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Os Jardins silenciosos da ilha de Cuba

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h22 - Publicado em 15 Maio 2019, 06h21

Com série de retratos que vão de 2014 a 2019, Rodrigo Sombra coloca-se um pouco além ou talvez à margem da fotografia moderna do século XX

Fotos de Rodrigo Sombra, da série Noite Insular: jardins invisíveis

Por Mauricio Lissovsky*

Ao visitar Noite Insular: jardins invisíveis de Rodrigo Sombra, exposição com as fotografias que realizou em Cuba entre 2014 e 2019, lembrei-me de algo que Roland Barthes disse em um programa radiofônico de 1975. O crítico francês desconfiava do Cinema diante da Fotografia, assim como da Fala diante da Escritura: “A Fala me incomoda porque tenho receio de teatralizar quando falo, tenho receio do teatro, receio do que se chama histeria, receio de que me flagre em olhadelas cúmplices, em piscadelas (…), seduções mais ou menos complacentes.”

A “piscadela” que Barthes tanto temia foi um dos sentidos inerentes à leitura das fotografias no século XX. No início não era assim. Nos retratos da década de 1840 os olhos estão frequentemente escancarados pois teme-se que o retrato antecipe a máscara mortuária. Em uma cena de Mr. Turner (Mike Leigh, 2014) o pintor inglês leva a esposa ao daguerreotipista. Durante os preparativos da pose ela mantém arregalada como se algo terrível estivesse por acontecer — como se uma súbita cegueira lhe acometesse caso fosse surpreendida de olhos fechados. Exatamente o oposto dos primeiros espectadores do cinema, que tampavam os olhos com as mãos quando o trem, chegando na estação, vinha na direção deles.

O século XX, ao contrário, foi o século da piscadela. Nos acostumamos com a ideia de que a fotografia surpreende o mundo em um piscar de olhos, em um interstício do movimento, em um instante decisivo, entre outras expressões que aludem a esse gesto que retém abruptamente uma situação, um estado da alma, o heroísmo de um gesto. Mas essa não foi a única piscadela que a fotografia colocou em jogo. Outras duas nos recordam a desconfiança que Barthes tinha relação à Fala, pois envolvem o espectador das fotografias.

Uma delas é o apelo — às vezes ilusório — que nos dirige o próprio referente, a personagem da foto, quando nos encara, por intermédio da câmera. Quando nos olha ou quando se deixa falsamente surpreender porque deseja ser vista, espera que a admiremos ou nos apiedemos dela. Participam dessa piscadela que apela — perdoem-me a heresia — tanto a pin-up quanto a criança famélica, tanto os atletas como os refugiados. A enchente de selfies na qual estamos mergulhados sugere que esse tipo de piscadela se tornou a forma dominante de fotografia nessas primeiras décadas do século XXI, tal como foi o retrato carte de visite na segunda metade do século XIX.

Mas há ainda uma terceira piscadela. Essa que nos dirige o fotógrafo quando, por intermédio da fotografia, é ele quem busca admiração ou cumplicidade — frequentemente a primeira por intermédio da segunda. Sua forma mais usual é a do voyeurismo, da fotografia que nos permite pensar “não fui eu quem olhei, foi o fotógrafo”. Quando poderia haver mais cumplicidade conosco do que no ato de oferecer uma licença, uma desculpa, para a nossa própria perversidade?

Mas a fotografia dita “artística” às vezes busca uma cumplicidade similar entre o olhar do fotógrafo e o olhar do espectador. Pois esse último também pode gozar narcisicamente ao saber-se capaz de notar a sutiliza, a beleza, a estranheza, a crítica, o paradoxo — isto é, ver tudo isso que os olhos do artista viram. Essa forma de fruição estética — característica do que a tradição chamava “bom gosto” — ganhou uma dimensão particular com as vanguardas do século XX que induziram o espectador educado a perguntar discretamente ao colega ao lado, antes de manifestar o seu desconforto: “você entendeu essa obra?”, “você entendeu o que o artista quer dizer?” Esse espectador inquietado procura pela tal piscadela da teatralidade como escuta o aparte cochichado pelo ator ao pé do seu ouvido.

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Na fotografia documental — se a tomamos aqui, para simplificar, como um gênero — a figura retórica costumeiramente associada à piscadela é a ironia. Na ironia, fotógrafo e espectador colocam-se em um mesmo patamar — superior, ou ao menos, exterior ao evento. É a partir desse ponto de vista (frequentemente moral) que apreciam o que vêm e julgam o que é visto — ao mesmo tempo em que consideram — favoravelmente, é claro — a si mesmos. Quando o fotógrafo escapa dessas três formas de piscadela, como o faz nesse ensaio, Rodrigo Sombra, coloca-se um pouco além ou talvez à margem da fotografia moderna do século XX.

