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"Sou um contador de histórias"

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h26 - Publicado em 21 set 2017, 14h20

Na série de quadrinistas brasileiros, é a vez do anti-jornalismo de Ota Assunção, ex-editor da revista Mad

Por Rafael Spaca

A formação em jornalismo ainda é um fator fundamental no caldo de referências que seus desenhos carregam?

Eu já fazia quadrinhos desde criança. Então minhas referências vêm dos próprios gibis que eu lia, principalmente o Mort Walker, o Bud Sagendorf e o Fred Lasswell. E eu já trabalhava em editora (na Ebal) desde os 15 anos portanto antes de entrar pra faculdade!!! Mas a formação em jornalismo foi fundamental pra ampliar meus horizontes.

O que de jornalismo ainda traz os seus desenhos?

Digamos que no Relatório Ota eu fazia uma espécie de anti-jornalismo, né? Porque as coisas que eu colocava nos Relatórios eram todas fake!

Uma pessoa alienada consegue fazer bons desenhos, mas não consegue levar seu trabalho para grandes discussões. Concorda? É função de um desenho/charge trazer à baila grandes reflexões ou discussões? É preciso sempre trazer uma mensagem ou a arte é um entretenimento como outra linguagem qualquer?

Não é necessário trazer uma mensagem. Os quadrinhos não precisam ser políticos nem engajados ou panfletários. Podem ser puro escapismo. O que importa é que sejam bons. Às vezes quem está lendo quer só se distrair. Mas incutir mensagens pode ser bom.

Você começou na EBAL e depois foi para a Editora Vecchi. Qual a importância destas duas editoras na sua vida?

Total. Na primeira eu aprendi a profissão e na segunda aprendi mais um pouco. Na verdade eu estou aprendendo até hoje.

Hoje está mais fácil ou mais difícil ser publicado?

Publicado agora todo mundo pode ser, postar na internet é uma publicação. E as edições impressas alternativas estão proliferando. Mas por outro lado é difícil conseguir espaço na mídia impressa, pois os espaços estão encolhendo. Na época em que comecei foi assim. Cheguei no Ozéas Carvalho (editor de arte de O Jornal) submeti as tiras Os Birutas pra ele, ele olhou, olhou e falou: ok, vou começar a publicar amanhã! Como, depois, quando eu estava na Mad, pessoas apareciam com portfolios, me mostravam, e se eu gostava publicava. A gente ia nas redações. E as revistas eram distribuídas para todo o Brasil. Podia-se revender as tiras pra outros jornais. Hoje é tudo por e-mail, às vezes nem respondem dizendo que não interessa. Mas por outro lado pode-se imprimir os fanzines em casa!

Mesmo trabalhando em grandes editoras você conseguia conciliar, paralelamente, trabalhos mais à margem, em publicações underground. Como transitar em dois universos tão diferentes?

Eu sempre tive grande capacidade de produção. Gostava das revistas underground e colaborava ou co-produzia algumas. Eu ganhava muito bem na Vecchi e, além do trabalho underground ,era ghost-writer de histórias de terror ou do Recruta Zero, que, na época, tinha uma produção original insuficiente e era preciso criar material com pessoal daqui. Eu gostava de tudo que fazia.

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Trabalhos underground dão mais liberdade ao autor?

Sim. O “mainstream” tem restrições. No underground cada um é dono do próprio nariz. Eu evito as grandes editoras. Algumas não deixariam passar muitas coisas, coisas bobas aliás. Qual o problema de colocar peitinhos? Mas as editoras mais caretas não deixam. Mesmo que a Ediouro se interessasse em publicar minhas tiras, iria implicar com cenas de nudez e até com a linguagem maluca que eu uso, a linguagem coloquial, a mistura tratamento tu com você etc.

Gosta de fazer trabalhos sob encomenda?

Não muito, mas se vier eu traço.

Você foi o editor responsável pela versão brasileira da revista Mad. Quais as suas principais lembranças deste trabalho?

Foram 34 anos que eu estive atrelado à Mad. Mais da metade da minha vida (estou com 63). Quando saí definitivamente esse tempo correspondia a 2/3 da minha vida. As recordações são boas, e as melhores vêm do tempo da Record, onde a equipe estava afinada e havia mais liberdade. Quando a Record largou, não estava mais vendendo tanto, foi pra outra editora com orçamento menor e ficava complicado de fazer.

Qual é a importância da Mad no humor nacional? O que ela trouxe de novo para o país e o que ela absorveu daqui?

A Mad é um mundo à parte. Não era uma revista de humor político como o Pasquim, satirizava costumes cultura pop. Os intelectuais torciam o nariz, mas a molecada adorava. Foi boa pra formação de muita gente e antecede a fase besteirol (humor tipo Planeta [Diário]e Casseta [Popular]).

Foram ao todo três idas e vindas da revista Mad no Brasil. Ela é um carma na sua vida?

