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Como a ditadura mudou o rumo das artes no Brasil

Nos 60 anos do golpe militar, entenda como a repressão afetou a produção e o dia a dia dos artistas plásticos

Por Beatriz Lourenço
Atualizado em 2 abr 2024, 14h41 - Publicado em 1 abr 2024, 09h00

Há seis décadas, o Brasil sofria o golpe militar de 1964, que depôs o presidente eleito pelo voto direto, João Goulart, e colocou sucessivos governos autoritários no poder. Ao todo, foram 21 anos de supressão de direitos constitucionais, perseguição civil e censura – que afetaram brutalmente a música, o cinema, o teatro, a literatura e as artes visuais.

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Jorge Bodanzky e o repórter Karl Brugger entrevistam Judith Malina e Julian Beck, criadores do Living Theater, detidos em Ouro Preto, MG. O grupo fora acusado de subversão e porte de entorpecentes. Bodanzky e Brugger fizeram reportagem para a tv alemã. A prisão gerou comoção internacional, mobilizando personalidades como John Lennon, Yoko Ono, Susan Sontag e Bob Dylan, que assinaram manifesto endereçado ao presidente da República, general Emílio Médici. O affair internacional levou à soltura dos integrantes e sua expulsão do país. MG. 1971. Acervo Instituto Moreira Salles (Jorge Bodanzky/reprodução)

Para relembrar os tempos sombrios e tentar fazer com que ele não se repita, três exposições sobre o tema serão inauguradas entre março e abril: Paisagem e Poder: Construções do Brasil na Ditadura no Centro Maria Antonia da USP, Que país é este? A câmera de Jorge Bodanzky durante a ditadura brasileira, 1964-1985 no IMS Paulista e 60 anos do golpe militar na Pinacoteca de São Paulo, em parceria com o Memorial da Resistência de São Paulo. 

No teatro do Núcleo Experimental, localizado também em São Paulo, o musical Codinome Daniel fica em cartaz até sete de abril. Protagonizado por Davi Tápias, a peça conta a história de Herbert Daniel, um dos mais emblemáticos personagens brasileiros que lutou contra a ditadura. 

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O ator Davi Tápias como Hebert Daniel na peça “Codinome Daniel” (Ale Catan/divulgação)

Tempos difíceis

Para entender melhor os rumos das artes plásticas durante o regime, é preciso recapitular o que acontecia antes desse período: durante os anos 1950, havia um otimismo relacionado ao desenvolvimento do país. Nesse contexto, um dos movimentos artísticos em ascensão era o Concretismo, caracterizado pela racionalidade e pela experimentação.

O ano de 1951 ficou marcado pela Bienal Internacional de Arte de São Paulo, que abriu as portas para novos artistas e uma intensa troca de ideias. “O momento era de iniciativas progressistas na educação, na reforma agrária, na procura de uma arquitetura brasileira e nas possibilidades de encontro entre múltiplas artes”, explica o curador e pesquisador Paulo Miyada. “Esse foi, justamente, um dos ingredientes que intensificou as movimentações reacionárias que produziram o golpe.”

Após a chegada dos militares no poder, o autoritarismo transformou o modo de comportamento e pensamento dos indivíduos, afetando a produção criativa. Em reação à perda de liberdades, a saída foi tentar, de forma mais ou menos explícita, romper com todos os padrões do sistema. “Artistas passaram a usar recursos figurativos de representação alegórica da realidade, com uma dose de ironia, sarcasmo e paródia. Ocorreu, também, uma retomada da figuração”, diz Miyada. “Isso alimentou um grande movimento que tem subtítulos, que vai desde a nova figuração até a Tropicália. Gosto de associar a uma palavra que foi muito usada na época, a opinião.”

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Lenora de Barros, Poema, 1979 (Lenora de Barros/reprodução)

Em 1967, a repressão se intensificava a cada dia. E um dos alvos de censura eram as exposições e mostras culturais. A 9ª edição da Bienal foi afetada a ponto de precisar retirar a obra “O Presente”, da artista Cybele Varela, por julgá-la ofensiva – o conjunto de telas retratava a figura de um militar sobre o mapa do Brasil. O artista Quissak Júnior, por sua vez, quase foi preso por seu trabalho, também considerado uma afronta: a série “Meditação sobre a Bandeira Nacional” infringia as leis da época que proibiam o uso livre do símbolo nacional.

Mais tarde, o Ato Institucional número 5, conhecido como AI-5, suprimiu ainda mais os direitos de expressão. O documento institucionalizou a perseguição política aos seus opositores, fechou o Congresso Nacional e suspendeu direitos de qualquer cidadão. “Nesse momento, a censura se acirra e se transforma em um aparelho oficial do Estado. A ideia de liberdade é oficialmente suspensa. Os mecanismos de violência também aumentam”, conta Miyada. “A produção artística teve que procurar outros caminhos, apelidados de guerrilha. Foram criadas redes subterrâneas, em segredo, utilizando linguagens cifradas e códigos.”

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(Mulheres Radicais/reprodução)

A mostra Pré Bienal de Paris, que aconteceria no MAM-RJ, foi suspensa no dia da abertura em razão da inclusão de uma imagem do fotojornalista Evandro Teixeira, do Jornal do Brasil, que mostrava o tombo de moto de um oficial da Força Aérea Brasileira (FAB), o que foi visto como provocação. A repercussão foi tão grande que culminou no boicote da 10ª edição da Bienal, em 1969. Nomes como Anna Bella Geiger, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Roberto Burle Marx, Rubens Gerchman, Sérgio Camargo, dentre outros, se recusaram a comparecer por causa do tom da organização, que dependia de verbas federais. “Nos recusamos a participar em qualquer exposição que aconteceria na época, mas o prejuízo foi enorme, foi um tiro no pé. Achávamos que tudo acabaria em poucos anos, mas o tempo ia passando e só piorava”, reflete Anna Bella Geiger.

