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Livro “Negros na Piscina” tensiona noção de racialidade homogênea

A curadora e pesquisadora Diane Lima fala sobre processos e desafios da organização de "Negros Na Piscina - arte contemporânea, curadoria e educação" 

Por Laís Franklin
Atualizado em 23 jul 2024, 19h16 - Publicado em 23 jul 2024, 09h00
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A acuradora e organizadora do livro "Negros na Piscina", Diane Lima (Wallace Domingues/divulgação)
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Diane Lima entende o texto como um espaço, como um desdobramento e revelação. Como um lugar de expansão. Por isso, começos (e títulos) são tão importantes para o seu processo. A mesma linha de raciocínio funciona para “Negros Na Piscina – arte contemporânea, curadoria e educação”, livro publicado pela Fósforo em abril deste ano e organizado por Diane durante três intensos anos de trabalho. “Intitular uma exposição é a tentativa de levar o que está posto no título para o espaço. É um espaço de elaboração crítica e criativa. É um ponto de encontro do fazer e do experienciar“, explica a curadora e pesquisadora em entrevista à Bravo!.

O nome da publicação parte de uma importante série do artista Paulo Nazareth e trata a piscina como campo de disputa em que “ser negro e estar na piscina implica um regime de visibilidade em que a produção da diferença acontece numa relação ‘ocularcêntrica’ que se dá entre o ver e o ser visto”, como Diane escreve em seu texto de abertura. Falo sobre a piscina galeria, falo sobre a piscina museu, mas a piscina escola, a piscina instituição, a piscina… piscina, a piscina mercado de trabalho. Essa é uma oportunidade de entender que o livro se aplica e pode ser lido para além do mercado das artes visuais, para além do sistema da arte contemporânea, mas para profissionais da cultura.”

O livro também joga luz sobre as lutas pelo fim da segregação racial nas piscinas públicas dos Estados Unidos que, até os anos 1960, eram de uso exclusivo de pessoas brancas, bem como a “entrada indesejada nessas águas – que para a supremacia branca norte-americana simbolizavam o medo da mistura racial, a perda da pureza da branquitude pelo temor da exposição e da segurança das jovens brancas nas piscinas, bem como pelos efeitos das políticas eugenistas que disseminavam que a população negra carregava doenças transmissíveis que poriam em risco a saúde dos brancos – perdura até hoje em estereótipos largamente difundidos qoas quais este e outros trabalhos de artistas se endereçam. Origina-se desse contexto, por exemplo, o mito de que negros não sabem nadar”.

A organizadora convidou dezenas de autores para elaborar textos que ampliassem o debate sobre o mercado da arte contemporânea brasileira. O convite em si vinha apenas com uma foto de Jônatas Conceição tirada durante o Protesto do Dia Nacional da Consciência Negra em Salvador no ano de 1980. A imagem faz parte do acervo do Arquivo Fotográfico ZUMVI e traz um conjunto de pessoas que levantam cartazes com a seguinte frase: “Por uma educação que interesse aos negros.” 

Diante disso, o leitor poderá se deparar com um artigo de Amanda Carneiro, curadora do Masp, sobre a construção e disputa da descolonização dos museus, fissuras e permanências das estruturas hierárquicas de poder; Um ensaio de Rosana Paulino fazendo um balanço dos seus 30 anos de carreira e indicando possíveis estratégias para ocupação com protagonismo da produção afrodescendente no Brasil; Keyna Eleison em uma profunda análise da fotografia e em um chamado pelo fim da desigualdade com a mulher negra; Denilson Baniwa sobre epistemicídio indígena e ensinamentos antropofágicos dos povos originários; Cidinha da Silva dividindo seus conhecimentos sobre curadoria expandida em literatura política e educação. 

Outro ponto interessante é que alguns dos textos são transcrições potentes de conversas entre artistas, educadores e curadores indicados por Diane. É o caso de Camilla Rocha Campos e Tiago Sant’ana, Luciara Ribeiro e Mayara Carvalho, Igi Lola Ayedun e Transalien, e Carollina Lauriano e Renato Silva. “A completa multiplicidade e diversidade de escritas que é o que de fato rompe com qualquer ideia de uma racialidade homogênea, pouco múltipla e pouco inventiva”, aponta Diane. Abaixo, a curadora fala dos desafios do processo de elaboração do livro que demorou três anos para ser concluído, dos conceitos de “síndrome da primeira vez” e “beleza terrível” que perpassam o livro e também se aprofunda nos debates em que o livro se propõe a suscitar. 

