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Filme “Saudosa Maloca” fortalece relação de Adoniran Barbosa com São Paulo

O longa, que estreia em 21 de março, costura os personagens, sentimentos e versos do sambista paulistano

Por Beatriz Lourenço
Atualizado em 21 mar 2024, 15h13 - Publicado em 19 mar 2024, 09h00
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 (Saudo Maloca (2024)/reprodução)
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O sambista Adoniran Barbosa era um grande contador de causos. Da mesa do bar, ele desenvolvia narrativas bem humoradas e um tanto trágicas sobre personagens essencialmente brasileiros. A mais conhecida envolve os amigos Mato Grosso e Joca, que moravam em um palacete abandonado quando foram despejados para dar lugar a um edifício alto. 

Apesar de parecer simples, a canção “Saudosa Maloca”, de 1951, é um retrato da especulação imobiliária que atinge os bairros da capital paulista de forma voraz. Foi analisando a complexidade da composição, inclusive, que o diretor Pedro Serrano criou o roteiro do filme homônimo, que chega aos cinemas em 21 de março. “As conversas com quem viveu no bar com o Adoniran, com o sobrinho, com o produtor dele rendem histórias que não estão em livro nenhum. E isso ajuda na formação do personagem e de seu caráter. