Crítica: Oscar importa pouco perto do que “Ainda Estou Aqui” pode oferecer como legado
Longa de Walter Salles oferece retrato fiel do que foi a ditadura militar – não por meio de violência explícita, mas pela representação íntima de seu impacto

Nenhum brasileiro poderia prever o impacto que o filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, causaria no cenário cinematográfico. Parte dessa surpresa deve-se à sua divulgação discreta antes da estreia no Festival de Veneza, em setembro passado. No entanto, bastou a primeira exibição para para que as repercussões internacionais fossem imediatas: na première mundial em Veneza o longa foi aplaudido por 10 minutos pela plateia presente.
O roteiro, adaptado do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva (interpretado por Antonio Saboia), e a atuação magistral de Fernanda Torres, no papel de Eunice Paiva, ganharam destaque internacional. Eunice é a matriarca que, após a prisão e o desaparecimento de seu marido, o ex-deputado federal Rubens Paiva (Selton Mello), sob o regime militar, enfrenta a dura tarefa de cuidar sozinha de seus cinco filhos em meio à incerteza, ao medo constante e à luta por respostas.
Embora o burburinho em torno do longa tenham gerado expectativa e estatuetas (Melhor Roteiro no Festival de Veneza, Melhor Atriz Internacional para Fernanda Torres no Critics Choice Association e Melhor Atriz no Globo de Ouro) , talvez ainda não tenham feito jus à grandiosidade do filme, que desponta como uma das produções brasileiras mais marcantes desde “Central do Brasil” (1998), também assinado por Salles. A direção primorosa e o elenco impecável são os pilares que sustentam esta obra-prima. No entanto, o impacto vai além do técnico: a narrativa oferece uma catarse ao público brasileiro, ao revisitar o passado sombrio dos anos de chumbo da ditadura militar. O filme retrata as nuances desse período como ele realmente foi – uma era de barbárie e violência institucionalizada –, reforçando a necessidade de nunca permitir que tais atrocidades se repitam.

O momento do lançamento não poderia ser mais pertinente. A obra concede uma forma de dignidade às famílias que perderam entes queridos ou que jamais descobriram seus destinos. Poucas coisas no mundo são tão devastadoras quanto a ausência de respostas. Viver sob a sombra da perda, da raiva e da sensação de injustiça é como carregar uma nuvem pesada e permanente. Mesmo assim, Eunice Paiva transformou esse sofrimento em força. Sua luta contra as arbitrariedades do regime militar e sua defesa dos direitos humanos fizeram dela um símbolo de resistência e resiliência. O filme é, em última instância, uma ode à essa mulher extraordinária.
A abordagem dos anos de chumbo em “Ainda Estou Aqui” se dá, na maior parte do tempo, de forma indireta. Apesar da prisão de Eunice, grande parte da narrativa se desenrola no ambiente doméstico. O longa explora como a família Paiva tenta reorganizar sua vida na ausência do pai. A dinâmica familiar muda radicalmente: os sons do cotidiano cedem lugar a um silêncio opressor, e a casa, que antes era um lar acolhedor, torna-se um espaço sombrio e desolado. A residência assume um papel central na narrativa, funcionando quase como um personagem, refletindo o impacto emocional e físico das ausências que a marcam.

Ainda assim, o filme está longe de ser monótono. Ele nos conquista especialmente pela química autêntica daquela família retratada. É imprescindível reconhecer o mérito do elenco, que transmite uma convicção impressionante de que, de fato, pertencem ao mesmo núcleo familiar, e não apenas a um grupo de atores desempenhando papéis. Há um cuidado evidente na construção das cenas – como a simples imagem de uma mesa de café da manhã desorganizada –, que torna o ambiente familiar e permite que muitos brasileiros se enxerguem na tela. É verdade que há um recorte de classe evidente, que não deve ser ignorado, mas, mesmo assim, o cenário é de fácil identificação, sobretudo por não reproduzir o estereótipo de uma família estrangeira, como a estadunidense, em um contexto brasileiro.
É impossível falar sobre “Ainda Estou Aqui” sem destacar Fernanda Torres, o grande alicerce do filme. Sua atuação oferece uma faceta pouco vista em sua carreira, marcada por personagens cômicos que conquistaram grande popularidade. Aqui, no entanto, Torres entrega uma performance brilhante, que certamente a coloca como um dos grandes destaques nas principais premiações internacionais, incluindo o Oscar. Sua presença em cena é arrebatadora.

Ainda que o Brasil não conquiste a estatueta do Oscar, o valor do filme transcende premiações. “Ainda Estou Aqui” tem o potencial de se consolidar como uma obra essencial no repertório cultural e educacional do país. É provável que ela seja utilizada em escolas daqui para frente, oferecendo um retrato fiel do que foi a ditadura militar – não por meio de violência explícita, mas pela representação íntima de seu impacto. Demonstrando ainda como o trauma e o sofrimento se perpetuam quando o Estado falha em oferecer respostas e justiça à altura das perdas sofridas.