Yuri Grigorovich: quem foi o Czar polêmico do Bolshoi que revolucionou o balé
Ex-diretor e coreógrafo morreu aos 98 anos deixando um legado ambíguo de genialidade e tirania ao longo de sua carreira

Com coração de bailarina entristecido, faço a menção à passagem de Yuri Grigorovich, aos 98 anos, em Moscou. O ex-bailarino, coreógrafo e diretor do Ballet Bolshoi por 31 anos – cobrindo seu período de maior destaque histórico – era conhecido por sua genialidade assim como intransigência e mão firme, bem arquetípica como os filmes de balé costumam mostrar.
De baixa estatura – tinha 1,52m – criou balés gigantescos e brilhantes: Spartacus é sua peça assinatura (mas eu prefiro Ivan, o Terrível) e era considerado um líder tirânico, arrogante, mas sim, genial. Grigorovich também foi apontado como o arquiteto da era de ouro do Balé Bolshoi e uma das figuras mais influentes — e controversas — do balé do século 20.

Sua dança era esteticamente bela, complexa, atlética, densa e sempre ideológica. Foi o homem perfeito para a propaganda comunista da Guerra Fria, mas suas obras superam qualquer política justamente por ter sido tão criativo e inovador.
Quem foi Yuri Grigorovich? Nascido em 1927 em Leningrado, atual São Petersburgo, em uma família ligada ao balé, Grigorovich parecia predestinado a construir sua vida nos palcos. Foi no Teatro Kirov (hoje Mariinsky) que ele se formou como bailarino e onde deu os primeiros passos como coreógrafo. Seu talento logo o colocou em evidência — não apenas por sua técnica e rigor, mas por uma visão de mundo que, ainda jovem, já era colossal: o balé como linguagem total, espelho do heroísmo, da emoção grandiosa e do destino coletivo.

Essa visão encontrou eco e respaldo no Kremlin, por isso, em 1964, foi nomeado coreógrafo-chefe do Teatro Bolshoi, em Moscou — e ali permaneceu por mais de trinta anos. Com ele, a dança clássica virou um importante instrumento de propaganda, orgulho nacional e disputa simbólica justamente porque ele entendeu como ninguém esse jogo, e fez dele um espetáculo.
Balés como os já citados Spartacus e Ivan, o Terrível, A Idade do Ouro, ou as revisões de O Lago dos Cisnes e Raymonda estão registradas em várias gravações. Sua obra considerada a mais autoral é A Flor de Pedra (baseada num conto folclórico dos Urais, com música de Prokofiev), se tornaram vitrines da força estética e política do Bolshoi e que ele apresentou no Brasil, quando veio pela primeira vez ao país em 1986. Seu estilo, grandioso, cinemático e viril, expandia a fisicalidade dos bailarinos homens, redesenhava clássicos sob um olhar de dramaturgia épica e privilegiava o balé como narrativa popular e monumental.
Mas não se constrói uma era sozinho. Grigorovich foi também um mestre de parcerias. Trabalhou com as maiores estrelas de sua geração — e, em muitos casos, moldou-as. Maya Plisetskaya, uma diva consagrada quando ele chegou ao Bolshoi, teve com ele uma relação criativa intensa e, por vezes, bem tensa. Plisetskaya detestava algumas de suas interpretações excessivamente heróicas dos papéis femininos — mas também se beneficiou da visibilidade que suas montagens geravam. Já com Vladimir Vasiliev e Ekaterina Maximova, o coreógrafo construiu uma tríade mítica. Vasiliev foi seu Spartacus definitivo — musculoso, expressivo, atlético no papel masculino mais exigente já criado — enquanto Maximova brilhou em papéis de lirismo e complexidade emocional, sendo uma das intérpretes prediletas do coreógrafo.

Mas nem tudo eram flores. Vasiliev — que muitos consideram um bailarino ainda maior que Rudolf Nureyev e que mais tarde veio a dirigir o Bolshoi — liderou a “rebelião” junto com sua esposa, Maximova, assim como as estrelas Maris Liepa e Plisetskaya, que criticavam abertamente o comportamento cada vez mais autocrático de Grigorovich, seu monopólio do repertório e o que muitos consideravam seu estilo coreográfico pesado e monumentalista. As críticas vindas do Ocidente, antes descartadas como propaganda capitalista, agora começavam a ser levadas mais a sério.
Plisetskaya (falecida em 5 de maio de 2015), que recusou várias oportunidades de fugir para o Ocidente por amor e lealdade ao Bolshoi — que chamava de “o maior palco que existe” — nutria rancor particular por Grigorovich. Ela o acusava de favorecer sua esposa, Natalia Bessmertnova, com os melhores papéis. E, embora Plisetskaya já tivesse mais de 40 anos, ainda era a queridinha do público moscovita amante do balé.

Tampouco se intimidava facilmente com o temperamento vulcânico de Grigorovich, construindo sua própria facção de bailarinos dentro da companhia. Uma referência velada a Grigorovich em sua autobiografia diz: “Nossa vida servil, e depois semi-servil, deu origem a muitos pequenos Stalins. A argamassa da sociedade soviética era o medo… E havia muitos motivos para ter medo no Bolshoi.”
Após anos de intrigas crescentes nos bastidores do Bolshoi, Grigorovich foi demitido em 1995, sendo sucedido por Vasiliev. Apesar dos dramas, Grigorovich ainda contava com muitos membros leais dentro da companhia, que organizaram uma greve em sua defesa.

No plano pessoal, sua ligação mais profunda foi mesmo com sua musa, Natalia Bessmertnova, primeira-bailarina absoluta do Bolshoi e sua esposa por mais de 40 anos. Bessmertnova era o corpo ideal para sua visão artística: intensa, trágica, dotada de uma espiritualidade silenciosa que Grigorovich explorava como ninguém. Juntos, criaram interpretações que se tornaram definitivas — especialmente nos papéis femininos que ele reformulava à imagem de uma feminilidade quase mística. Sua morte, em 2008, foi um golpe duro para o coreógrafo, que a homenageou em cada reapresentação de suas obras nos anos seguintes. Jamais se casou de novo.
Grigorovich foi também responsável por coreografar a abertura das Olimpíadas de Moscou, em 1980, e participou como jurado de competições internacionais como o Benois de la Danse, o “Oscar do balé”. Sua fama extrapolava as fronteiras da União Soviética, embora raramente tenha trabalhado fora de seu país — por escolha própria e por razões políticas. Ao mesmo tempo em que encarnava o poder cultural do regime, era também vítima dele: enfrentou censura, vigilância e foi afastado do Bolshoi em 1995 sob acusações de esgotamento criativo e autoritarismo estético. Mas mesmo fora do posto, sua sombra permanecia. Retornou em 2008, não mais como dirigente, mas como guardião do repertório que ele próprio construíra.

“Ele via em nós o que nem nós víamos”, declarou Denis Rodkin, primeiro-bailarino da nova geração. “Fazia-nos sentir cada momento.” Já Nikolai Tsiskaridze, um dos mais vocais representantes da velha guarda, sintetizou: “Foi uma grandeza que não pode ser superada.”
Grigorovich deixa um legado ambíguo e inescapável. Foi gênio e tirano, inovador e conservador, criatura do Estado e senhor de si. A forma como entendemos o Bolshoi — sua estética, sua teatralidade, sua ideia de nação encarnada na dança — passa, quase sempre, por ele. Com sua morte, encerra-se o último grande capítulo da coreografia soviética. Mas sua influência, como ele próprio dizia sobre o movimento no palco, “nunca termina — apenas se transforma”.