 

 

Impulso criativo

Foram anos de muitos questionamentos e dúvidas para os artistas, inclusive sobre a função do seu próprio trabalho. As tensões entre o ambiente sufocante e o sentimento de impotência refletiu, inevitavelmente, na estética das obras e no processo de seus criadores. “Não fazíamos trabalhos panfletários, não foi uma reação de protesto. Mas o sentimento interno passou a transparecer nas obras. No meu caso, o corpo passou a ser protagonista das telas num sentido visceral – tem muito vermelho, órgãos, sangue.  Não era uma imagem direta de tortura, mas um reflexo das modificações que aconteciam dentro do nosso imaginário”, comenta a artista.

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(Cecilia Vicuna/reprodução)

Ainda assim, a escolha de produzir trabalhos que abordavam o Brasil da época e de questionar figuras de autoridade era política, já que muitos se colocavam em risco de vida para se expressar. “Meu marido, o geógrafo Pedro Geiger, foi preso pelas ideias dele. Nos artigos e livros que ele escrevia, sua visão socialista era exposta junto com as análises. Quando o levaram, não disseram para onde e eu fiquei desesperada, pensando que tivessem o matado”, completa.

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As protagonistas de seu tempo

Além de Anna Bella Geiger, outras centenas de artistas mulheres questionaram e tensionaram os sentidos tradicionais da arte entre os anos 1960 e 1980 – é o que mostra o documentário Mulheres Radicais, de Isabel De Luca e Isabel Nascimento Silva, lançado em março no Canal Curta!. O filme evidencia que a representação do corpo foi um tema comum entre elas, tanto que até ganhou caráter subversivo. 

Às avessas, essa foi uma época de produção frutífera para as artes plásticas. “A maioria das obras das mulheres foram impulsionadas pela ditadura no sentido de que elas só existiram por serem uma reação à ela. As artistas tinham uma consciência política muito forte e, mesmo quando precisavam se exilar, nunca pararam de criar”, afirma a cineasta Isabel De Luca. 

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(Claudia Andujar/reprodução)

Teresinha Soares, por exemplo, passou a discutir os papéis sociais femininos e a liberação sexual a partir da abstração e traços marcados com cores vivas. Claudia Andujar, por sua vez, fotografou os indígenas Yanomami como forma de registrar sua resistência em um país que, cada vez mais, apagava sua imagem. Na Colômbia, Maria Evelia Marmolejo criou performances em homenagem aos torturados e desaparecidos de seu país a partir de feridas autoinfligidas. 

 

Lenora de Barros usou seu próprio corpo para unir poesia e imagem a fim de provocar reflexões acerca do tempo. “Meu pai, Geraldo de Barros, tinha um estúdio com o artista Nelson Leirner. Soube que eles escondiam companheiros e amigos que estavam sendo perseguidos. Também soube de vários amigos dele que foram presos. Foi nesse contexto que meu trabalho nasceu, dá até para sentir certa agressividade. Não que eu fizesse isso de forma consciente, mas ele reflete o clima tenso de forma não explícita”, conta a artista. 

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HOMENAGEM_A_GEORGE_SEGAL_1975-2014 (Lenora de Barros,/reprodução)

O reconhecimento da importância dessas artistas, no entanto, demorou. Até 2017, ano da exposição que deu o nome ao documentário, a artista chilena Cecilia Vicuña — que terá uma individual de destaque na Pinacoteca a partir de maio — nunca havia vendido uma única obra. “Passamos a olhar para esse contexto sem ter medo de falar sobre ele há pouco tempo. Sinto que a consciência sobre tudo o que aconteceu, assim como as pesquisas sobre essas artistas são muito recentes”, diz a diretora Isabel Nascimento Silva.

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Relembrar para nunca mais reviver

Do fim da ditadura militar, em 1985, aos dias de hoje, ainda constam alguns resquícios do regime opressor. Nos últimos anos, uma série de livros e exposições foram censuradas em nome da moral, principalmente durante o governo de Jair Bolsonaro, entre 2019 e 2022. 

Em 2019, a HQ Vingadores foi recolhida dos estandes da Bienal do Livro do Rio por conter a ilustração do beijo entre dois homens. Em 2023, o governo de Santa Catarina mandou retirar nove livros de escolas públicas, como A Química entre Nós, de Larry Young e Brian Alexander; e It: A Coisa (1986), de Stephen King. No mesmo ano, o jovem Rafael Willian, de 21 anos, afirmou que foi impedido de expor seus trabalhos no Mercadão de Madureira, no Rio de Janeiro, após incluir na mostra uma pintura que retratava uma operação policial em uma favela da cidade, com a morte de um estudante baleado pelas costas por PMs.

Neste mês, o livro O Avesso da Pele, do escritor Jeferson Tenório, também entrou para a lista de obras banidas. A diretora da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira, em Santa Cruz do Sul (RS), pediu ao Ministério da Educação (MEC) o recolhimento dos exemplares distribuídos para alunos do ensino médio, alegando “vocabulário de baixo nível” e “vulgaridade” de termos utilizados na história.

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Serie Passing Through (Sylvia Palacios Whitman/reprodução)

O acadêmico Paulo Miyada ressalta ainda que as principais instituições do campo da arte são herdeiras da produção artística dos anos 1960 e 1970 no quesito da ampla liberdade de expressão.  “A história pode ser espiral, mas não é uma repetição. Os agentes, a tecnologia e a situação global se atualizam. Mas relembrar essa época é importante para repensar os moldes da democracia. São os artistas que pensam as contradições do seu tempo”, finaliza.

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