Três, não. Quatro. Vecchi, Record, Mythos e Panini. Eu estive em todos os números 1. Na Vecchi só não participei dos últimos 12. Na Record e Mythos estive do início ao fim. Saí no sétimo número da Panini. Carma? Pode ser. Mas alguém precisava fazer o serviço, né? Entretanto nunca fui “só” da Mad porque sempre fiz um monte de coisas ao mesmo tempo.

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A Mad era uma revista ideológica?

Sim e não. Havia uma parte política, alguns princípios a serem seguidos, mas ela era mais focada na cultura pop.

E a Spektro, como foi editar essa revista?

Foi melhor ainda. Porque consegui abrir as portas para muitos desenhistas. E roteiristas que começaram lá viraram escritores de sucesso no mercado infanto-juvenil Foi tudo acontecendo aos poucos. Começou principalmente com material enlatado, que aos poucos foi sendo substituído pelos brasileiros.

Você organizou pela Record, em 1984, o livro O Quadrinho Erótico de Carlos Zéfiro. Zéfiro é a maior referência de quadrinhos eróticos no Brasil. De onde veio seu interesse pela obra dele? Acredita que sua obra foi a grande responsável pelo reconhecimento do legado do Zéfiro?

O projeto começou na Codecri, mas me desentendi com eles e ofereci à Record, que topou na hora. Meu interesse vem da adolescência, eu era leitor, como todo mundo aliás. Resolvi fazer essa pesquisa,levei cerca de um ano. Foi muito exaustivo. E na época o Zéfiro era anônimo. Juntei os que eu tinha com outros que consegui com amigos. Hoje não tenho mais nada. Eu me desinteressei pelo Zéfiro depois que ele morreu. Foi meio traumático. Eu e ele tínhamos recebido prêmios HQ Mix naquele ano (1992 acho) e, como não fomos a São Paulo receber o prêmio, montaram uma cerimônia com banda de música e tudo pra nós, isto é, pra ele. Isso numa sexta-feira. Exatamente no dia seguinte, sábado, ele teve um derrame e morreu. Eu tinha combinado de ligar pra ele na segunda-feira seguinte pra estudarmos uma reedição da obra dele pela Record. Aí ele morreu!!!! Fiquei traumatizado e desisti. Eu costumo dizer que o meu interesse pelo Zéfiro morreu quando ele… morreu.

A Revista do Ota não foi além do primeiro número. Em 1994 você tentou retomar a publicação da Spektro que também não foi adiante. O insucesso é uma constante na carreira de um artista?

Eu queria fazer edições independentes, mas esbarrava no problema da distribuição. Lancei cinco números 1 de revistas. A única que deu lucro foi a minha. Aí parei. Eu tinha meu canal na Mad e continuei nele. Lembrando que na época não tinha internet. Hoje o modelo é outro, eu faço meus gibis independentes, anuncio pela internet, vendo por correio ou em eventos, e estou satisfeito. Porque nos evento encontro meus antigos fãs da época da Mad. Mas estou trabalhando sozinho. Trabalhar com outras pessoas é complicado, e quando as revistas não vendem os desenhistas ficam revoltados. Alguns ficam falando mal de mim. Lancei até agora os dois gibis da série A Garota Bipolar, tenho um terceiro já pronto e ainda uma revista mix, a OtaKu Mangazine. Todos são baratos (10 reais) e levo no bolso do colete e fico vendendo na rua. Ou em eventos e palestras. E em algumas lojas, ou pelo correio. Em dois meses recupero o investimento. Eliminei todos os intermediários, exceto a gráfica. Estou pagando minhas contas com isto!!!

Todo desenhista precisa estar mais preparado para o fracasso? O sucesso é um acidente?

Se alguém descobrisse a fórmula do sucesso, não precisariam dos autores. Não é que o sucesso seja um acidente, mas as coisas precisam acontecer no lugar certo e na hora certa. Veja o caso do Superman. Os autores tinham criado há vários anos e não conseguiam emplacar em lugar nenhum. Saiu pela DC mais pra encher espaço da revista Action Comics. E de repente bombou! Isso porque naquele momento, em plena Segunda Guerra, o mundo precisava de um personagem assim. Hoje virou uma das maiores marcas do mundo. A Mad também surgiu meio que por acaso e virou um sucesso da noite pro dia. Com outros personagens também foi assim. Fracasso é uma palavra meio forte, eu diria que se uma coisa não dá certo, a gente aprende com a experiência, o negócio é não desistir nunca. E alguns artistas são reconhecidos apenas depois de mortos, como foi o caso do Van Gogh, que viveu na miséria.

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Por que é tão difícil viver de desenho no Brasil?

