Galeria Claudia Andujar de Inhotim recebe obras de 22 artistas indígenas
A exposição inaugura uma nova fase curatorial do museu, aproximando a arte contemporânea das vozes e lutas dos povos originários

Para os amantes das artes, Inhotim tornou-se um lugar mítico, um santuário,uma espécie de Disneylândia das artes. Localizado em Brumadinho, Minas Gerais, o museu ao ar livre ocupa 786 hectares, o equivalente a mais de 1.100 campos de futebol. Em meio a esse território imenso, também marcado por uma das maiores tragédias socioambientais da história recente do país, Inhotim se afirma como um dos grandes patrimônios culturais do Brasil.
Dessa área total, 97 hectares estão abertos à visitação, reunindo obras de arte contemporânea, jardins botânicos e paisagens de tirar o fôlego. Ali, os artistas são tratados quase como divindades, com galerias permanentes que funcionam como templos dedicados à sua criação. Esses espaços foram concebidos especialmente para abrigar obras de nomes como Adriana Varejão, Cildo Meireles, Doris Salcedo, Tunga, Miguel Rio Branco, entre outros.
Quase no limite da imensa área nativa, uma dessas casas abriga obras de uma das fotógrafas mais renomadas do país, Claudia Andujar. Sua “casa”, no entanto, passou por transformações recentes. Mais do que mudanças físicas, ela abriu espaço para dividir seu ambiente com outros artistas que compartilham da mesma missão à qual ela dedicou a vida: dar visibilidade à luta — e, agora, à arte — indígena. Já em sua inauguração, em 2015, a Galeria Claudia Andujar ganhou outro nome complementar: Maxita Yano, que, em língua Yanomami, significa “casa de terra”, que agora ganha um novo sentido.

Recentemente, o espaço passou a abrigar também obras de outros 22 artistas indígenas da América do Sul: Aida Harika Yanomami, Alexandre Pankararu, David Díaz Gonzales, Denilson Baniwa, Edgar Kanaykõ Xakriabá, Edmar Tokorino Yanomami, Ehuana Yaira Yanomami, Elvira Espejo Ayca, Graciela Guarani, Joseca Mokahesi Yanomami, Julieth Morales, Lanto’oy’ Unruh, Morzaniel Ɨramari Yanomami, Olinda Silvano, Oneron Yanomami, Paulo Desana, Renata Tupinambá, Roseane Yariana Yanomami, Salomé Ohotei Yanomami, Tayná Uãraz, Tiniá Guarani Pankararu e UÝRA. Suas obras renovam o olhar sobre a trajetória de Claudia e destacam temas atuais, como arte, meio ambiente e os direitos dos povos originários.

“Há 10 anos, quando a gente inaugurou essa galeria, vivíamos um contexto em relação à presença indígena na arte contemporânea que era completamente diferente do que, infelizmente, vivemos hoje. Naquela época, as instituições estavam discutindo, por exemplo, a questão dos artefatos indígenas. Muitas obras em suas coleções eram tratadas como peças isoladas, e eram raras as iniciativas que consideravam a produção indígena contemporânea como algo próprio”, declara Júlia Rebouças, diretora artística do Inhotim. “Ainda assim, quando o faziam, insistiam em comparações formais e enquadravam essas produções dentro de moldes ocidentais — câmeras brancas, celulares — como se toda e qualquer manifestação tivesse que se inscrever necessariamente naquele conjunto hegemônico e cultural.”

Nos anos 1970, Claudia Andujar iniciou uma imersão no território Yanomami, na Serra Parima, onde construiu vínculos permanentes com a comunidade, ganhou sua confiança, e registrou seus rituais, sonhos e espiritualidade por meio de imagens marcadas por luzes, sobreposições e filtros. Não pelo olhar estrangeiro, mas de alguém que, aos poucos, se integrava àquela sociedade. Sua permanência ganhou outros sentidos, e com a sua influência pôde dar visibilidade ao que vinha acontecendo. Diante das ameaças do garimpo, da Perimetral Norte e das epidemias, transformou sua fotografia em ferramenta de denúncia e articulação política, ajudando a fundar, com Davi Kopenawa, a Comissão pela Criação do Parque Yanomami, fundamental para a demarcação da Terra Indígena em 1992.
Agora, os próprios indígenas ocupam a Galeria em Inhotim com autonomia, trazendo seus cotidianos,vozes, visões espirituais e narrativas políticas a partir de suas próprias linguagens. A exposição, em cartaz por tempo indeterminado, marca uma nova fase na curadoria do museu, que ressignifica a importância de aproximar a arte contemporânea das vozes e das lutas dos povos originários. Aqui, arte e ativismo ocupam o mesmo lugar. E que espera inspirar outras instituições pelo país.

