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A maldição de Paulo César Pereio

Documentário 'Pereio, eu te odeio', de Allan Sieber e Tasso Dourado, que levou mais de 20 anos para ser finalizado, tem estreia nos cinemas prevista para 2025

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 22 ago 2024, 12h45 - Publicado em 8 ago 2024, 10h00
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 (Pereio, eu te odeio/divulgação)
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Alguns filmes colecionam histórias de bastidores que nos intrigam tanto quanto (ou até mais) do que o próprio enredo. O documentário “Pereio, eu te odeio”, de Allan Sieber e Tasso Dourado, é provavelmente um desses. O filme tem como personagem central o ator Paulo César Pereio, que faleceu em maio deste ano. Após ser adiada várias vezes, a obra finalmente ganhou uma previsão de estreia nos cinemas para 2025 e também será exibida na programação da 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro.

O filme já foi exibido em alguns festivais. A primeira mostra foi no Festival de Cinema do Rio de Janeiro, que teve presença do próprio Pereio. “O filme disse o que tinha que dizer”, resumiu o ator, um pouco impaciente, quando questionado sobre a sua opinião acerca da obra.

O diretor Tasso Dourado recorda a recepção calorosa do ator na estreia no Rio: “Pereio me deu um abraço muito afetuoso ao final do filme, o que entendi como um agradecimento. Nós que o conhecíamos pessoalmente sabíamos que ele não iria querer qualificar um filme sobre si mesmo; inclusive, ficou um pouco irritado com as pessoas perguntando o que ele achou.”

Há muitos aspectos que merecem ser destacados no documentário, o primeiro deles é que se trata de um filme que levou mais de 20 anos para ser concluído. Não exatamente por problemas de produção, mas pela dificuldade em conseguir incentivos para a realização do longa até ser finalizado em 2023. “Por mais que o projeto fosse inscrito em editais do Minc, ele nunca entrou em nenhum edital de finalização, de nada. E eu recebia umas respostas idiotas, tipo: ‘Esse filme não está à altura do objeto, do documentário’. Enfim, o que pega são essas pessoas da seleção, elas são as que fodem o cinema brasileiro. São as pessoas mais burras do mundo”, avalia Allan Sieber.

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Cena do filme “Bravo guerreiro” (Pereio, eu te odeio/divulgação)

Esse tipo de resposta que Sieber recebeu se deu, principalmente, pelo modo como escolheu retratar Pereio, a partir de suas controvérsias e de seu gênio difícil. Mas mal sabiam os pareceristas que essa foi uma exigência de ninguém menos do que o próprio Pereio. Conhecido por seu trabalho no cinema, teatro e televisão, ele foi um dos principais representantes do movimento do cinema marginal brasileiro nos anos 1970. Pereio dirigido por grandes nomes do cinema brasileiro, como Glauber Rocha, Hector Babenco, Arnaldo Jabor, e atuou em mais de 60 filmes, entre eles: “Terra em Transe” (1967), “Os Inconfidentes” (1972) e “A Dama do Lotação” (1978).

A relação de Sieber com Pereio começou em 2001, quando o cineasta realizou a animação “Os Idiotas Mesmo”, e Pereio foi convidado para dublar sua versão animada. Por muito tempo, o ator era conhecido como um dos melhores locutores do país. Depois da parceria, o ator começou a visitar a produtora carioca de Sieber com certa frequência. Foi então que Denise Garcia, uma das sócias e esposa de Sieber na época, sugeriu que fizessem um documentário sobre a vida do ator, abordando seu talento, mas também — e principalmente — seu comportamento polêmico. Pereio aceitou, mas com uma ressalva: não queria um filme com pessoas bajulando ele, mas que dissessem a verdade. “Ele tinha senso da própria escrotidão”, afirma Sieber na exibição do documentário no Festival de Cinema de Ouro Preto.

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Eu te amo (Pereio, eu te odeio/divulgação)

Em 2020, surgiu um novo horizonte para o filme que estava perto de se tornar uma lenda. “Foi quando conseguimos uma parceria com a [produtora] Saigon e o Canal Brasil, que botaram grana e investiram no filme, possibilitando novas gravações. Mas nessa hora chegou a pandemia e aí, enfim, ficou mais um ano parado.”

