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Ana Rieper revisita passado colonial brasileiro no documentário “Paraíso”

O longa conquistou o prêmio principal da mostra competitiva na última edição da Mostra de Cinema de Ouro Preto

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 10 jul 2025, 11h51 - Publicado em 10 jul 2025, 09h00
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Ana Rieper, diretora de "Paraíso", obra vencedora do CineOP (Léo Fontes / Universo Produções/divulgação)
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A cineasta carioca Ana Rieper vive um período de intensa produção e reconhecimento. Pouco tempo após lançar “Nada Será Como Antes – A música do Clube da Esquina”, documentário que resgata o legado de um dos movimentos mais influentes da música brasileira, a diretora retorna com um novo longa já premiado. “Paraíso”, seu mais recente trabalho, foi consagrado na Mostra de Cinema de Ouro Preto (CineOP), recebendo o primeiro prêmio da mostra competitiva.

Desta vez, Rieper desloca o foco de suas tradicionais narrativas musicais para uma abordagem mais ampla e contundente sobre os fantasmas históricos que ainda assombram o Brasil. Diferente de seus trabalhos anteriores, que costumam se ancorar na música como fio condutor, Ana amplia aqui sua investigação para refletir sobre os fantasmas históricos do Brasil. O título Paraíso surge carregado de ironia, ao nomear um país marcado por profundas desigualdades como se fosse um lugar idílico. A obra mergulha nos resquícios do período colonial, atravessando temas como escravidão, concentração fundiária, racismo estrutural, violência e apagamentos históricos que moldam a sociedade brasileira contemporânea.

Com uma construção narrativa marcada pelo uso de imagens de arquivo de diferentes naturezas e por uma trilha cuidadosamente conduzida, o documentário propõe uma viagem sensorial e crítica pelas relações forjadas pela posse de terras e de corpos. O filme evoca episódios ligados à história do agronegócio, à violência contra os povos indígenas e à permanência de mentalidades escravocratas na sociedade brasileira contemporânea. 

Reconhecida por seu olhar sensível e politizado, Ana Rieper é documentarista com formação em Geografia, Antropologia e Cinema. Seus filmes exploram temas sociais por meio de narrativas que entrelaçam música, memória e território. É diretora de obras como “Vou Rifar Meu Coração”, “Na Veia do Rio”, “Clementina” e do curta “Saara”. Com “Massa Funkeira”, atualmente em fase de finalização, ela soma sete longas-metragens na carreira.

Durante a CineOP, a Bravo! conversou com a diretora sobre a construção de “Paraíso”, as escolhas estéticas e políticas que moldam o filme e as perspectivas que o reconhecimento no festival abre em sua trajetória.

Paraíso foi o grande vencedor da primeira mostra competitiva da CineOP. Como você recebeu essa premiação e que perspectivas ela abre para sua trajetória? 

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Esse foi um prêmio muito significativo para o filme, por várias razões. É o primeiro ano que o CineOP, esse festival tão importante que trata da preservação e dos arquivos, então esse prêmio acaba ganhando uma perspectiva histórica. Além disso, essa premiação situa o filme dentro dessa discussão sobre o material de arquivo, seus usos e mesmo a importância política da sua existência. 

É um filme muito construído sobre uma diversidade muito grande de tipos de arquivo, então acho que estávamos realmente no lugar certo. O filme traz essa reflexão a respeito da forma como esses arquivos audiovisuais contam a nossa história e constroem a nossa história de uma forma bastante complexa. 

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Casa grande00 filme articula imagens de arquivo para discutir as heranças da condição colonial no Brasil. Quais foram os principais desafios no acesso a esses arquivos e como você vê a importância dos acervos públicos e da preservação audiovisual para o cinema brasileiro? (Rafael Mazza/divulgação)

Os arquivos públicos foram fundamentais para que pudéssemos realizar esse filme da forma como foi idealizado, ou seja, a partir de uma narrativa desviante, contraditória, que coloca em dúvida algumas ideias sobre o Brasil historicamente construídas. Para isso, precisávamos de uma quantidade grande de material, e de um material que atravessa tempos históricos diversos. 

Nós utilizamos desde Os Óculos do Vovô, de 1913, guardado pela Cinemateca Brasileira, até imagens contemporâneas das TVs Câmera e Senado. Os filmes guardados e disponibilizados pelo Arquivo Nacional e pelo Lupa – Laboratório Universitário de Preservação Audiovisual da UFF foram também fundamentais para a realização do filme. 

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A existência desses arquivos é de uma relevância política, artística e social muito grande para que a nossa memória possa ser revisitada e construída através do tempo. E para que nossos filmes continuem sendo feitos e no futuro também possam ser vistos e disponibilizados. 