Sua abertura coincide com o aniversário de 10 anos da Galeria Claudia Andujar. Sob a curadoria de Beatriz Lemos, a mostra está estruturada em cinco núcleos temáticos que investigam as interseções entre espiritualidade, rituais, comunidade, resistência e retrato. Cada obra é exibida para dialogar com as fotografias de Claudia Andujar, criando uma narrativa que percorre toda a trajetória da artista e amplia o olhar sobre a arte indígena contemporânea em sua diversidade.
“Pensamos muito em como fazer, principalmente nesse lugar, uma conversa com a história da arte. Sair somente dessa história da Claudia, do território do povo Yanomami e da prática da fotografia, mas entender o quanto a história da fotografia também está muito ligada à própria concepção moderna de um sujeito indígena na modernidade. O quanto a história da antropologia, da etnografia, também é a história da fotografia”, afirma a curadora Beatriz Lemos.
Um dos principais destaques da exposição é o enfoque em questões urgentes para o Brasil, temas que Claudia Andujar já denunciava desde a década de 1970, no contexto da ditadura militar, como a devastação ambiental e a violência contra os povos indígenas. Algumas das obras em exibição foram comissionadas especialmente pelo museu, incluindo criações de seis artistas, entre eles Denilson Baniwa.
“Aqui, em Inhotim, apresentamos há 10 anos a realidade e o cotidiano de um povo específico dentro da floresta amazônica, mas também afirmamos a existência indígena em todos os biomas e lugares. Por isso, o convite a artistas dos países vizinhos — Colômbia, Bolívia, Paraguai — se justifica plenamente, pois esse território ultrapassa fronteiras e nações”, afirma a curadora.
A reportagem passou dois dias em Inhotim, onde pôde conversar com cinco artistas que integram a mostra, sobre suas trajetórias e fazeres artísticas. Conheça eles:
Julieth Morales (1992, Povoado Resguardo de Guambia, Cauca, Colômbia)

A obra de Julieth Morales transita entre fotografia, vídeo e performance, explorando a imagem em movimento com uma construção que se estende ao longo do tempo. Em seu trabalho, Julieth retrata um ritual essencial da comunidade Misak: a primeira menstruação, que marca a passagem da menina para a vida adulta.
Sua obra destaca ainda como a colonização e o processo de embranquecimento dificultaram a continuidade desses rituais entre as novas gerações. Julieth propõe, então, uma reinvenção desses ritos, conectando-os ao corpo e à história indígena. Embora pertença a uma tradição tão arraigada, a artista, em sua juventude, não passou por essa iniciação.
Anos depois, já distante de sua comunidade e durante a graduação em artes, ela se deparou com o vazio deixado pela ausência desse rito em sua trajetória. Em sua obra, ela reencena o ritual, mas, em vez de tecer, desfaz o tecido; um gesto simbólico que questiona a construção da mulher indígena contemporânea, seus saberes e tradições diante das transformações e perdas históricas. Os materiais utilizados, entrelaçados com fios de lã, cabelo e outros elementos orgânicos, parecem carregar a própria história em suas mãos.
“O que pensei foi que, de algum modo, a memória da minha avó estava em minhas mãos, e eu não queria isso porque, naquela época, minha avó já havia falecido. Isso me causou uma dor profunda de frustração por não entender, naquele momento, o valor do tecido para minha avó, para minha mãe e para mim agora. Somente através desse processo de autoanálise foi que pude compreender o real valor do tecido.
Ainda hoje trabalho com tecidos, mas todo o meu processo passou por essa experiência. A extensão dos tecidos que estão aqui é resultado desse constante ato de tecer. Como eu não quero que esse fio desapareça, eu teço outro, proponho um novo tecido para cada exposição.
Quando eu era pequena, não sabia tecer, mas agora, como mulher adulta, estou mais próxima do tecido. Atualmente, trabalho com mais mulheres do território, com outras mulheres: minha mãe, minha família, minhas irmãs, tias e vizinhas, que me ajudam em todo esse processo. Assim, existe uma relação importante que a academia me deixou, por um lado, mas também a possibilidade de dialogar com minha própria família, algo que antes eu não tinha.”
Edgar Kanaykõ Xakriabá (1990, São Paulo, Brasil)