Em 2024, “Pereio, eu te odeio” foi finalizado e agora ganha previsão de lançamento nos cinemas. Mas, por uma armadilha do destino, Pereio já não está mais conosco. Ele faleceu em decorrência de uma doença hepática em estágio avançado. Na ocasião, ele vivia no Retiro dos Artistas, lugar que ele mesmo escolheu viver.

O resultado de tanta espera é um documentário hilário, com amigos e familiares falando mal e relatando os diversos absurdos que o ator cometeu em vida.“Ele era uma pessoa que realmente não abria mão de ser o Pereio nunca. O personagem que ele criou, o Pereio, escroto, acabou tomando conta da pessoa, então ele não distinguia mais o que era o personagem e o que era a pessoa. Mas eu me sinto muito sortudo de ter convivido com ele. Sem dúvida, ele foi a pessoa mais culta que eu já conheci, muito, muito culta. E não só culta em conhecimento acumulado, mas uma pessoa muito inteligente, muito sagaz e muito bem-humorada”, conta Sieber.

Desde seus colegas de profissão até seus filhos e ex-esposas, como Neila Tavares e Cissa Guimarães, todos recordam o gênio difícil do ator e as encrencas nas quais ele se metia. Uma das maluquices ocorreu quando Pereio resolveu pegar o carro de Cissa emprestado para ir até uma boca de fumo, no Cerro-Corá, no Cosme Velho.

No meio do caminho, parou para tomar uma, mas ao estacionar esqueceu do principal: de engrenar corretamente o freio de mão. Resultado: o carro despencou morro abaixo e caiu em cima da caixa de luz do Túnel Rebouças. O túnel ficou sem luz, interditado, e parte da cidade parou. Quando saiu no jornal, Pereio xingou os jornalistas por não explicarem o fato corretamente: “Ele disse que não caiu na boca do túnel, mas caiu da boca no túnel”, conta Cissa no documentário, obviamente aos risos.

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A isso se somam outros desmandos. Ele chegou a ser preso em 1994 por não pagar pensão alimentícia aos filhos que teve com Cissa, João e Thomáz. No entanto, após algum tempo, eles chegaram a um acordo. Após a morte de Pereio, Cissa prestou homenagens ao seu antigo companheiro, com quem manteve uma relação de amizade. “[Foi] uma relação de amor, até hoje, eterna. Uma relação de agradecimento, não apenas como sua companheira e mãe dos filhos, mas também como espectadora da cultura brasileira.”

Apesar das maluquices e dificuldades que ele arranjava, o carinho de todos é evidente. Era o tipo de pessoa que detestamos amar. Muitos dos problemas que ele causava eram acompanhados de gargalhadas futuras. “Falar do Pereio não tem como você fugir do humor, entendeu? Porque, acima de tudo, ele era uma pessoa muito engraçada, cara, com aqueles esporros performáticos, sabe? Depois eu fui entender isso. Ele me dava uns esporros horríveis e, depois, percebi que era uma performance, não que ele estivesse realmente puto comigo. Era quase um tique; ele tentava te dar um esporro, ficava vermelho, cuspindo, parecia que ia ter um AVC. Aí, de repente, cortava, e a gente estava lá, bebendo, e ele contava uma piada horrorosa.”

Com carinho, Sieber lembra que quando conheceu o ator, ele também sofreu com o temperamento azedo de Pereio, mas o que fica é o carinho e admiração, que também ganham espaço em “Pereio, eu te odeio”. “Eu fugia um pouco dele. Às vezes, ele me ligava e eu não atendia. Eu me arrependo, mas é que sair com o Pereio era tudo muito intenso. Você sabia que ia passar por momentos tensos porque ele ia fazer alguma grande merda. Por exemplo, um dia, lá em 2002, estávamos tomando uma cerveja num bar na Gávea, e um bebum residente começou a falar: ‘Eu te conheço, você trabalhou na televisão, né? Trabalhou na Globo, né?’. E o Pereio: ‘Não, nunca trabalhei na Globo.’ Mentira, trabalhou. E o cara enchendo o saco, insistindo, e aí o Pereio, aos berros, começou a dar um esporro no cara: ‘Puta que pariu, mas tem um tipo de filho da puta que só se educa na cadeia.’ Era tudo muito intenso”, finaliza Sieber.

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