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Exibição do documentário “Paraíso” na 20ª Mostra de Cinema de Ouro Preto (Leo Lara / Universo Produções/divulgação)

A narrativa de Paraíso combina rigor de pesquisa, crítica social e uma abordagem sensível. Como surgiu a ideia do filme e que caminhos você percorreu até a versão final?

Paraíso é um documentário ensaio sobre as heranças coloniais na família brasileira. O filme propõe uma viagem afetiva muito pessoal, muito subjetiva, pelas formas como a ideia de família fundada pelo latifúndio e pelo patriarcado nos atravessam em nossas vidas cotidianas, domésticas, em nossas relações mais pessoais.

O filme faz uma travessia no tempo, apoiada em 4 elementos centrais – a música, os arquivos, a leitura de textos sobre a vida privada no Brasil Colônia e Império e os personagens contemporâneos. Os arquivos fazem o encontro de tempos históricos distantes através de narrativas visuais produzidas em tempo e espaços diversos. 

Esse formato estava estabelecido desde o início do desenvolvimento do projeto há cerca de 10 anos. Ao longo desse tempo os conteúdos foram sendo trabalhados, a pesquisa de arquivo, a pesquisa bibliográfica dos textos lidos em off, e a pesquisa de personagens foi sendo desenvolvida. 

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O filme faz transposições temporais e geográficas o tempo todo, e a articulação entre som e imagem, em descontinuidade, às vezes reforçando um ao outro, às vezes opondo-se mutualmente de forma muitas vezes irônica, ajuda nessas transposições.

A proposta do filme, desde o início, foi expressar como as forças coloniais atravessam o tempo e ocupam lugares tão íntimos quanto a família, o amor, a experiência doméstica e física. O entendimento de história e política como algo que permeia todas as esferas da vida guiou todo o processo de produção. 

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Norivaldo Guarani-Kaiowá (Rafael Mazza/divulgação)

Você já falou sobre como a desigualdade de gênero afeta o acesso a recursos no audiovisual. Como foi viabilizar Paraíso dentro desse contexto? 

O último dado público sobre gênero e raça no audiovisual brasileiro foi divulgado em 2018. Ali foi constatado que de todos os filmes lançados em cinema no ano anterior, apenas cerca de 20% eram dirigidos por mulheres. E ali também tivemos acesso à estarrecedora informação de que nenhum desses filmes tinha uma mulher preta nos cargos de direção, roteiro, produção executiva ou direção de fotografia. 

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De lá pra cá vejo um cenário um pouco mais favorável à correção dessas inaceitáveis desigualdades. Mas um processo lento, com avanços pequenos (ainda que muito significativos) em relação ao tamanho do problema. 

A produção do Paraíso atravessou 10 anos e, mais uma vez, realizamos esse filme com a qualidade que ele tem graças ao trabalho incansável e certamente sub remunerado de um time de mulheres nas funções de direção, roteiro, produção executiva e pesquisa.  

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Cartaz em inglês do filme (Ana Rieper/divulgação)
Em um cenário de urgências sociais e políticas, o que você espera provocar no público com Paraíso, especialmente ao tratar de temas como violência, resistência e afeto?

A trajetória de alguns personagens no filme, em que essas relações de opressão e violência são rejeitadas, são um contraponto, um esteio de afeto, de bonança, de força, de beleza. Pessoas que estão em lugares de muita agência e de rompimento dessa ordem neocolonial.

Nosso objetivo nesse filme era questionar a maneira como a história havia sido escrita e contada, principalmente a parte em que o Brasil se constrói como terra da cordialidade e da gentileza, enquanto vivemos uma violência brutal. 

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O filme tem um propósito contra-didático, gerado pela articulação entre som e imagem. Ele convida o espectador a reorganizar sua familiaridade com esse material. Assim como a memória, as imagens de arquivo do filme são reconstruídas no presente.

A narração traz à tona um discurso inconsciente que paira, que construiu uma estrutura do inconsciente brasileiro ao longo dos séculos.

 As imagens criticam o que está na voz do narrador, ou seja, propõem uma revisão da palavra da história. O arquivo desloca o lugar da palavra. O filme desloca os arquivos de seu local nativo, através de uma montagem que frequentemente contradiz o que vemos. Faz isso como um questionamento de um discurso oficial. 

Estamos produzindo uma campanha de impacto desse filme, com exibições em assentamentos rurais, pre vestibulares populares, cineclubes de periferia, com debate após as sessões, para que o filme cumpra o seu objetivo político de gerar debate e reflexão, de pensarmos a partir do filme no Brasil que queremos construir a partir de agora. 

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Incêndio casa de reza Guarani-Kaiowá (Paraíso/divulgação)
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