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Clube da Esquina: a música que nasceu da amizade

"Nada Será como Antes", documentário de Ana Rieper, retrata a rica história e o legado do movimento musical Clube da Esquina

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 2 abr 2024, 13h10 - Publicado em 29 mar 2024, 10h00

A história da música brasileira é repleta de coincidências. O Clube da Esquina é, possivelmente, um dos maiores exemplos da música que surge do encontro e da amizade. Fundado em 1963, em Belo Horizonte, o conjunto nunca se estabeleceu como algo fixo, como uma banda; era algo menos pretensioso que isso. Começou com o encontro de Milton Nascimento, o Bituca, e os irmãos Borges (Lô e Márcio). Outros músicos se juntaram posteriormente: Nivaldo Ornelas, Toninho Horta, Beto Guedes, Robertinho Silva, Flávio Venturini e Wagner Tiso.

Assim como muitos brasileiros, a diretora Ana Rieper foi tocada, ainda jovem, pela música do Clube da Esquina. Nascida no Rio de Janeiro, ela frequentemente viajava para Minas Gerais. Havia uma conexão entre ela e o movimento para além da música, que também era enraizada em uma relação de amizade. Ana é amiga de infância de Zé Roberto Borges, filho de Márcio Borges. E, através de mais um encontro casual, nasceu a ideia de fazer um filme retratando a história desse movimento musical mineiro. Foram 10 anos até que nascesse o documentário Nada Será como Antes – A música do Clube da Esquina, que estreia hoje (28) nos cinemas do país.

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Cena do documentário “Nada Será Como Antes” (Juvenal Pereira/divulgação)

A obra se desenrola como um simples encontro entre amigos apaixonados por música, que conversam sobre outros artistas – a paixão excepcional por Beatles – e, é claro, cantam juntos. Pode parecer muito simples, mas sabemos que aquilo que surgiu dessa antiga amizade é também muito sofisticado.

 

 

A história já foi contada muitas vezes, mas pelo seu encanto, merece ser repetida. Milton havia se mudado há pouco para Belo Horizonte. Estava sentado na calçada, cantando e tocando violão. Naquele mesmo momento, Lô Borges, apenas um menino na época, estava a caminho da padaria, a pedido de sua mãe, para comprar pão. No caminho, o garoto foi atraído pelo som. A música foi a desculpa para que os dois travassem uma conversa e se identificassem. E logo, os rapazes começaram a se reunir entre as ruas Divinópolis e Paraisópolis para tocarem juntos.

O longa já foi exibido no Festival do Rio e na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, além do Festival Internacional de Cinema de Belo Horizonte. Fez também passagem internacional, com o EIDF (International Documentary Film Festival) na Coreia do Sul. Ana conversou com a Bravo! sobre o legado do Clube da Esquina e os desafios de resumir essa rica crônica musical em um documentário.

Como surgiu a ideia do documentário?

Venho de uma trajetória de fazer filmes sobre música. E o Clube da Esquina é uma parte importante da minha vida, da minha construção de pessoa. Mas eram apenas músicas que eu gostava de ouvir. A ideia nasce de um reencontro que tive com Zé Roberto Borges, que era um amigo de juventude, que é filho do Márcio Borges. Ele foi criado e pegado no colo por todo esse povo. Nós nos afastamos e nos reencontramos num bar em Santa Tereza, conversa vai, conversa vem, e surgiu essa ideia de fazer o filme. Daí partimos para essa jornada que completa 10 anos. É, então, um filme sobre a amizade.

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Antes disso, você já tinha uma ligação especial com o Clube da Esquina?

Muito. Quando eu era muito jovem, eu tinha alguns amigos mineiros, tinha uma ligação muito forte com Minas. Conheci o Clube da Esquina através desses amigos, foi uma vivência de jornada de juventude.

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Cena do documentário “Nada Será Como Antes” (Juvenal Pereira/divulgação)

Como foi o processo de investigação de história do grupo?