A obra de Edgar Kanaykõ Xakriabá é fruto de um processo longo, nascido de sua experiência pessoal e da pesquisa sobre os múltiplos significados da imagem para os povos indígenas. Ele começou a fotografar aos 16 anos, quando sua aldeia, Barreiro Preto, passou a ter energia elétrica e equipamentos fotográficos, permitindo-lhe documentar o cotidiano, festas, rituais e celebrações.
Com o tempo, Edgar tornou-se referência local em fotografia e audiovisual, capturando momentos que expressam a vida e a luta indígena. Suas imagens manifestam o uso da fotografia como ferramentas de resistência e afirmação cultural.
A sua exposição escancara a relação entre tradição e contemporaneidade, apresentando, por exemplo, crianças envolvidas na construção coletiva de casas e brincando com arcos e flechas, ilustrando o aprendizado pelo fazer e pelo brincar. Essas crianças hoje são adultos, e Edgar busca registrar essa continuidade da memória e da vida indígena.

“Especificamente, esse recorte para essa exposição vem de um trabalho que faço junto ao nosso movimento indígena no Brasil. Tem muitas imagens que refletem a luta dos povos indígenas em relação ao Estado brasileiro, já que nossa luta ainda é pela garantia do território vivo.
Essa primeira parte da exposição traz um pouco dessa relação, mostrando como os parentes indígenas fazem uso da câmera fotográfica dentro desse movimento. Ou seja, como costumo dizer: a imagem para nós é como o arco, e a câmera, a flecha.
É assim que usamos a fotografia, o cinema e a arte em geral. Estar aqui nessa exposição é representa a luta pela terra, luta pelo território, não só geograficamente, mas também demarcar as telas, as telas do cinema, as artes, esses espaços que agora estamos ocupando. É uma forma de demarcar o território contando a nossa história, com nosso próprio olhar, mostrando nossa luta e resistência.”
Graciela Guarani (1986, Dourados – MS, Brasil)
Graciela é diretora de cinema e desenvolve trabalhos que misturam memória, oralidade e futurismo para refletir sobre a existência e a luta do seu povo. Em “Híbrida”, uma das obras comissionadas de Inhotim, e fruto da parceria com Alexandre Pankararu Guarani e sua filha, Tiniã Pankararu Guarani, ela criou uma obra audiovisual que revisita líderes indígenas históricos, buscando rememorar suas vozes e refletir sobre o futuro da juventude indígena. O trabalho combina vídeo, arquivos de imagem e uma linguagem distópica para refletir sobre o legado cultural e a importância de reconhecer o passado para construir um futuro.
“A ideia dessa obra é justamente repensar uma forma de rememorar e reverberar vozes que, há muito tempo, não costumamos ouvir. Isso está ligado à oralidade, mas sentimos uma grande falta de rememorar as grandes reverências que temos em nossos povos. Por exemplo, figuras como Massau Guarani e Angelo Pretano, entre outros nomes importantes. O vídeo utiliza uma linguagem diferente do documentário tradicional, misturando distopia com uma pitada de futurismo. O enredo é construído a partir de arquivos dessas pessoas que já partiram, com o objetivo de imaginar como seria um futuro onde as pessoas não conhecem essa história. A obra reflete toda uma história de luta.
O filme tem cerca de 12 minutos, e trata exatamente dessa reflexão política sobre a nossa existência hoje, rememorando esses líderes. Também chama a atenção para a juventude e para o lugar do novo — como os jovens veem esse espaço, se ele existe para eles. A obra é uma confluência de memória, luta e uma pitada do contemporâneo, do qual fazemos parte. Especificamente, isso tem a ver com o meu olhar sobre o ativismo.
Quero trazer esse lugar da humanidade, não só aquela imagem exotizada de “canto, dança e reza”. Porque isso existe, sim, não vou dizer que não existe, mas há muito mais do que isso. A gente é muito mais do que isso. Para mim, o que me constitui como pessoa são aquelas pessoas e lugares que estão comigo, que fazem parte da minha trajetória.”
Lanto’oy’ Unruh (1988, Chaco Paraguaio, Paraguai)
Lanto’oy’ Unruh nasceu em 1988 na comunidade Enlhet Ya’alve-Saanga, localizada em Loma Plata, no Chaco Paraguaio, onde vive até hoje. Seu trabalho artístico se concentra na preservação das tradições, crenças e costumes de sua nação.
Por meio da fotografia, Lanto’oy’ cria narrativas visuais que destacam a convivência entre gerações e a relação entre os rituais ancestrais e a vida cotidiana contemporânea. Sua série Maaneng, Casanillo (2024) ilustra essa fusão ao captar momentos em que as vestes tradicionais se misturam a gestos espontâneos, refletindo a continuidade e a adaptação cultural.
“Essa é uma mostra sobre essa festa ancestral, centrada na figura dos Selavq, conhecidos como Homens-Aranha, e também na presença da avó, que participa do rito de iniciação de uma jovem. É isso que apresento aqui no Inhotim com o meu trabalho. É uma expressão da nossa identidade, uma forma de manter viva a nossa cultura como povo Enlhet. Essa celebração é algo muito representativo para nós.
As iniciações dos Selavaq começam quando eles entram em camuflagem. É uma tradição na nossa comunidade Enlhet. Os Selavaq aparecem pela primeira vez durante a cerimônia do manhing e o ritual de iniciação de uma jovem. É nesse momento que os Selavaq entram em ação. As jovens participam de uma espécie de jogo parecido com futebol, uma forma simbólica de demonstrar força. Quando alguém é atingido pela bola, que está molhada com tinta natural, isso tem um significado especial dentro do rito.”
Denilson Baniwa (1984, Barcelos – AM, Brasil)
Denilson Baniwa, nascido em 1984 em Barcelos, Amazonas, vive atualmente em Niterói, Rio de Janeiro. Sua obra, encomendada pelo Inhotim, é fruto de uma pesquisa realizada em 2025, na qual o artista acompanhou o processo de adaptação dos Yanomami que deixaram suas aldeias para enfrentar a vida urbana. Denilson resolveu dar um passo além e transformar a experiência em uma cartografia de afetos.
Seu personagem central, Alfredo Himotomo Yanomami, é um professor e universitário que transita entre o ambiente urbano e sua aldeia, refletindo a complexidade dos deslocamentos indígenas contemporâneos. A obra iepē pisasu ara usika – um novo dia nascerá (2025) é quase um diário de colagens, onde o artista utiliza a técnica da cianotipia, que produz imagens em tons de azul através da luz solar. O projeto incorpora fotografias, objetos, mapas, fragmentos de diários e textos que registram a convivência entre Denilson e Alfredo.

