello – para compor uma canção de onomatopeias.

A comunicação viva entre os dois presentifica a cena gerando mais uma camada de invenção – ou seria de realidade? – nesta mistura entre fatos e ficções criada por Portella para embaralhar a mente do espectador treinando sua percepção a desconfiar de convicções e, quem sabe, subir novos degraus na empreitada da conscientização de sua trajetória pessoal e coletiva. Há sempre novos degraus a galgar sobretudo quando o que está em jogo é seu desenvolvimento próprio, ou de sua espécie.

O espectador pode até driblar o proposto pelo espetáculo, mas ao sair do teatro vai ter que lidar com uma ficção bem mais complexa. Afinal, não há como escapar desse jogo ficcional que é a vida.

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(Ale Catan/divulgação)
Ficções

Teatro FAAP (Rua Alagoas, 903)
Sextas e sábados às 20h; Domingos às 18h; até 20/07
Ingressos: de R$ 21 a R$ 160
Classificação: 12 anos

 

 

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