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“Negros na piscina: Arte comtemporânea, curadoria e educação” de Diane Lima, publicado pela editora Fósforo (Fósforo/divulgação)

 

Por que o título é tão importante para o seu processo?

Elemento crítico e o elemento poético estão sempre presentes na minha prática como escritora. Para mim, os títulos são capazes de reunir e condensar um lugar um pouco mais performativo da escrita. Os títulos, portanto, têm a capacidade de me ajudar a fazer o que eu digo no texto. Se entendermos o título como um espaço, o texto depois responde a esse espaço como um desdobramento, como um processo de revelação, como um lugar de extensão. Acho que essa circularidade entre início, meio e fim faz com que o título seja muito importante pensando tanto na prática textual quanto na prática curatorial. É o mesmo procedimento que o título consegue produzir. Intitular uma exposição é a tentativa de levar o que está posto no título para o espaço. É um espaço de elaboração crítica e criativa. É um ponto de encontro do fazer e do experienciar. O livro tem os pilares de arte contemporânea, curadoria e educação.

Desde o começo isso estava definido ou isso foi se desenhando à medida que a pesquisa foi se desenvolvendo? 

Esses pilares estavam definidos desde o começo. O ponto de partida do livro sempre foi pensar espaços de aproximação com o pensamento curatorial. Por que isso? É historicamente muito marcado que pessoas que hoje se denominam curadores e curadoras, lá atrás elas tinham outras funções. 

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O livro tem uma trinca bem definida: arte contemporânea, curadoria e educação. Isso era uma premissa desde o começo da publicação ou foi algo que se desenhou ao longo da pesquisa? 

Posso te pedir um papel? Para mim é muito importante saber o que as pessoas pensam sobre o livro, então quero tomar nota.

Claro! Aqui está. De onde vem esse interesse?

Para mim, essa troca é sempre importante como lugar de incorporação em outros textos, em outros livros, em outras coisas. Estou interessada em saber o que é que você pensou ao formular as perguntas porque já faço conexões com outros projetos que estou desenhando, entende? Respondendo a sua pergunta, esses pilares estavam definidos desde o começo porque o ponto de partida do livro sempre foi ser um espaço que pensasse aproximações com o pensamento curatorial. E por que aproximações com o pensamento curatorial? Porque é historicamente muito marcado o fato de que muitas pessoas e profissionais que hoje se denominam curadores e curadoras negros tinham outras funções e o próprio processo de autodeterminação como curador e curadora já trazia um elemento crítico para que a gente pudesse compreender como o mercado de se articulava. Ou seja, curadores passavam por esse mesmo processo de invisibilização, apagamento, por esse mesmo processo de ausência. Então, olhar pras aproximações me trazia a possibilidade de entender de modo mais alargado o cenário e, de fato, trazer para o livro pessoas que de fato construíram esse momento. 

Por isso você buscou educadores e educadoras para escrever?

Exatamente. Vários deles vieram de alas educativas de museus e instituições culturais, ou são artistas que tiveram que assumir a posição de curadoras e curadores, seja pela ausência, seja por emprestar o seu pensamento a uma prática curatorial. A educação se tornou um pilar central quando eu percebi que ela também era central para que o próprio livro fosse possível. Ela é a base que dá o fundamento e o sustento para que as práticas artísticas sejam possíveis. 

É por isso que, tanto na minha introdução, quanto em diversos capítulos, aparecem reflexões sobre políticas afirmativas, sistemas de cota, órgãos e iniciativas públicas que se colocaram à disposição para pensar as questões de igualdade racial, por exemplo. Mesmo que o livro não esteja dividido em seções ou categorias, existe todo esse movimento que nos ajuda a construir um retrato de fato de um tempo. 

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Miolo do livro (Fósforo/divulgação)

Quais são as provocações de Negros Na Piscina logo no título e para além dele?

Negros Na Piscina se mostrou um título muito potente para abarcar todos esses debates, justamente por múltiplos significados que ele traz. Desde os mais metafóricos, que passam aí por uma própria elaboração do artista, quando traz referências da sua memória e narra eventos raciais, como o momento em que a família do artista Paulo Nazareth toma o primeiro banho de piscina com a família em Belo Horizonte, como as próprias relações que ele faz com os Estados Unidos, em relação ao modo como as piscinas públicas se tornaram espaços de total separação e apartheid racial, segregação racial. O modo como os movimentos por direitos civis também se organizam e se manifestam ao redor de uma piscina. Mas, por outro lado, existe todo um debate muito mais ligado à representação, que complexifica muito o debate sobre o sistema de representação, que também o título abarca.