“O meu processo na produção desse trabalho foi uma resposta à curadoria, à provocação da curadora, e uma tentativa de agregar pensamentos ao trabalho da Cláudia. Esse processo envolve duas coisas principais: Primeiro, entender o que é fotografia, o que é retrato. Segundo, compreender como uma pessoa indígena se sente ao ser retratada e o que ela gostaria que esse retrato representasse. No primeiro caminho, voltei à escola para estudar. Fiz um curso de fotografia e pesquisei a história da fotografia, os materiais usados, descobrindo o bromo, a prata, o ouro, a urina, sais até o ferro.
Dentre esses materiais, escolhi uma técnica chamada cianotipia, que utiliza metais ferrosos, como o ferro, para gerar uma imagem fotográfica com um tom azul característico. Voltar à história da fotografia foi um exercício fundamental para este trabalho. Depois disso, fui a Roraima, a Boa Vista, conversar com pessoas indígenas que vivem em contexto urbano, para entender a história da migração delas para a cidade, os motivos que as fizeram sair da comunidade e os motivos para permanecer na cidade.
Essa trajetória tem a ver com a minha história e também com a história de várias pessoas indígenas no Brasil e no mundo. E das pessoas que conheci, criei uma amizade com o Alfredo Mono. Ele é universitário, cursa licenciatura e é um intelectual cultural na Universidade de Roraima. Além disso, Alfredo é professor em sua aldeia Yanomami, ensinando a língua Yanomami para jovens da comunidade. Ele divide seu tempo entre a universidade e a aldeia: passa 15 dias na universidade e os demais na aldeia, onde dá aula. Ele vive em Roraima por causa da universidade, mas também enfrenta o contexto de violência e racismo presente na cidade de Boa Vista, onde sofre constantemente com esses desafios.”
Bravo! viajou para Inhotim a convite do museu