Por que esta pintura de Francis Bacon chocou o mundo?
Na versão mais “crua” do original do espanhol Diego Velázquez, a agressividade e a distorção das formas espantam o observador
Na exposição que o irlandês Francis Bacon fez em 1949, uma tela destoava das demais: “Estudo a partir do retrato do papa Inocêncio X de Velázquez”. O tronco ornado com uma capa roxa fugia da série de obras monocromáticas exibidas pelo pintor naquele ano. Era o ensaio para uma seqüência de quadros que Bacon faria a partir do retrato original do papa Inocêncio 10, pintado por Diego Velázquez em 1650. Velázquez, o retratista oficial da nobreza espanhola do século 17, usava as tintas para criar imitações fidedignas do mundo real. Quase 300 anos depois, Francis Bacon (1909-1992) ignorou as convenções sociais para captar outra versão, que ele afirmava ser mais “crua”, da realidade.
Durante a década de 1950 (e, com menos freqüência, nas de 1960 e 1970), Bacon se dedicou a estudos estimulados pelas reproduções do quadro de Velázquez. Em seu ateliê, essas cópias conviviam com mui- tas fotografias, entre elas as experimentações de Eadweard Muybridge (1830-1904) com o movimento de imagens. Uma referência curiosa era o livro Positioning in Radiography, em que fotos de pessoas preparadas para tirar raio X e a própria radiografia apareciam lado a lado.
Posteriormente, Bacon buscaria citações no cinema para a composição de sua obra, como, por exemplo, um instantâneo em que um personagem grita no filme O Encouraçado Potemkin, de Serguei Eisenstein (1925). Assim, a serenidade do papa de Velázquez é substituída por uma expressão desesperada, como se observa na tela de 1953. Nesse ano, Bacon concebeu um conjunto de oito variações papais.
Caracterizadas pela distorção das formas, as produções de Bacon parecem apontar para uma verdade elementar escondida sob os véus da humanidade. Suas imagens são agressivas e violentamente trágicas, aviltam o retratado e, ao mesmo tempo, espantam quem as observa. Para o curador L. Carluccio, “O mundo de Bacon não se esgota em seu espetáculo de perversão, mas entra com todos os seus artifícios na nossa consciência.”
Bacon começou a pintar tarde — nos anos 1930, depois de ter trabalhado como desenhista de móveis e investido boa parte de seu tempo em cassinos. Quando mais jovem, afirmou que não tinha um tema definido ou experiência para criar. Contrariando interpretações feitas a seu respeito, declarou que a pintura não era um combinado de coisas para compreender: era resultado de instinto. Ele, portanto, não queria significar nada com suas imagens, apenas construí-las. Dizia mais: “O homem compreende que é um acidente, um ser abso- lutamente fútil, que deve jogar até o final sem motivo. Toda a arte se converteu completamente em um jogo com que o homem se distrai”. Tomar a arte como desnecessária explica o fato de Bacon se desfazer sem remorsos de seus trabalhos.
Este texto faz parte da coleção especial “100 obras da cultura mundial” publicada pela Revista Bravo! em 2008