Não é só no Brasil. E não é só com desenhos. Em todas as áreas é assim. Tem jogadores de futebol que ganham 1 milhão por mês, a maioria ganha 2 mil reais. Tem milhares de atores mas apenas alguns viram estrelas. Músicos idem. Um pouco de sorte e estar no momento certo ajuda muito.Nos quadrinhos não é diferente. E mesmo no exterior não é compensador pra todo mundo. A maioria dos desenhistas lá ganham pouco (embora vivam bem melhor que os daqui).

Você desenhou para o Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo, entre outros. Ainda hoje o jornal impresso é o veículo que mais dá prestigio ao desenhista?

Sair num veículo de grande circulação ajuda muito e puxa trabalhos.

E o que dá mais dinheiro?

Acho que o que dá mais dinheiro é o agronegócio… hahaha. Se o objetivo da pessoa é ganhar dinheiro, o melhor é tentar outra coisa.

Recomendaria a profissão de cartunista para alguém?

Claro. Se a pessoa gosta de uma coisa tem que fazer. Mas tem que saber que vai ralar um bocado e pode não ser bem sucedido financeiramente.

O Brasil está vivendo um momento sui generis há, pelo menos, uns três anos. Impeachment de presidente, Lava Jato, políticos e grandes empresários presos e uma enormidade de acontecimentos diários. Não acha que os cartunistas, chargistas, enfim, toda a categoria, não está tímida diante de tantos fatos instigantes?

Isso tudo que está acontecendo me deprime. Nem vou perder tempo falando dessa ladroeira que sempre existiu e agora veio à tona toda de uma vez. Gostaria que esses inimigos da pátria morressem. Não presta ninguém. Eu não sou necessariamente chargista, embora já tenha feito. Mas chargista tem que ter seu espaço diário porque as charges perdem a validade rápido. Se forem compiladas anos depois as pessoas não lembram direito a que se referiam. Eu estou na outra vertente, sátira e crítica de costumes. Essas nunca perdem a validade. As minhas tiras atuais (da Garota Bipolar) estarão válidas daqui a 500 anos, porque sempre haverá casais brigando, aliás sempre teve desde que a humanidade começou. E as situações são as mesmas. Mudam os aparatos em volta. E não sou necessariamente um desenhista, sou um contador de histórias que usa a arte dos quadrinhos pra se expressar.

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Qual é o papel de desenhistas, num momento como esse, diante de tantos desmandos na política?

Por que alguém precisa ter um “papel”? Além dos atores é claro. Isso parece pergunta de estudante de jornalismo do primeiro período. Sei lá, cada um faz sua parte, alguns conscientizam as pessoas, outros as divertem pra relaxar…

Gostaria que falasse do trabalho que executou na restauração das revistas Luluzinha e Recruta Zero.

Foi um trabalho que gostei muito de fazer, estava trabalhando com meus personagens prediletos. Ver os quadrinhos ampliados na tela do computador me deu mais inspiração. Infelizmente, com a crise, essas revistas pararam.

A grande maioria dos leitores não conhece a nossa história quadrinística. Qual obra nacional você recomendaria e gostaria de trabalhar na restauração?

Quero trabalhar na restauração do Relatório Ota! E aproveito pra fazer o meu jabá. Lancei uma campanha no apoia.se — https://apoia.se/otacomix — onde os fãs doam pequenas quantias mensais. Com isso posso investir no meu próprio trabalho, em vez de trabalhar pra terceiros. Ainda não bati a meta mas já estou conseguindo pagar algumas contas com esse dinheiro e com isso produzir mais meu trabalho pessoal.

Existe uma cultura quadrinistica no país?

Claro! Aliás acho que atualmente se lê mais quadrinhos do que antes.

O que precisa para estabelecermos uma política de preservação e difusão da história das nossas HQs?

Este é outro assunto que me deprime. O governo não está interessado em cultura. Nem em educação. Quer é dar pão e circo para o povo se distrair e esquecer os absurdos que são praticados. Não há garantia de que uma entidade desse tipo vá durar. Pode num governo haver um secretário ou ministro da cultura que se interesse, mas no governo seguinte pode chegar um idiota qualquer no posto que não goste de HQ e destruir tudo o que foi feito, decidir investir em outra área. Mas isso não é só aqui. Museus etc custam caro. O Mort Walker por exemplo fez um na Flórida que fechou por falta de recursos (e doou o acervo pra uma universidade). Ele começou o museu quando viu que originais de algumas tiras clássicas estavam sendo usados pra tapar buracos de canos nos porões do King Features…

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Como define seu traço?

Meu traço está mais caprichado agora, mas o que todos falam é que, na época que era mais “matado”, era expressivo e fazia arrancar boas gargalhadas.

Desenhista pode levar uma vida burocrática?

De jeito nenhum. Se eu tivesse feito um concurso público estaria com a aposentadoria agora, mas por outro lado já teria morrido de tédio.

Ota é?

Ota é um alienígena que caiu por acaso neste planeta maluco.

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