Documentário retrata a luta de uma mulher trans pela inclusão na igreja
Em "Toda Noite Estarei Lá", as diretoras Suellen Vaconcelos e Tati Franklin acompanham a jornada da ativista Mel Rosário, expulsa da igreja por ser trans
O documentário “Toda Noite Estarei Lá”, dirigido por Suellen Vaconcelos e Tati Franklin, surgiu de um poderoso encontro. O filme, que estreou nos cinemas brasileiros na semana passada, narra a jornada de Mel Rosário, uma mulher trans que luta pelo direito de ir e vir.
A síntese do filme é que a relação de pessoas LGBTQIAPN+ com a igreja nunca foi simples. Mel é prova disso. Residente de Vitória, desde jovem ela nutre uma fé profunda. Nos últimos dez anos, enfrentou uma provação difícil que muitos fiéis jamais experimentaram: a luta para frequentar a igreja.
Tudo começou quando Mel foi convidada por uma senhora a comparecer a um culto em uma igreja neopentecostal próxima de sua casa. “Me garantiram que eu não seria discriminada, mas quando cheguei lá, tentaram me submeter a uma terapia de conversão”, relata a ativista. “Quando isso não funcionou, o pastor passou a exigir que eu cortasse o cabelo para continuar frequentando a igreja.”
As preces em busca de uma mudança foram em vão. Não havia nada de errado com Mel, como ela mesma defendia. Os pastores esperavam que a religião mudasse sua essência. Insatisfeitos e incomodados com sua presença, passaram a proibi-la de participar dos cultos, a menos que agisse e se vestisse como um homem, algo que ela nunca foi.
Apesar das negativas, Mel permaneceu firme em seu propósito de frequentar aquela igreja. Noite após noite, era impedida de cruzar a porta com os outros devotos. Decidiu então recorrer à Justiça em busca do reconhecimento daquele direito básico. Não foi uma vitória fácil; seu direito chegou a ser negado antes de ser finalmente reconhecido. Ela pôde voltar, mas o pesadelo não acabou: novamente, teve o acesso barrado. Decidiu protestar contra a injustiça que estava sofrendo. Nas noites de culto, pintava cartazes com frases que lembravam aos religiosos que suas ações iam contra a própria doutrina.
As diretoras Suellen e Tati souberam da história de Mel por meio de Thiago Moulin, um amigo cineasta que já havia feito um curta-metragem sobre a batalha dela. Convencidas da importância de acompanhar de perto e explorar a complexidade desse caso, foram conhecer Mel e logo se encantaram com sua personalidade vibrante e seu jeito amável. Passaram a acompanhá-la durante os protestos noturnos, uma tarefa que se estendeu por dois anos.
Inicialmente, o material audiovisual tem um aspecto quase experimental. Acompanhamos os movimentos da câmera e as tentativas de posicioná-la corretamente em situações desafiadoras, como quando Mel se encontra com seu advogado e discutem a possibilidade de filmar aquela sessão.
Com o tempo, o filme se aprofunda e revela novas camadas para além do sofrimento de Mel. “Percebemos que era necessário incluir outro aspecto, mostrando Mel, uma mulher transexual, recebendo afeto e amor. Essa mudança sutil ocorre no meio do filme. Queríamos mostrar também o lado amoroso e feliz dela”, revela Suellen.
Uma das maneiras pelas quais o filme explora esse aspecto afetuoso é por meio da relação de Mel com sua mãe. Apesar de também ser religiosa – ela é Testemunha de Jeová –, isso não diminui o carinho entre elas. Esse é um dos aspectos mais especiais da trama: o contraste entre o que acontece na porta da igreja e o amor cultivado em casa. Enquanto luta judicialmente, Mel também se empenha em uma missão paralela: comprar uma caminhonete para fazer serviços de frete e, mais importante ainda, poder levar sua mãe para passear.
O documentário tem recebido reconhecimento em festivais por todo o país. No Olhar de Cinema 2023, o filme ganhou os prêmios de Melhor Direção e Melhor Atuação, enquanto no 17º For Rainbow foi premiado como Melhor Atriz, Melhor Trilha Sonora e Melhor Direção de Arte. Mel não é uma atriz, mas sua autenticidade, presença e magnetismo chamaram a atenção dos jurados, e ela acabou vencendo até mesmo na categoria de Melhor Atriz.
Apesar do sofrimento e da rejeição da igreja, a espiritualidade de Mel permanece forte. Como ela mesma afirma: “Hoje eu continuo firme em minha fé.”
Brasi. 72’, doc, 2023.