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Se há a Febre da Mata, o termômetro é o corpo

“Itsuni Ügüno / A Febre da Mata", filme do renomado cineasta indígena Takumã Kuikuro, está presente na 12ª Mostra EcoFalante

Por João Victor Guimarães
Atualizado em 2 jun 2023, 10h58 - Publicado em 2 jun 2023, 10h57

A décima segunda edição da Mostra Ecofalante de Cinema está farta de filmes que abordam a relação entre raças, vida e sociedade. O maior evento latino-americano de audiovisual dedicado à temática socioambiental terá 101 filmes na sua programação. Entre os dias 1 e 14 de junho, com entrada gratuita, ocupará 25 salas da cidade de São Paulo. Entre as obras apresentadas estão filmes premiados em Cannes, Berlim, Cinéma du Réel. Há pré-estreias mundiais e nacionais. Repito: cento e um filmes. Entre eles há um com valiosos dez minutos: Itsuni Ügüno ou A Febre da Mata, do experiente diretor Takumã Kuikuro.

curta-metragem Itsuni Ügüno ou A Febre da Mata, do diretor Takumã Kuikuro
(Takumã Kuikuro/reprodução)

O filme estreou mundialmente no Rome International Film Fest, em outubro do ano passado, e tem rodado festivais nacionais e internacionais. Esteve inclusive no 1º Festival de Cinema e Cultura Indígena, no Cine Brasília (FeCCI). Em março deste ano, a Bidou Pictures Brasil e parte da O2 Filmes, a produtora audiovisual em situação mais vantajosa do Brasil, anunciaram A Febre da Mata na première do filme Interactions – When Cinema Looks to Nature. Algo nesses fatos nos leva a pensar que o filme teve uma relevância perceptível e reconhecida antes mesmo dele chegar às telas. E, ao assisti-lo, percebemos o que nele está sem que precise ser dito.

Itsuni Ügüno ou A Febre da Mata nos mostra aquilo que parece ser uma denúncia. No entanto, logo no início percebemos sua intenção de localizar e assentar. Vemos imagens de uma região tomada por uma áurea encantada e encantadora. É possível imaginar se tratar de uma animação, tamanha a possível distância que sentimos da beleza apresentada nesse ambiente que parece ser incabível ao atual mundo. Há essa surpresa nos seus primeiros minutos. Relembrando-o podemos até pensar seu início como sendo o contraponto ao terceiro ato. Entre os dois, o filme parece nos proporcionar a possibilidade de sonhar antes de “riscarmos o fósforo” que nos levará a queimar no pesadelo. Mais do que um aviso, é uma chance que nos é dada pelo filme.

diretor Takumã Kuikuro
(Takumã Kuikuro/divulgação)

E uso a palavra chance porque creio não ser à toa a escolha da aura encantadora do início do filme. Aura essa que, aliás, perdura em todo ele e só reafirma, pelo ritmo, sonoplastia e ausência de diálogos, o seu tom onírico. Mesmo alarmante, cauteloso e até mesmo, ouso resumir, esperançoso. Ao que tudo indica, a satisfação diante da tragédia não é um traço comum aos povos nativos. Nem no sentido de cruzar os braços, nem no sentido de obtenção de gozo ao atestá-la. Essa é uma diferenciação profunda com a concepção eurocêntrica, cristã e ocidental que por sua vez herda e engendra a ideia resultante de um conjunto de lendas resumidas na seguinte máxima: “o inferno é aqui”. Não, não é e nem deve ser! Por isso podemos, devemos e vamos agir! É a essência do recado do Itsuni Ügüno ou A Febre da Mata

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E devemos agir com o corpo, com a sabedoria da sensibilidade, munidos e munidas de uma lógica contrária àquela que instaura o caos, o semeia e o prega. Precisamos escutar as onças, pedir licença às águas e às terras, pedir aos ventos e espíritos que nos ouçam e fazermo-nos ouvir com o próprio corpo. O gozado é que eu sei: tudo isso parece “misticismo”. Os mais retrógrados confiantes na obsoleta noção de neutralidade científica enquadrarão tais ideias na categoria de “animalismo”. Hoje podemos conversar e avançar sobre as produções de efeito. Se há símbolos e ritos preservados, há uma linguagem comum. Se há uma linguagem comum preservada, há um modo de ver o mundo. Se há um modo de ver o mundo preservado, há uma linguagem. E esse ciclo fortalecido preserva a manutenção da vida.

curta-metragem Itsuni Ügüno ou A Febre da Mata, do diretor Takumã Kuikuro
(Takumã Kuikuro/reprodução)

De forma ilustrativa e direta, vale ressaltar o trabalho das Nações Unidas para/com povos originários cujos línguas (e os próprios) estão ameaçadas de extinção. Não raro, são enviadas equipes que catalogam as línguas, “decifram”, voltam para seus grandes centros e, sem capacidade de agir, preservam os registros mas deixam seus falantes morrer. Quer dizer, o modelo de sociedade que cultiva o fascínio pela linguagem da escrita, acaba por se preocupar e agir mais sobre o que há no papel do que sobre aquilo que há na realidade. Ou numa realidade distante da sua. Quero dizer, uma cultura que valoriza somente determinadas formas de agir, pensar, existir, desvaloriza uma série de outras cosmo-percepções. Assim, despreza inúmeras outras formas de vida. A sociedade ocidental não está preparada para lidar com a própria ignorância e com ela condena os povos originários/nativos. Me parece ser essa a ação mais profunda do filme que nos faz questionar como aquele homem entende o que diz a onça. No fundo devemos descobrir: estamos punindo aqueles que não entendemos e também por isso estamos nos afundando (ou queimando) no pesadelo sem fim construído pela nossa própria ignorância.

São dez minutos apenas. O roteiro e edição do filme são assinados por Takumã Kuikuro e Nathalia Scarton, respectivamente o diretor e a produtora. Tudo assertivo a ponto de dispensar verborragia. O recado está dado a quem quiser ver, mas está se disseminando mesmo entre quem quiser abrir as cortinas da percepção, da vida. É o que explicitamente o terceiro ato do filme nos mostra: há o que fazer para realizar um sonho e preservar a vida. A começar pela valorização da linguagem dos que sonham acordados e contatam outros mundos através das suas vidas.

Cartaz do curta-metragem Itsuni Ügüno ou A Febre da Mata, do diretor Takumã Kuikuro
(Takumã Kuikuro/divulgação)
A Febre da Mata

Direção: Takumã Kuikuro
Brasil – 10 min – 2022

12ª Mostra Ecofalante de Cinema
São Paulo – 1 a 14 de junho

Sessões:
6/6 – 17:00
Espaço Itaú de Cinema – Augusta, Sala 4

8/6 – 16:00
Circuito Spcine Olido

10/6 – 17:00
CCSP – Sala Lima Barreto

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