A autobiografia caricatural de Marcelo Marão
Na animação "Bizarros Peixes das Fossas Abissais", Marcelo Marão desenvolve a história de uma super-heroína, uma tartaruga e uma nuvem falantes
Uma jovem com superpoderes encontra uma tartaruga com Transtorno Obsessivo-Compulsivo e uma nuvem com incontinência urinária, ou melhor, pluviométrica. Juntos, elas percorrem meio mundo em busca de peças de um mapa, enfrentando seres monstruosos que tentam atrapalhar seus planos. Essa é a trama do novo longa de animação Bizarros Peixes das Fossas Abissais, de Marcelo Marão, um dos mais importantes nomes do gênero.
Destinada ao público young adults, a obra foi lançada na última semana com uma exibição especial na Mostra de Cinema de Tiradentes, um dos maiores festivais do país. Coincidentemente, essa estreia aconteceu na mesma semana em que a animação brasileira comemora 107 anos desde a exibição da primeira produção nacional em 1917, O Kaiser, criada pelo cartunista Álvaro Marins. Para Marão, o momento atual da animação no Brasil é único e especial, com um aumento significativo na produção nacional.
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“Quando comecei nos anos 90, o Brasil tinha menos de 30 longas de animação. Hoje, em 2024, são produzidos 40 longas nas cinco regiões, algo inédito. As técnicas abrangem 2D, 3D, 2D vetorial, animação de recorte e stop motion. No momento, há 80 séries brasileiras sendo exibidas. A progressão geométrica foi intensa”, compartilhou em entrevista à Bravo!. Marão destaca o papel crucial do festival Anima Mundi, encerrado em 2019 por falta de patrocínios, no desenvolvimento desse cenário.
Em nossa conversa, Marão abordou sua mais recente adaptação, que curiosamente incorpora muitos elementos de sua própria vida. O longa tem dublagem de Natália Lage, Rodrigo Santoro e Guilherme Briggs; e a realização foi feita ao lado de seus amigos e parceiros de longa data, Rosaria e Fernando Miller.
Confira abaixo a entrevista completa:
Como surgiu a ideia de criar o longa de animação Bizarros Peixes das Fossas Abissais?
Sempre trabalhei com animação 2D tradicional. No final dos anos 1980, havia muito pouco de animação no Brasil. O que havia era principalmente na publicidade. Me formei em Belas Artes e, em vez de realizar um projeto de identidade visual para um negócio, propus um curta de animação, utilizando a forma mais tradicional que eu conhecia: desenhado no papel, transferido para acetato, filmado na truca em película, montado na moviola e revelado em negativo no laboratório.
Ao longo dos últimos 30 anos, tenho alternado minha vida entre trabalhos encomendados, como propaganda, comerciais e aberturas de novelas, e a produção de curtas. Há cerca de 10 anos, tive algumas ideias soltas que poderiam funcionar em uma duração um pouco maior do que os curtas. Era uma narrativa simples, onde um trio atravessa vários lugares em busca dos cacos de um mapa.
No longa, sabendo que passaria trabalhando nele de cinco a seis anos, eu não queria trabalhar novamente em um projeto já pronto, mesmo que fosse meu. Não desejava reviver o meu eu do passado, repetindo o que já estava resolvido. Essa linha narrativa simples, da jornada da heroína, me permitia, enquanto os anos passavam, improvisar e inventar o que aconteceria no fundo do mar ou em Araraquara. Eu podia inventar ou decidir como seria a decupagem daquela sequência.
É muito difícil uma ideia que você teve há dez anos continuar representando quem você é.
Por se tratar de uma animação voltada para jovens e adultos, isso proporciona mais liberdade criativa para explorar a história e seus personagens, que são, no mínimo, excêntricos. Você poderia explicar um pouco sobre cada um desses personagens?
Os três personagens são bastante autobiográficos, embora isso não seja explícito. A história em si é profundamente autobiográfica. Sempre me interessei por acontecimentos reais e pela vida animal, buscando criar animações que redesenhassem e explorassem o funcionamento desses elementos. O aspecto bizarro e o absurdo sempre me cativaram, especialmente por se tratar de animação. O objetivo era conseguir misturar todos esses elementos. O filme foi animado em ordem cronológica, sem um roteiro prévio. Na primeira metade, há diálogos, mas, a partir da metade, eles diminuem, pois gravamos os diálogos antes da animação. Optei por dividir a animação com Rosaria e Fernando Miller, em vez de envolver 100 ou 200 pessoas; éramos apenas nós três, pessoas muito próximas.
