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Maxwell Alexandre é o poder

Conversamos com um dos nomes de maior relevância na arte sobre a exposição individual "Novo Poder: Passabilidade, Miss Brasil"

Por Laís Franklin
Atualizado em 26 set 2023, 12h23 - Publicado em 25 set 2023, 13h11

Era um sábado nublado e chuvoso em São Paulo, e mesmo assim quem passava pela altura do número 1052 da rua Alameda Ministro Rocha Azevedo se deparava com uma fila de dezenas de artistas, galeristas, jornalistas, comunicadores e colecionadores na calçada a espera de uma vaga para entrar na Casa SP-Arte, espaço recém inaugurado no bairro Jardins. O motivo? A concorrida abertura da mostra Novo Poder: Passabilidade, Miss Brasil, do carioca Maxwell Alexandre, vencedor do Prêmio Pipa 2020 e que agora é representado pela Galeria Millan.

“A minha prática diária é religiosa. Tudo que faço é culto. Não existe hierarquia no que apresento. Seja no MoMA, na rua ou na sala de casa, a entrega é santa. Ser conhecido como pintor é algo muito caro para alguém que vem da favela. Tanto para os favelados que não veem isso como um valor, quanto para as elites que tem esse ofício como um dos mais reverenciados. Acredito que essa seja a importância da minha ocupação nesse jogo; ser relativamente famoso para além do que é socialmente destinado a pessoas melanizadas: a música e o futebol”, defende Maxwell quando perguntado sobre a fama e o sucesso de público logo no primeiro dia de exposição (foram cerca de mil pessoas em um único dia) lotando o espaço expositivo e boa parte da Vila Modernista, projetada por Flávio de Carvalho, em 1938. “Quando observo os espaços institucionais onde exponho minhas obras, não costumo me empolgar tanto, porque tenho um pensamento muito consciente a respeito da trajetória que tenho desenhado”, emenda ele.

Obras de Maxwell Alexandre | Casa SP -Arte | Novo Poder Passabilidade, Miss Brasil
(Edouard Fraipont/divulgação)

Continuação de Novo Poder: passabilidade, a exposição fala sobre privilégio e acesso exibindo mais de 20 pinturas a óleo protagonizadas por pessoas negras de diferentes tons de pele em movimento e contemplação no papel pardo, principal suporte do artista e uma das marcas registradas de seu trabalho autoral. Algumas delas já haviam sido expostas anteriormente há alguns meses em La Casa Encendida, em Madrid, e também no 1 ̊ Pavilhão Maxwell Alexandre, no Rio de Janeiro, mas outras foram criadas especialmente para a mostra paulistana, que traz como adendo especial a ligação entre arte (com referências ao trabalho de Arthur Bispo do Rosário, Hélio Oiticica e Flávio de Carvalho) e moda. Vale mencionar, inclusive, que um dos pontos altos das ativações do espaço foi o desfile “Noites Frias sem Vc RMX”, da marca agênero Pedra, que ocorreu no fim de setembro. “A moda é correlativa da arte, no sentido de oferecer autoestima e dignidade, mas que reforça o jogo de vaidade, distinção e hierarquia social”, pontua ele.

Nascido e criado na Rocinha, Maxwell é um dos nomes de maior relevância da arte contemporânea brasileira e teve quatro importantes pilares que o influenciaram na sua carreira: a vivência na igreja evangélica, o trabalho no serviço militar, a prática profissional do Patins Street e as aulas com o pintor Eduardo Berliner na universidade de design na PUC-Rio. “Busquei maneiras de estar no mundo de forma crítica e, de alguma forma, me ver vivendo o que sonhei quando criança; sonhos esses que partiam dos filmes e animes que consumia. Essa escolha certamente partiu de um impulso artístico de alimentar a imaginação e criar mundos impossíveis para um garoto como eu”, resume ele.

Obras de Maxwell Alexandre | Casa SP -Arte
(Maxwell Alexandre/divulgação)

Muitas vezes associado a um trabalho político e subversivo, ele escolhe diluir esses conceitos em busca de uma caminhada mais poética nas artes e está muito consciente da narrativa que quer propor: seu foco está na ascensão das comunidades pretas e na tomada dos espaços simbólicos de poder como autoestima e dignidade. “É utópico, romântico, pode se dizer que sim, mas é como eu sinto que acontece. É confuso e misturado e por isso que as pessoas veem como subversão ou política. Essas camadas existem e não tem como negar, mas não gosto de afirmá-las dessa forma, porque isso diminui meu trampo, e muito. Prefiro me ver como um artista sem compromisso”, explica.

Abaixo, confira a entrevista completa onde Maxwell Alexandre fala sobre como ele se enveredou pelo caminho das artes, entrega detalhes sobre processo criativo, fala sobre privacidade, sobre poder e mais.

