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História queer de Francis Bacon é finalmente contada em individual do Masp

Exposição "Francis Bacon: A Beleza da Carne" no MASP traz um panorama da vida e do legado artístico do artista irlandês

Por Humberto Maruchel
20 mar 2024, 10h00

Em uma primeira busca, ao digitar o nome Francis Bacon no Google, nos deparamos com uma figura do século XIV: um retrato pintado de um homem sério, com chapéu, gola de renda e uma aparência distinta de nobreza. Este Bacon era conhecido como um filósofo e estadista da antiga Londres. Porém, em uma investigação mais aprofundada, outras imagens emergirão: retratos obscuros, rostos deformados, seres com feições atormentadas, carcaças e carne. Esta dualidade de imagens não é incorreta; afinal, um mesmo nome pertenceu a duas figuras completamente distintas, em épocas diferentes na Europa.

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Retrato de Francis Bacon (1617), por Frans Pourbus, o jovem (Wikicommons/reprodução)

A segunda delas, para nós, neste momento, é mais relevante: trata-se do artista nascido no início do século XX na Irlanda, responsável pelos desenhos que, à primeira vista, podem parecer assustadores e grotescos. Bacon desafiou os paradigmas vigentes no mundo ocidental da arte de sua época, promovendo uma ruptura com os padrões estabelecidos e criou impacto suficiente para entrar na memória da história da arte e dar um salto no tempo, chegando a uma exposição individual no nosso Museu de Arte de São Paulo (Masp), com a mostra Francis Bacon: a beleza da carne, que abre ao público em 22 de março e permanece em cartaz até 28 de julho.

A mostra faz parte da programação anual dedicada às Histórias da diversidade LGBTQIA+. Na prática, o museu paulista se propõe a revisitar obras de artistas e coletivos queer e, com isso, desenhar uma nova narrativa, não tão familiar ao público. Algo que acontece até mesmo com uma figura tão conhecida nas artes como Francis Bacon, ou no Brasil, com Mário de Andrade, que também terá uma exposição individual no Masp neste mês. Francis foi um homem gay, num período e num lugar em que isso não era permitido. Naquela época, a homossexualidade era criminalizada na Inglaterra.

“Ainda hoje, as obras de Francis Bacon trazem questões pertinentes. Ele traçou um caminho único e manteve-se fiel à tradição figurativa, levando também ao limite o modo como ele trazia as figuras humanas”, conta Laura Cosendey, curadora do Masp. “Um aspecto que nos interessa nesta exposição é pensar numa leitura para além da questão pictórica, que é justamente o impacto que as obras dele tinham na própria experiência pessoal. Por isso, colocamos no contexto das histórias queer.”

Serão 24 obras expostas no Masp, desde o início de sua carreira nos anos de 1930 até a década de 1980. As pinturas foram emprestadas dos museus Tate (Inglaterra), MoMA (Nova York), Metropolitan Museum (Nova York), Museum Boijmans van Beuningen (Países Baixos), Museu Tamayo (México), Fondation Beyeler (Suíça), Stedelijk Museum (Países Baixos), entre outros. Algumas de suas pinturas foram exibidas na 24ª Bienal de São Paulo, em 1998, mas num núcleo menos abrangente do que a atual exposição. Esta é a primeira grande retrospectiva NO Brasil dedicada ao artista.

Bacon foi fortemente influenciado pelos movimentos expressionista e surrealista. Ele se deteve em alguns temas em suas pinturas, como o cristianismo e o estudo da fisicalidade. Uma característica que chama atenção em suas obras e é frequentemente abordada por estudiosos diz respeito ao teor da violência, da brutalidade e da morte retratadas em suas obras. Muitos dos personagens apresentados trazem um semblante de dor e de horror, como se estivessem prestes a explodir num grito ensurdecedor. Mas para o Masp, não é a leitura da bestialidade humana que está em destaque.

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“A obra de Francis Bacon é sempre abordada na chave da violência, já que se trata de uma arte do pós-guerra, como se ela revelasse uma descrença com a humanidade. Mas essa é uma leitura questionada até mesmo pelo Bacon em vida, quando ele fala que a violência de uma pintura é diferente da violência da vida. A visão que trazemos é de um olhar atento ao corpo como desejo, então mostramos como as coisas são ambíguas, não é um caminho da violência ou do desejo, as coisas caminham juntas”, aponta Isabela Loures, assistente curatorial do museu.

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Francis Bacon (Dublin, Irlanda [Ireland], 1909-1992, Madrid, Espanha [Spain])
Man at a Washbasin [Homem em um lavatório], c.1954
Óleo sobre tela [Oil paint on canvas], 170.8 × 135 cm
Private Collection
CR 54-02
© The Estate of Francis Bacon. All rights reserved. AUTVIS, Brasil / DACS/Artimage, London 2024. Photo: Prudence Cuming Associates Ltd (MASP/reprodução)

Um voo sobre a vida do artista

Nascido em Dublin, em 1909, Francis Bacon teve um começo de história triste e brutal. Com apenas 16 anos, foi expulso de casa pelo pai, Anthony Edward, um major do exército aposentado. O suposto motivo: teria sido visto experimentando peças íntimas de sua mãe. Para o pai, algo parecia errado com a natureza do rapaz.