No início, era sobre o livro do Márcio Borges, “Sonhos não envelhecem”. Foi o primeiro contato com o Clube da Esquina, para além da música. É um livro maravilhoso, o Márcio é um grande escritor e ele conta essa história muito de dentro. Eu li o livro e fiquei encantada.

Tem também essa questão que levei 10 anos para fazer este filme. E por que leva tanto tempo? Certamente, não é por nossa escolha, mas porque é difícil fazer um longa-metragem, viabilizar, preparar, embalar para presente e lançar. Esse tempo acaba sendo nosso parceiro, porque no início tinha essa relação forte com as histórias a partir do livro do Marcinho. Mas, ao longo do tempo, com muitas conversas sobre o próprio processo de realização do filme, fomos entendendo qual era o tema dele. Fazer um filme sobre o Clube da Esquina pode ter mil filmes. Eu entendi que o tema do filme seria a própria música. Foi a partir das músicas que surgiram a ideia de roteiro, os dispositivos de filmagem. As histórias estão lá, mas o que dá chão para ele é falar da música dessas pessoas incríveis.

Foi muito difícil conseguir reuni-los?

Foi demais. O Zé Roberto Borges é coprodutor do filme. Ele foi muito importante em muitos aspectos. Ele conseguiu juntar todo esse pessoal.

Queria que você comentasse mais sobre deixar de lado alguns dos aspectos do movimento, como a política, para focar no fazer musical. O que te levou a essa escolha?

Não existia a possibilidade desse filme dar conta de todos os aspectos do Clube da Esquina, de um movimento tão complexo e rico. Mas para nós era importante trazer pontos que fossem importantes abordar lado a lado com essa narrativa musical. A música é muito narradora do filme, não apenas nas falas deles, mas nas gravações e nos momentos que os artistas encontram seus instrumentos. Mas tentamos trazer outros aspectos que eram importantes, como a política, o cinema, a amizade, histórias que são míticas, como a história do patinete. São histórias fundamentais.

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Em relação à questão da política, entendo que como esses artistas lidam com a música é uma postura política muito relevante. É uma postura anticapitalista. Basta ver como eles se organizavam para gravar; era totalmente sem hierarquia, sem institucionalização e movidos pelo desejo. Essa é uma enorme postura política, que vai de encontro à forma como o show business se organiza. E essas pessoas vivem dessa maneira até hoje, grande partes desses artistas.

O cinema é outro fator muito relevante, que está inserido a partir de várias estratégias. O fato de o Márcio ser fotógrafo do filme e estar em cena, é uma forma de trazer o cinema para dentro do filme.

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A diretora e documentarista Ana Rieper (Ana Rieper/divulgação)

Tem um aspecto curioso que é ver como eles se organizam. Parece que existia muito caos, mas algo extremamente sintonizado, que resultou em coisas magnificas. O que você entendeu sobre o processo criativo do movimento?

O primeiro é o talento deles; são pessoas com uma genialidade musical e poética. Mas, olhando mais por dentro do conjunto, o Clube da Esquina é uma obra muito coletiva, fruto do encontro dessas pessoas. Tem o fato de cada um ter tido a liberdade de trazer, por conta de ser uma relação afetuosa e sem hierarquia, e colaborar a partir de suas referências. Tinha influência do rock, do progressivo, dos Beatles, do jazz, da música regional mineira, do choro, da música cigana do Leste Europeu, da música africana, da música religiosa. Acho que essa diversidade é um dos fatores fundamentais do Clube da Esquina.

O filme traz muita espontaneidade e simplicidade nesse encontro entre os artistas. Isso foi algo proposital, ou resultado da dinâmica entre eles?

Olha, a espontaneidade foi pensada e planejada até o fio de cabelo (risos). Em vários debates que aconteceram sobre o filme, as pessoas falaram ‘Muito legal que você só precisou ligar a câmera’. Não existe isso. Um documentário é produto do encontro da equipe de filmagem com aquele universo retratado. Nada acontece a despeito de uma intenção do filme, eu acredito. As cenas foram, sim, pensadas, planejadas e produzidas, mas teve um procedimento da equipe com um pé de algodão, muito suave, e muito a serviço dos movimentos da cena e de ação daqueles personagens naqueles espaços. Eu direcionava como as coisas iam acontecendo, mas muito sutilmente. Em linhas gerais, nos preparamos para deixar a cena para os personagens.