Minha referência inicial a Barthes, no entanto, contém ainda um outro elemento que gostaria de incluir nesse comentário. É muito comum nos livros de história e teoria da fotografia começar-se com uma definição retirada da etimologia: fotografia “quer dizer” escrita da luz. Mas, se pode haver uma analogia linguística para a fotografia, o que já seria em si discutível, não é a escrita, mas a fala. Tal como a fala, a fotografia tem um forte caráter performativo: ela compõe cenas, posiciona pontos de vistas, interrompe ações. Sua capacidade de enunciação (mostrando algo ou sugerindo sentidos) está fortemente associada a uma coincidência entre o olhar do espectador agora e o olhar do fotógrafo antes. Por isso, as piscadelas e a teatralidade às quais Barthes não queria submeter o próprio pensamento são tão difíceis de dissociar da fotografia. Cada fotografia, sempre que vejo uma, carrega consigo o ato que a constitui. De algum modo, espectador e fotógrafo, por mais distantes que estejam no tempo, partilham de um mesmo campo de visão, simultaneamente interior e exterior ao que se vê. A piscadela é uma das formas pelos quais essa simultaneidade se torna possível.

O receio da teatralidade, o receio da piscadela, é, para Barthes, o receio da histeria. Por isso, o que ele disse uma vez da história poderia ser perfeitamente aplicado à fotografia: “A História é histérica: ela só se constitui se a olhamos, e para olhá-la é preciso estar excluído dela”. Nossa paráfrase seria: “A Fotografia é histérica: ela só se constitui se a olhamos, e para olhá-la é preciso estar excluído dela.” De fato, nenhuma fotografia foi mais histérica que o fotojornalismo do século XX, assim como o que resta dele no século XXI.

A contemporaneidade desse ensaio fotográfico repousa exatamente nesse ponto. Uma apreciação mais rápida poderia achá-lo meio fora de moda. Ou, para os adeptos do gênero, mais uma corroboração do inesgotável potencial documental da fotografia. Mas essas formulações gerais deixariam escapar o que há de mais sintomático e, portanto, de mais singular nessas imagens: um projeto de documentário sem piscadelas, de uma fotografia anti-histérica. Eu a chamo “anti-histérica” porque não creio, de modo algum, que estamos diante de um resultado casual ou aleatório. Suas fotografias cubanas decorrem de uma vontade deliberada de despir as imagens daqueles índices de reconhecimento mais banais que favoreceriam as piscadelas (charutos, carros velhos, ruínas coloridas, músicos, o horizonte marítimo que nos conduz para além-Espanha, além-África ou além-Miami).

Claro que podemos observar essa tendência anti-histérica em muitas obras documentais do século XX. Estiveram quase sempre associadas a um algum grau de abstração. Nos anos 1920, na Alemanha, August Sander tentara extrair uma tipologia social de seus modelos, isto é, subtraí-los de suas identidades até que pudessem subsistir nos retratos apenas como tipos ideais da sociedade de seu tempo. No extremo oposto, nos anos 1950, Robert Frank acreditava que os norte-americanos apresentavam os primeiros sinais de uma epidemia de narcisismo que os novos estados da imagem, em particular a televisão, começavam a disseminar. Era preciso salvar a fotografia da avalanche de clichês que a assediava. Apesar de seu enorme esforço para produzir fotografias que não aceitassem legendas, que não oferecesse qualquer conforto ao ego do espectador, acaba desistindo pois não consegue eliminar completamente o risco da anedota. Para um fotógrafo notoriamente mal-humorado, que alguém pudesse divertir-se com suas imagens era um sinal claro de fracasso.

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De Robert Frank, se disse uma vez que era um “profeta recitando enigmas”. Eu escuto os enigmas ocultos nas fotografias do Rodrigo, mas não os percebo como profecias. Nenhum futuro anunciado vai coroar nosso esforço de decifração dessas imagens, assim como não prescrevem qualquer destino à famosa ilha de Cuba. São fragmentos de uma etnografia inacabada e inacabável: em primeiro lugar, porque recusam a identificação e as identidades (o rosto dos retratados são mantidos na sombra, impossibilitados de piscar para nós). Uma etnografia aos pedaços na qual — para me valer de uma expressão de Benjamin acerca dos primeiros retratos — os fragmentos estão rodeados por silêncios, como esse brinco com a bandeira do Canadá que vejo incrustado na orelha do rapaz negro.

Uma fotografia que recusa a histeria, não poderia, de fato, ser tagarela. Mas se o rosto é esse limite quase intransponível, diante da qual o fotógrafo quase sempre se detém, há também o que desvia e faz deriva, as materialidades, as superfícies, os signos suspensos em uma estranha condição em que podem significar muito ou nada, como a camisa amarela do Young Men’s Club que veste o braço de um velho que aponta para não se sabe o que — de onde veio ou para onde vamos?

A fotografia anti-histérica, a etnografia fragmentada e abstrata da ilha de Cuba não se institui apenas pela recusa das piscadelas características da tradição documental moderna. Isso poderia imprimir-lhes apenas a marca de uma negatividade. Há também aqui uma dimensão afirmativa e positiva, que não se resume à objetividade de uma imagem que não pisca. Aqui reside seu maior desafio, pois nos dias que correm, cercadas por milhões selfies que nos enviam biquinhos todos os dias, propõem-se a uma tarefa dificílima: reencontrar na imagem do outro o fundamento de uma nova simpatia. Uma simpatia silenciosa em meio a um tumulto de imagens demasiado barulhentas.

*Mauricio Lissovsky é historiador, roteirista, pesquisador, doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da ECO-UFR

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