O que são esses múltiplos significados que a metáfora piscina abre?

Falo sobre a piscina galeria, falo sobre a piscina museu, mas a piscina escola, a piscina instituição, a piscina… piscina, a piscina mercado de trabalho. Essa é uma oportunidade de entender que o livro se aplica e pode ser lido para além do mercado das artes visuais, para além do sistema da arte contemporânea, mas para profissionais da cultura de modo geral, até porque existem muitas autoras e autoras que são do cinema e da literatura, como Cidiana da Silva e Janaína Oliveira, por exemplo. 

O livro é fruto de uma performance coletiva. E como performance coletiva que se coloca dentro de um lugar entre arte e política, ele carrega o seu lugar, que eu vou chamar de beleza terrível, onde, ao mesmo tempo que se celebra, a gente só celebra porque é fruto de uma exceção. É fruto de uma impossibilidade histórica de exercer a profissão, de participar e de ser visto dentro do sistema da arte.

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No seu texto de abertura você fala sobre a efervescência artística de 2014. Como o mercado de arte se desenhada naquele ano e onde estamos em 2014?

Em 2014, poderia dizer que, de fato, houve uma reviravolta para o mercado, o sistema e as instituições de conhecimento. Não tenho dúvida que tudo isso foi fruto de um trabalho coletivo, porque, como a gente sabe, é impossível se sustentar dentro das instituições tentando reproduzir a síndrome da primeira vez. É importante notar que a “primeira vez” aconteceu por uma questão muito mais metodológica e tática do que pela própria ideia de representação. O que me interessa no ineditismo da primeira vez, por exemplo, entender o que acontece quando esse conflito passa a existir, o que o espaço aprende, o que você sofre, qual é o impacto desse conflito no seu corpo e que tipo de estratégia e de tecnologia você é capaz de criar, elaborar e documentar para quem vem depois.

É muito básico o que a gente conseguiu em termos de estrutura. Acredito que agora a gente caminha para um novo ciclo, talvez nos próximos dez anos, em que haverá, certamente, uma mudança estrutural. E espero que essa mudança seja para a complexificação do debate da representação. E o que isso abre de espaço criativo, inventivo e crítico no processo de criação dos artistas, mas também dos curadores e curadoras. 

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(Wallace Domingues/divulgação)

É muito sintomática mesmo, a síndrome da primeira vez e tem até uma coisa egocêntrica e orgulhosa de falar, “eu sou a primeira”. Sendo que,em alguns casos, você pode estar exatamente tirando uma voz de uma pessoa que veio antes e foi epistemologicamente invizibilizada. Poderia adentrar mais sobre o conceito da Beleza Terrível?

A Beleza Terrível, um conceito da Saydia Hartmann, me ajuda muito a pensar esse entrelugar de extrema beleza das realizações e o lugar de processo de expressão, do processo de manifestação das artes negras e indígenas e toda condição política que está por trás, mas que é, ao mesmo tempo, o lugar do terrível já que também cria condição para que essa manifestação seja possível. O livro tenta sustentar a integridade dessa beleza terrível. Isso é muito importante quando a gente vai entender qual é o tom que a gente fala. Negros Na Piscina poderia ter um tom extremamente festivo, por exemplo. Mas eu acho que manter a integridade é olhar com criticidade para o tempo e para entender o que é que de fato existe ali para além deste lugar de captura e de ultravisibilidade. Entende?

Com certeza. Existe essa questão sintomática da branquitude em ver pessoas negras como uma massa única. E não com a sua especialidade. Não com sua subjetividade. Então, a beleza terrível é uma ferramenta importante para pensar o momento e um determinado tipo de produção que tenta escapar do lugar da representação literal, muitas vezes figurativa, e ainda assim suporta um lugar de beleza, estético, plástico, mas quando você se aproxima, entende que o fundamento deste lugar é extremamente terrível. Ele vem de uma extrema violência, ela vem de uma situação de extrema exploração.

A beleza terrível pode ser aplicada quando a gente analisa uma obra de arte, mas ela também pode ser aplicada ao livro, porque também quando a gente fala da capacidade, da tentativa do sucesso, que muitos desses trabalhos e muitos desses textos narram, sempre o fundo que existe por trás de toda tentativa de sucesso vem de um espaço terrível.