Como os elementos autobiográficos foram explorados na narrativa?
Cada elemento do espaço físico da animação tem uma relação estreita com tudo o que aconteceu em minha vida. Nasci em Nilópolis, na Baixada Fluminense, e minha família é do interior de São Paulo. A Sérvia representa o momento em que viajamos a trabalho para os festivais. Por acaso, a Sérvia foi o lugar mais diferente que já conheci. As fossas abissais estão relacionadas a vários momentos da vida, representando o momento em que alcançamos a vida adulta e conseguimos trabalho.
O elemento mais literal, embora não faça parte diretamente da narrativa, é a casa no final do filme. Desde o início, quando esse velho personagem, do qual não sabemos a identidade, aparece, todas as partes daquela casa existiram porque são efetivamente relacionadas à história do meu avô. Eu e muitos primos passamos cerca de 40 natais naquela casa. Essa é uma forma de preservarmos essas lembranças. Recentemente, meus tios e tias decidiram vender a casa, e quem comprou a derrubou. Não existe mais a casa da minha infância, e evito passar perto daquela rua. Cada vez que o avô passa por uma cozinha no filme, é um local onde tivemos uma vida inteira de memórias. Isso pode não ficar claro para quem assiste ao filme, mas, na prática, é a razão principal para escolher esse tema.
Antes do filme ser concluído, compartilhei-o com minha família no final do ano. Eles se emocionaram ao identificar muitas coisas que já não temos mais, especialmente relacionadas à memória do meu avô.
O que cada personagem traz de particularidade sua?
Na minha concepção, trata-se de um road movie com uma jovem, um velho e uma criança. A nuvem representa um pré-adolescente que está ingressando na puberdade. Até a voz de [Guilherme] Briggs é consideravelmente mais jovem, e há momentos em que a nuvem solta um raio, algo que ela não sabia que conseguia fazer, simbolizando a puberdade. Briggs, por sua vez, assume uma voz mais adulta, como a do Super-Homem. Ele é a voz do Super-Homem no Brasil, inclusive.
Quais foram as técnicas que você utilizou nesta animação?
O desenho a lápis no papel é uma forma bastante tradicional de animação, remetendo ao processo empregado nas décadas de 1930 e 40. Quando iniciei minha carreira na área, ainda predominava o uso de papel. No começo dos anos 2000, a computação gráfica ganhou destaque. As pessoas logo se acostumara com o hiper-realismo das texturas 3D, então rapidamente elas deixaram de se impressionar com isso. Atualmente, quase toda produção em 2D é digital. Quando posso trabalhar sem encomendas, opto pelo lápis e papel.
Trabalhar oito horas em um dia resulta em cerca de 30 desenhos finais, o que representa menos de 4 segundos. Foi um trabalho contínuo, de domingo a domingo, ao longo de seis anos, para produzir, com Rosaria Miller, esses 200 mil desenhos a grafite. Os desenhos em papel são escaneados e montados digitalmente. A ênfase está no uso do full animation.
Vivemos um momento próspero na animação brasileiro.
O Brasil vive atualmente o auge da animação. A animação brasileira completou 107 anos nesta semana, desde a primeira exibição pública em 1917 da primeira animação nacional, intitulada “O Kaiser”, uma charge animada sobre a Primeira Guerra. No entanto, o filme não existe mais, resta apenas um frame encontrado. Essa situação evidencia um problema de acervo e memória cultural.
Quando iniciei nos anos 90, o Brasil tinha menos de 30 longas de animação. Hoje, em 2024, são produzidos 40 longas nas cinco regiões, algo inédito. As técnicas abrangem 2D, 3D, 2D vetorial, animação de recorte e stop motion. No momento, há 80 séries brasileiras sendo exibidas. A progressão geométrica foi intensa.
A primeira faculdade de animação tem menos de 15 anos. É uma profissão relativamente recente, surgida por necessidade.
O que você acha que explica esse interesse crescente pela animação?
