80 anos de Mário de Andrade e o enigma do modernismo
Mário de Andrade fez do paradoxo e do desencontro o coração de sua obra.

A crítica sempre teve muita difi culdade para fixar a imagem de Mário de Andrade. Vulto arredio às classifi cações e às reduções, ele até hoje ocupa, no cenário do modernismo, o lugar de um enigma. Os críticos, quase sempre, se encantaram mais com Oswald de Andrade, que, panfletário, enfático, dogmático, nunca deixou dúvidas a respeito de quem era.

Em 1916, um Oswald cheio de si já se declarava, sem meias palavras, um “futurista”. Fixava, assim, sua filiação nobre ao Manifesto Futurista, que o italiano Filippo Tommaso Marinetti havia publicado no jornal Le Figaro, em 1909. Ao contrário dele, um renitente Mário ainda protestava, em 1921 (um ano antes da Semana de Arte Moderna!), quando o chamavam de “futurista”. A dissensão e a discórdia estão no coração do modernismo; Mário fez desses desencontros e paradoxos o coração de sua obra.
Para complicar, o próprio Mário se definia por uma profusão de etiquetas. “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta”, disse. Gostava de provocar os inimigos com uma tirada célebre: “Um dia afinal eu toparei comigo”. O escritor, que se sentia cada vez mais distante de si, fez da insatisfação o seu caminho, definindo-se mais pelo que procurava do que pelo que era. A esse respeito, vale lembrar a avaliação do crítico Álvaro Lins, que, em Os Mortos de Sobrecasaca, assim o definiu: “Em nenhum poeta moderno mais do que no sr. Mário de Andrade se poderá sentir essa contradição própria da poesia moderna: a de um pensamento que procura a sua forma”.
Em seu célebre Prefácio Interessantíssimo, que escreveu para Pauliceia Desvairada (1922), é o próprio Mário quem se descreve como um intelectual em contínuo movimento. O dogma não o interessava. Como definir, então, um escritor que repudiava as definições? Antonio Candido devassou a alma de Mário quando escreveu: “Há, com efeito, muitos Mários de Andrade além dos conhecidos”. Para Mário, a literatura deriva da insatisfação, e não da lucidez. O escritor, ele pensava, deve ser vulnerável, deve ser frágil — deve expor-se, continuamente, ao que não é.
Para Mário, a força da literatura se define pelo sacrifício de si. Mais de uma vez, ele criticou o “cultivo imoderado do prazer”, que se disseminou entre os modernistas de 22 —o prazer e a alegria acima da persistência e do risco. Essa diferença está na base de sua ruptura com Oswald de Andrade, em 1929. Decepcionado com Oswald, a quem dizia “odiar friamente”, ele se declarou mais próximo de Jorge de Lima, o poeta católico, a quem via como um intelectual “dominado pela prudência”.

Politicamente incorreto
A obra de Mário de Andrade, de fato, parece, até hoje, assinada por muitos Mários diferentes. Com ferocidade, ele criticava aqueles que “caem no gosto da imitação de si mesmos”. Em outras palavras: criticava os que “sabem o que fazem”. Mário sempre preferiu a instabilidade, o ecletismo, o sincretismo que caracterizam a alma brasileira.
Por isso criticou, com ênfase, os que sofriam da “Moléstia de Nabuco” — mal que foi o primeiro a diagnosticar. Assim o definiu: “É isso de vocês andarem sentindo saudade do cais do Sena em plena Quinta da Boa Vista”. Com a piada, plantou muitos inimigos em seu caminho.
A preferência pelo instável e pelo incompleto levou um crítico de índole conservadora como Wilson Martins a escrever: “Mário é um autor que está em segundo plano em todos os gêneros”. Mário nunca se esforçou para ser politicamente correto. “As revoluções brasileiras, especialmente a de 1932, atrasaram muito São Paulo”, disse certa vez. Essa obsessão pelas revoluções, pensava ainda, dificultou a renovação da literatura paulista.
Acreditava Mário que, se as revoluções despertaram a consciência cívica dos paulistas, “tiveram por outro lado a fatalidade de fixar demasiado essa consciência cívica dentro de problemas muito particulares e talvez desimportantes” — como declarou em uma célebre entrevista a Martins Castello, publicada em O Jornal, em 1935.

meses, fez pesquisas sobre a cultura popular (Acervo Ouro sobre Azul/acervo rede Abril)
Avesso às certezas, preferia uma arte em movimento, em constante descompasso com as ideias consagradas e com as palavras de ordem corretas. Aos que revidavam dizendo que ele não passava de um nacionalista à antiga, respondia afi rmando que era “muito mais marcado pelo tropicalismo do que pelo nacionalismo”.
Em 1939, confrontado com uma enquete que investigava os dez melhores romances brasileiros da década, não pensou duas vezes: em sua lista, incluiu Mundos Mortos, livro do católico e conservador Octávio de Faria. Não foi uma provocação, mas uma prova de seu coração aberto.
Seus grandes livros — como o maior de todos, Macunaíma — até hoje nos provocam como um enigma que desafi a nossa noção de identidade. O que é ser um “herói sem caráter”? Tal ideia do heroísmo é, até hoje, motivo de muitas controvérsias. Seria mesmo um achado intelectual ou um jogo de palavras?
João Cabral de Melo Neto, que sempre preferiu Oswald a Mário, duvidava de sua célebre erudição. Mário, aliás, lhe deu razão ao dizer: “Não sou crítico, não sou culto, tenho horror de me chamarem indivíduo culto só porque leio um bocado”. Na mesma entrevista a O Jornal, ele diz ainda: “Na verdade sou artista, sou poeta, sou romancista, mas o resto não e não”. Ao se definir pela negação, Mário de Andrade nos deixou uma imagem forte, mas em estilhaços. Vulto que ainda hoje nos obriga a pensar com ousadia e a duvidar de nós mesmos. Não haveria herança mais digna.
JOSÉ CASTELLO é jornalista e escritor, autor A Literatura na Poltrona e Vinicius de Moraes — O Poeta da Paixão, entre outros
*Esta matéria faz parte do acervo da Revista Bravo! e foi originalmente publicada na edição impressa 141
