As múltiplas faces do mal
Na adaptação polifônica do romance “Vista Chinesa”, o espectador percorre os labirintos da confusão mental de uma vítima de estupro
O mal se impõe desavisadamente. Um trauma não anuncia que vai traumatizar. A violência não acena da esquina mostrando sua face de terror antes de violentar.
Era uma terça-feira de 2014 quando Julia foi estuprada, conforme a atriz, também Julia (Lund), relata no espetáculo Vista, da Cia. Polifônica, em cartaz em São Paulo. A época era de euforia e segurança reforçada, dois meses antes do Brasil sediar a Copa do Mundo, e dois anos depois do Rio sediar as Olimpíadas. Todas as atenções estavam voltadas ao chamado país do futuro.
Julia não imaginava que conheceria a maldade naquele dia, quando saiu do seu escritório de arquitetura para correr ali perto, às margens da Vista Chinesa. Não podia imaginar. Ninguém pode. Ninguém imagina. A vida não muda da noite para o dia. A não ser que se depare com a face do mal.
Algumas pessoas passam a vida associando o mal à morte de alguém amado, ao término de um relacionamento, à quebra de um braço, à perda do emprego. Outras não. Para outras o mal não está relacionado à finalização de um ciclo ou ao sentimento de tristeza. O mal é o horror. O mal é o atropelo acompanhado de uma mistura de culpa, vergonha, raiva, nojo, e incerteza. O mal é a certeza eterna da incerteza.
Através da história de Julia, Vista abre passagem para uma reflexão sobre o mal. A peça é uma adaptação do romance ficcional baseado em fatos reais Vista Chinesa (2021), de Tatiana Salem Levy, que foi finalista do prêmio Jabuti. É dirigida por Luiz Felipe Reis, um estudioso do teatro contemporâneo que cobriu essa arte por quase uma década no jornal O Globo, e que desde 2014 desenvolve uma pesquisa prática e teórica sobre polifonia e novas linguagens nas artes cênicas.
O trabalho polifônico de Vista se dá em diversos níveis, no plano temático e formal, através da composição de diferentes perspectivas do trauma. O processo de elaboração não é linear, inclui avanços e retrocessos, delírios, recordações, esquecimentos, passos em direção e oposição à ressignificação e, por fim, a transformação. Todos eles são retratados em cena, compondo uma multiplicidade de situações, vozes e temperaturas para a montagem, tendo como suporte estético a articulação entre teatro, música e cinema.
É essa articulação que dá conta dos jogos de memória da protagonista. Eles partem da realidade mas a ultrapassam para que suba ao palco a mente de Julia mais do que o fato ocorrido em si, e com ela seu ciclo infernal de sensações e experiências.
“Ninguém é verdadeiro com a lucidez”, diz a protagonista em cena, em uma confissão aos filhos. É um relato gravado em vídeo, projetado na tela que ocupa a parede central da cena. Uma carta filmada que Julia deixará na “gaveta” até que seus filhos tenham idade para recebê-la – se é que alguém algum dia tem idade para receber uma carta com tal teor.
O espetáculo se inicia com esse relato, e retoma-o repetidas vezes. A realidade é o fio condutor da obra. As atmosferas de delírio surgem sempre a partir dela, desse chão concreto que a compõe, num vai e vem tensionado progressivamente até a redenção final. A concretude de um piso de terra, não por acaso, ocupa parte do palco. É circundado por algumas plantas, evocação da do mirante da Vista Chinesa, na Floresta da Tijuca, para onde Julia foi arrastada. Simboliza também a realidade crua de Julia e de tantas mulheres vítimas de abuso.
Loopings de palavras e sons dão forma ao desassossego mental de Julia na elaboração do ocorrido, nas suas tentativas de reconstrução e nos interrogatórios aos quais é submetida a fim de descrever e identificar o estuprador.
Composições sensoriais são projetadas na tela sob o formato de vídeo. Imagens trêmulas, embaçadas, interrompidas convidam os espectadores a adentrar corpo e mente da protagonista, percorrer suas dúvidas, imprecisões e sobretudo a montanha russa de emoções que passa pelo assombro de seu passado, pelos abismos de seu presente e pela confusão do futuro. O percurso é árduo. Tira o ar, tira o norte, e pode causar enjoo. Na maratona rumo à redenção, Julia busca a cura. A luta é pela superação de um trauma pessoal mas a história acaba por engrossar um coro feminino que briga há séculos numa batalha de dimensões sociais.
O livro e a peça reavivam o tema da necessária transformação de um sistema de relações de poder. O estupro da personagem é também o estupro da misoginia, do machismo, da cultura de violência e dominação de um país. Viver o mal, segundo Julia, a fez conhecer o inferno. Vista enfoca a pluralidade de sensações que irrompem a partir deste encontro tenebroso, evidenciando a face borrada, assustadora e múltipla do que ela denomina diabo. É difícil recompô-la, é ainda mais difícil esquecê-la.
Sesc Av. Paulista – Av. Paulista, 119, Brigadeiro, São Paulo
Até 2/7. Quintas, sextas e sábados, às 20h, domingos, às 18h
Classificação etária: 16 anos
Ingressos: De R$ 10 a R$ 30