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Você produziu mais de 20 obras para essa individual. Me conta como foi o processo ritualístico de produção de Novo Poder: Passabilidade, Miss Brasil e o que ele te ensinou?
A minha ideia inicial era mostrar somente Novo Poder: passabilidade, assim como fiz na La Casa Encendida em Madrid e no 1 ̊ Pavilhão Maxwell Alexandre. Mas eu tive que levar em consideração o nome de Flávio de Carvalho, que assina o projeto da vila modernista no qual a exposição está inserida. Não podia deixar de mencionar também Hélio Oiticica, que inaugurou a Casa SP-Arte com uma exposição que antecede a minha. Por último, quis mais uma vez reverenciar o maior artista de todos, Arthur Bispo do Rosário. Um ponto em comum entre os três artistas é que todos vestiram suas obras e contribuíram com suas linguagens plásticas com a construção do que se pode entender como uma identidade brasileira, em várias camadas. A escolha dos personagens que pintei e suas vestimentas foram determinadas a partir da influência desses três artistas, dentro de um recorte que cruza moda e arte contemporânea.

Obras de Maxwell Alexandre | Casa SP -Arte | Novo Poder Passabilidade, Miss Brasil.
(Maxwell Alexandre/divulgação)

Essa exposição carrega os signos das cores preta, branca e parda, mas também apresenta o dourado e a moda como fatores fundamentais nesse conjunto. Poderia explicar mais detalhes sobre como cada um desses signos interagem dentro dessa exposição?
A cor preta atua como o corpo preto manifestado pela figuração de personagens; a cor branca aponta para o cubo branco espelhando o espaço expositivo; e a cor parda representa a obra de arte e também faz autorreferência ao próprio papel, que é o suporte principal da série; em relação ao dourado, é aquilo que delimita o objeto de arte, quer dizer, a moldura, que separa o objeto sacro do objeto banal, mundano. Ela separa o branco do pardo, e do preto. A moda é correlativa da arte, no sentido de oferecer autoestima e dignidade, mas que reforça o jogo de vaidade, distinção e hierarquia social.

Novo Poder: passabilidade, Miss Brasil é uma sequência. O que mudou de uma exposição para outra e o que permaneceu?
A ascensão das comunidades pretas e a tomada dos espaços simbólicos de poder têm sido os temas que mais pontuam a minha produção atual. E isso pode ser visto nesses dois períodos de Novo Poder. No entanto, se no primeiro momento de “passabilidade” a narrativa se dava em torno de personagens pretos, bonitos e elegantes, caminhando tranquilos e seguros pela passarela do cubo branco, em Miss Brasil esses personagens transcendem o conforto e a firmeza dos seus passos, para alcançar uma postura mais debochada, com atitudes que remetem ao conceito de “lacração”. Nesta crônica, essas figuras estão tão familiarizadas com o ambiente das galerias e museus que suas roupas não são apenas baseadas numa produção para uma vernissage ou festa, elas são alegóricas, como fantasias que remetem às festas e brincadeiras populares: o carnaval, o folclore, a folia de reis, o bate bola, entre outras.

A arte é o que eu vivo, é onde deposito a minha fé, e é o canal por onde observo e absorvo o mundo.

Você cresceu em um berço evangélico, foi militar e passou anos se dedicando ao esporte. De que maneira esses três pilares influenciaram o seu trabalho artístico?
Busquei maneiras de estar no mundo de forma crítica e, de alguma forma, me ver vivendo o que sonhei quando criança; sonhos esses que partiam dos filmes e animes que consumia. Essa escolha certamente partiu de um impulso artístico de alimentar a imaginação e criar mundos impossíveis para um garoto como eu.

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A Igreja foi a primeira instituição que fiz parte com fervor. Mesmo não curtindo os dogmas e preceitos, reconheço que a fé religiosa me livrou de me envolver com a bebida e as drogas, e falo disso sem fazer juízo de valor, mas é comum ser fisgado pelo crime a partir dessas duas coisas quando você mora na favela e a boca de fumo é na porta de sua casa. A ideia de acreditar sem ver é forte também, esse é o discernimento da fé, e não vejo nada mais potente, artisticamente falando, do que isso.

O Patins Street foi uma opção mais pulsante de me arriscar literalmente, e vejo que minha relação com a fotografia, vídeo, serigrafia, catalogação, até mesmo curadoria é herança da cultura dessa prática, que sobreviveu à falta de mercado pela dedicação apaixonada de seus próprios praticantes que atuavam muitas vezes sem conhecimento especializado em todas essas áreas e outras mais. Mas as impossibilidades desse meio foram o que me levaram a querer ingressar numa universidade e me profissionalizar como designer.

É “doideira” pensar também que eu cumpri o serviço militar obrigatório em uma unidade que era um Museu do Exército, o Forte de Copacabana. Ali, eu fui selecionado arbitrariamente para trabalhar na seção da Reserva Técnica do Museu. Meu dia a dia era basicamente higienizar, transladar e catalogar o acervo histórico. Às vezes acompanhava oficiais em pesquisas. Como soldado, uma outra responsabilidade que eu tinha nessa seção era a de montar exposições dinâmicas em salões do quartel para receber generais. Embora o serviço militar tenha sido um pilar muito importante em minha construção, eu havia esquecido o quão próximo da arte eu já estava comprometido, mesmo quando ainda era um recruta. Essa memória eu só resgatei recentemente e me nego a acreditar que foi por acaso.