Obrigado a buscar outros modos de sobreviver, saiu vagando para longe da terra natal. Teve empregos temporários e contou com uma modesta ajuda de sua mãe. Passou por Berlim, onde teve o primeiro encontro com o universo cultural, Paris, até chegar a Londres. Há até uma curiosa passagem em sua biografia que diz que seu pai, inconformado com o filho ser afeminado, incumbiu Francis de acompanhar um amigo da família, Harcourt-Smith, a uma viagem para Berlim. Harcourt era conhecido por ser um homem super masculino. A expectativa do pai era que, de alguma maneira, o homem influenciasse Bacon a ser igual. Mas ao invés disso, os dois tiveram um breve caso amoroso durante a viagem. Berlim, na década de 1920, vivia um período de grande expressão e liberdade, que logo seria interrompida pelo nazismo.

Em Paris, Bacon teve contato com obras de artistas, de Pablo Picasso a Nicholas Poussin, que viriam a inspirá-lo e desenvolver nele a vontade de ingressar no mundo da arte. “Ele é a figura paterna, que me deu o desejo de pintar”, declarou o pintor a respeito de Picasso em uma de suas entrevistas. Teve também contato com diversos pintores clássicos. E foi em Londres que engrenou sua carreira artística.

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Na Inglaterra, durante um breve período, trabalhou como decorador e designer de móveis. Em 1933, apresentou a sua primeira pintura, “Crucifixion”. Sua interpretação da passagem bíblica nada tinha a ver com as imagens tradicionais de um homem pendurado na cruz. Sua pintura traz muito mais a impressão de uma carcaça pendurada, num quarto escuro. A obra já prenunciava o seu interesse pela carne, que viria a se tornar tema de outras pinturas nas décadas seguintes.

A escolha do nome para a exposição no Masp traduz essa sua curiosidade. Em entrevista ao crítico David Sylvester, ele chegou a falar sobre uma constatação que teve ao passar na frente de um açougue, e ao invés de horror ou mesmo indiferença, ele enxergou beleza nos pedaços de carne. “Somos carne, somos carcaças em potencial”, disse ele. “Se eu entrar em um açougue, sempre acho surpreendente que não fosse eu ali no lugar do animal.”

A carne, o corpo

“São sobretudo os corpos que me interessam”, o artista chegou a admitir, certa vez. Isso fica mais evidente quando se olha suas pinturas numa fase mais amadurecida, especialmente nas últimas duas décadas de vida, em que as figuras antes borradas vão se tornando mais claras. Havia uma curiosidade particular sobre o corpo nu masculino. Bacon, inclusive, chegou a pintar alguns de seus amantes. Como na obra “Male Nude Before Mirror” (1990), em que é possível ver um homem nu se olhando no espelho. Há, no entanto, peças com um teor mais sexual, embora a imagem fosse menos figurativa, como “Two Figures” (1953), que mostra dois homens em pleno ato sexual, quando a relação entre duas pessoas do mesmo sexo ainda era passível de prisão. Devido a outra obra semelhante, “Two figures in the grass”, o artista quase foi preso em 1955, numa exibição no Institute of Contemporary Arts, após uma denúncia de um visitante. Mas acabou sendo interpretada como dois homens lutando pela polícia.

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A exposição Francis Bacon: a beleza da carne trará ainda alguns dos retratos que Bacon fez de alguns de seus parceiros, como Peter Lacy (1916-1962) e George Dyer (1934-1971). Este último teve um desenlace trágico. O rapaz morreu por overdose dois dias antes de uma exposição importante de Bacon. Em homenagem ao falecido parceiro, ele criou a série The Black Triptychs (1972 – 1974), uma maneira de expurgar a dor do luto.

“É um exercício de pensar como essas pautas, quando falamos de diversidade sexual, não são exclusivas do presente. Elas sempre estiveram na história da arte. É incontornável trazermos o modo como ele teve que enfrentar essas questões, como ele lidou com as ambiguidades para inserir seus trabalhos na cena de arte de sua época”, conclui Laura Cosendey.

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Francis Bacon (Dublin, Irlanda [Ireland], 1909-1992, Madrid, Espanha [Spain])
Study for Self-Portrait [Estudo para autorretrato], 1981
Óleo sobre tela [Oil on canvas], 198 × 147.5 cm
Von der Heydt-Museum, Wuppertal
CR 81-06
© The Estate of Francis Bacon. All rights reserved. AUTVIS, Brasil / DACS/Artimage, London 2024. Photo: Prudence Cuming Associates Ltd (MASP/reprodução)

Francis Bacon: a beleza da carne

22.3—28.7.2024
Masp — Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
Avenida Paulista, 1578 – Bela Vista São Paulo, SP
Horários: terças grátis, das 10h às 20h (entrada até as 19h); quarta a domingo, das 10h às 18h (entrada até as 17h); fechado às segundas
Agendamento on-line obrigatório pelo link MASP.org.br/ingressos
Ingressos: R$ 70 (entrada); R$ 35 (meia-entrada)

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