Eu estou aqui tentando decifrar um pouco como que a sua mente funciona, porque lendo, você vê assim, as referências, elas vão fazendo quase que uma costura. Parece que você já está aqui nesta entrevista confabulando o próximo texto do próximo projeto. Acho que esse livro, o meu texto, ele sempre foi um experimento no sentido de eu estar experimentando um tipo de escrita.

E qual escrita você queria experimentar dessa vez?

Acho que era pensar um tipo de inscrição histórica que fugisse de um lugar categórico que cria aí uma certa violência na construção desse outro, ou na construção desse tempo. Seja de autoridade, seja de determinação. Então eu sempre penso em falar “com”, não falar “sobre” as coisas. Todos os encontros importam. Todas as conversas são potenciais lugares de conhecer, de aprender

E o que te chamou a atenção na reunião dos textos durante a organização do livro? 

A completa multiplicidade e diversidade de escritas que é o que de fato rompe com qualquer ideia de uma racialidade homogênea, pouco múltipla e pouco inventiva. 

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Miolo do livro (Fósforo/divulgação)
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O que você aprendeu com este livro? O que ele te ensinou? Nossa! Não sei nem por onde começar. Talvez o melhor ensinamento tenha sido a prática de solidariedade entre colegas e pessoas que você vive, trabalha e convive. Eu acho que o maior aprendizado como organizadora foi fugir deste lugar categórico de confirmação que todos os autores são decoloniais ou que todos os autores são antirracistas. Então, pra mim, fugir de um lugar categórico sobre que parâmetro teórico e que referências epistemológicas cada um tinha e nomear esse tempo…Foi algo que eu fugi. É por isso que o Negros na Piscina foi um título tão importante para título e obra. Porque ela é aberta o suficiente pra, de fato, caber todo mundo. O maior aprendizado é de fato é como a gente escapa desse lugar de uma identidade racial, de uma categoria racial homogênea que reduz o corpo negro e retira o seu lugar de humanização e de singularidade, de subjetivação.

Qual foi a parte mais difícil desse processo do livro?

Sem dúvida, foi o tempo do livro. Conversei sobre isso com a Saidiya Hartman. Falei o quão ansiosa estava com a chegada do livro porque já estava trabalhando nele há três anos e ele ainda não estava pronto. Aí ela virou pra mim e falou: ‘Diane, livros estão sempre atrasados. Eles chegam quando precisam chegar’. E a partir dali, ressignifiquei esse lugar e passei a me adequar ao tempo do livro, que é um tempo muito mais alargado.

Você disse que está muito mais interessada na documentação da primeira vez do que no lado egóico disso. Como você tem trabalhado isso?

Eu sempre escrevi. E a escrita foi a ferramenta que eu encontrei para conseguir lidar com esse espaço da primeira vez. Quando entendi os motivos pelos quais tudo era tão difícil. E entendi que era por não ter acesso…algo mudou em mim. Eu estava conversando com a Cidinha da Silva e ela me perguntou: ‘Diane, quantas pessoas negras você encontra que estão no mesmo lugar que você? Quantas pessoas negras você encontra para trocar e te aconselhar? Você não tem isso’. Então fui escrevendo o que eu vivia nesses espaços institucionais de arte, esse conflito desse corpo particular. Tem textos que são muito sofridos e quando é assim eu abandono e nunca mais volto. Mas existem outros textos que eu volto muito, que eu sempre volto. Não é fácil esse percurso solitário. 

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(Wallace Domingues/divulgação)

Queria que você falasse um pouquinho da sua trajetória como curadora e escrita Quais foram os marcos importantes. Os momentos em que você sentiu Que você estava fazendo a diferença? 

Ter feito a Bienal de São Paulo e lançado o livro Negros Na Piscina para mim é um fechamento de um grande e importante ciclo. Eu falo nisso no meu texto de apresentação, falo do lugar da despedida. Este ano a constelação está toda pronta. Faz dez anos que eu vim pra São Paulo e estou em fechamento de ciclo com a cidade e com essa cena artística local que é uma contribuição que também foi construída para além do eixo sul-sudeste. Todos nós somos provas disso. Sempre foi uma urgência muito grande para mim documentar e escrever historicamente. Rosana Paulino foi essencial pra mim nesse processo.

Você já vislumbra um próximo ciclo?

Ah, eu vislumbro tudo de novo. Consigo ver uma abertura. Eu vou me dividir entre Salvador, que eu acho que é o lugar que eu sempre vou chamar de casa, e Nova York, que é a minha nova casa. 

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