Obras de Maxwell Alexandre | Casa SP -Arte | Novo Poder Passabilidade, Miss Brasil.
(Edouard Fraipont/divulgação)

Você entrou com muita fome de conhecimento na universidade e no curso de design. Conta um pouco sobre esse período e como ele te moldou?
Foi durante esse período em que fui aluno da PUC-Rio que tive pela primeira vez o conhecimento da arte contemporânea. Eu tinha 22 anos e estava no terceiro período de minha graduação em Comunicação Visual. Isso aconteceu mais precisamente quando passei a ter aulas de plástica em um curso com o pintor Eduardo Berliner, o que me fez ir muito além na forma em que pensava e fazia meus trabalhos. Eu que havia ingressado na academia com a finalidade de me formar em design gráfico, encontrei neste curso uma janela muito mais ampla e que comportava toda a fragmentação de minha prática, uma vez que eu já lidava com fotografia, desenho, serigrafia, vídeo, entre outras mídias.

É ali também que o cruzamento da minha produção com o universo da moda ganha maior intensidade. Por cursar design, pude ter acesso aos laboratórios de moda, onde pude recolher materiais que vieram a ser necessários para minhas experimentações, como por exemplo os retalhos de papel pardo repletos de rascunhos e anotações que eram descartados nas aulas de modelagem de roupas. Ao me deparar com esse material, pude alcançar pouco a pouco a intimidade necessária para germinar as primeiras pinturas que dariam origem à série Pardo é Papel, conjunto de trabalhos pelo qual me tornei conhecido.

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Obras de Maxwell Alexandre | Casa SP -Arte | Novo Poder Passabilidade, Miss Brasil.
(Maxwell Alexandre/divulgação)

Você sempre almejou a fama e o sucesso. Como lida com isso hoje?
Ser conhecido como pintor é algo muito caro para alguém que vem da favela. Tanto para os favelados que não veem isso como um valor, quanto para as elites que tem esse ofício como um dos mais reverenciados. Acredito que essa seja a importância da minha ocupação nesse jogo; ser relativamente famoso para além do que é socialmente destinado a pessoas melanizadas: a música e o futebol.

O sucesso é interessante para um artista porque ele te dá acesso a realizações, e ambicioso que sou, acabo valorizando muito o sucesso. Já a fama tem mais a ver com vaidade e carência, e isso é muito contraditório, porque sou muito tímido e gosto de ficar na minha, não curto tirar fotos com fãs – eu até faço dependendo da ocasião – mas não curto. Não curto que me incomodem, me tirem do meu lugar e momento. Esse para mim é um ônus do reconhecimento público. Penso que eu não serviria pra ser uma estrela de Hollywood, por exemplo. Eu ia realmente frustrar meu público; nesse sentido é bom ser das artes visuais porque na maioria das vezes eu ainda sou um anônimo. O anonimato é um poder.

Você também já disse em um podcast que “Sempre foi artista, mas é incompreendido por ser tímido” e que muita gente ainda iria se frustrar com você. Por quê?
Não sei se foi exatamente assim que eu falei, mas o meu ponto é que eu não estou e nem quero estar disponível o tempo todo na rua, na praça, na praia, ou mesmo na vernissage. As pessoas de maneira geral tem pouca noção e bom senso de como chegar e a expectativa é muito alta, e eu não faço questão de cumprir a expectativa do outro apenas para não frustrá-lo, porque se faço isso quem se frustra sou eu. Entre me frustrar e frustrar o outro eu vou escolher não me frustrar.

Obras de Maxwell Alexandre | Casa SP -Arte | Novo Poder Passabilidade, Miss Brasil.
(Maxwell Alexandre/divulgação)

Como você fica em “estado de vigília” constante para criar e produzir arte com a sua sensibilidade autoral?
As coisas internas são o que realmente movem o meu trabalho, o que pode soar um pouco romântico, mas a verdade é que esse é o meu alimento. Confio em minha intuição, e em minha trajetória, e dedico cem por cento do meu tempo para focar nas coisas que acredito. Por isso imagino que esta seja a minha forma de manter a sensibilidade pulsante.

Também penso que a arte tenha algo sobre cura espiritual. Nasci e cresci dentro de uma educação religiosa baseada no evangelho, mas hoje eu sou artista, quer dizer, a arte é o que eu vivo, é onde deposito a minha fé, e é o canal por onde observo e absorvo o mundo.

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Novo Poder: Passabilidade, Miss Brasil, de Maxwell Alexandre

Casa SP-Arte
Alameda Ministro Rocha Azevedo, 1052, Jardins, São Paulo
De 26 de agosto a 07 de outubro
Segunda a sexta, das 10h às 19h, sábado, das 11h às 15h
Entrada gratuita


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