Teve um momento na casa dos Borges, que o Lô perguntou ‘E aí, diretora, já pode começar?’. E eu falei ‘Já começou há muito tempo, é só continuar.’

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O que mais te fascina na história do Clube da Esquina?

É difícil de responder, mas acho que é a música. Mas depois de percorrer essa trajetória toda do filme, me encantam muito as pessoas, como elas são soltas, amorosas e receptivas. E, principalmente, como elas têm amor pela vida. Você não encontra ali pessoas rancorosas, que estão de mal com a vida. Fico muito encantada estar perto deles, sendo esses grandes astros, ícones da minha vida, ícones da vida do mundo.

Acho que o Clube da Esquina é um divisor de águas na música do mundo. Sempre gostei de ler ficha técnica de discos, e eu estava com o CD do Clube da Esquina 1, que era um selo estadunidense de world music. E tinha um catálogo no CD com os discos do selo, e tinha uma sinopse falando de cada um deles. Tinha música do Norte do Mali, e dizia que tinha influências do Clube da Esquina 1 e 2, “Dois dos melhores álbuns já gravados em todos os tempos no mundo”. Então, eles influenciaram a música do mundo. Acho que tem um paralelo com a música dos Beatles, que nunca envelhece.

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Musicos do Clube da Esquina em Diamantina – MG (Juvenal Pereira/divulgação)

Muitos filmes e documentários fazem esse circuito por festivais antes de estrearem nos cinemas. Esse também foi o caso de Nada Será Como Antes. Essa etapa facilita de alguma maneira a inserção do filme nas salas ou é um processo desafiador até o fim?

Olha, comecei a fazer filmes nos anos 90. Então, de lá para cá, vi muita coisa melhorar. O documentário ganhou mais espaço. Lembro que no primeiro festival do É tudo verdade, tinha cerca de 20 filmes inscritos, hoje tem 400. A produção cresceu, e o espaço para esses filmes também. Mas, assim, o documentário é um tipo de cinema que está sempre precisando brigar por espaço, por financiamento, por divulgação. Eu fico remando contra a corrente. São filmes com orçamentos menores e não é à toa que tem mais mulheres no documentário do que na ficção, pois existe uma estrutura machista, na qual os filmes com orçamento mais baixo são aqueles que têm um número maior de mulheres na direção.

E por estarem mais presentes, as mulheres conseguem ter mais autonomia criativa no documentário do que na ficção?

Tem mais mulheres no documentário, e os documentários são filmes com orçamentos mais baixos. É uma questão de como queremos olhar para esses fatos. Eu olho para eles entendendo que o orçamento maior é dos homens, pois vivemos numa estrutura capitalista e machista.

Vou contar uma história, tentei vários editais, perdi. Normal, até que chega uma hora em que você ganha. Fui para um edital específico de perfil mais comercial. Eu tive nota excelente, mas não entrei. No ano seguinte, fui selecionada para a fase de seleção oral, ainda não entrei. Mais uma vez, no ano seguinte, fui selecionada para a apresentação oral, e eu mudei um pouco o meu discurso. Naquela altura, eles já tinham lido o projeto, então decidi falar o que eu achava. E falei “Olha, esse é mais um projeto que eu tenho nota máxima nos quesitos artísticos que eu não ganho, mas acho que tem a ver com o fato de sermos apenas 20% de mulheres na direção de longa-metragens. A minha produtora e estrutura são pequenas, mas eu tenho um bom projeto. Então por que não podem me dar?” E aí eu ganhei. Nós, mulheres, temos um oceano inteiro para nadar. Precisamos batalhar mais para colocar nossos filmes no mundo, mas seguimos aí.

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Nada Será como Antes - A música do Clube da Esquina

Ana Rieper
Documentário
78′
Brasil – 2023

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