O festival Anima Mundi persistiu por quase 30 anos, com a primeira edição realizada em 1993. Naquele ano, as opções para assistir eram basicamente produções Disney nos cinemas e algo da Hanna Barbera, ou alguns desenhos japoneses na televisão. Com o Anima Mundi, todos os envolvidos perceberam que havia uma demanda por histórias que não fossem exclusivamente infantis, abordando tópicos de narrativas diferentes das comerciais, norte-americanas ou europeias.
O Anima Mundi prosperou alimentado por essa necessidade. Começamos a criar curtas por iniciativa própria devido à oportunidade de exibição oferecida pelo festival. O evento cresceu com filmes de animação, muitas vezes produzidos sem grandes recursos, que eram selecionados e premiados não apenas no Brasil, mas também em festivais internacionais.
Em 2004, nos organizamos como uma classe e fundamos a Associação Brasileira de Animação, buscando dialogar com o Ministério da Cultura para pleitear editais específicos voltados para projetos de animação. Nesse ano, os primeiros editais foram lançados. Toda essa trajetória viu um aumento no interesse das pessoas em apoiar e fomentar a animação.
A presença de espaços de exibição, como festivais, bem como cotas audiovisuais na televisão e no cinema, fazem toda a diferença. Além disso, é crucial a existência de mecanismos de fomento. O Fundo Setorial do Audiovisual, alimentado pelo Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional), uma taxa paga por quem lucra com o audiovisual, é direcionado para o setor no Brasil. Países com economias fortes geralmente possuem setores audiovisuais bem desenvolvidos. No Canadá, por exemplo, 60% da produção audiovisual televisiva e cinematográfica deve ser de origem canadense. Na prática, isso contribui para aprimorar a qualidade da produção local.
O filme teve uma das estreias na Mostra de Cinema de Tiradentes. Como foi participar deste festival?
Tiradentes sempre foi uma referência espetacular como local de exibição, caracterizada por uma curadoria bastante interessante. Até então, eu havia participado apenas de mostras infantis em anos anteriores, e fiquei extremamente surpreso e feliz por integrar essa nova mostra, a Deslumbramento. Foi uma honra imensa poder participar.
Como o avanço da IA tem impactado o meio, para o bem e para o mal?
A cada semana, no caso específico de quem desenha e anima, a situação se altera significativamente, tanto em termos de qualidade dos resultados quanto na forma de aproveitar a tecnologia. Algumas pessoas conseguem usar a inteligência artificial para substituir tarefas braçais e sistemáticas, enquanto outras a utilizam de maneira criativa e inovadora.
No entanto, nota-se que tudo o que é produzido pela IA tende a ser muito semelhante e facilmente identificável como artificial. Por exemplo, ao representar um personagem assustado, é possível desenhar a primeira posição com os olhos fechados e a última com a cabeça esticada, olhos arregalados e língua para fora, solicitando à máquina que realize a interpolação. No entanto, para quem entende do assunto, para quem desenha, essa solução parece ser sempre a mesma. No momento, para quem é habilidoso na animação, a IA não é útil, pois não se mostra eficaz para tarefas mais complexas.
O problema principal é que o sistema se alimenta de imagens e animações, utilizando arquivos visuais de pessoas reais. Em algumas ocasiões, percebemos que o sistema copiou o trabalho de alguém, sem que essa pessoa tenha recebido reconhecimento ou autorizado essa reprodução.
Recentemente, soubemos os indicados ao Oscar 2024, não poderia deixar de perguntar a sua opinião sobre os filmes de animação.
É um prêmio da indústria americana. Quando “O Menino e o Mundo” foi lançado no Brasil, havia a possibilidade de ser indicado como filme estrangeiro, mas isso não ocorreu. No ano seguinte, recebeu uma indicação na categoria de animação, o que foi uma grande surpresa, pois estava competindo com produções de orçamentos mais elevados. Acredito que o primeiro Oscar para o Brasil será conquistado por um curta de animação.
Neste ano, saiu a lista dos indicados, e entre os cinco curtas, há um que não é brasileiro, o “Ninety-Five Senses”, mas conta com Daniel Bruson, de Sorocaba, como animador principal. Metade do filme é animada por ele, utilizando a técnica da aquarela. Apesar da nacionalidade não ser brasileira, o filme é daqueles que o realizaram.
Marcelo Marão
Brasil, 2023.
75 min.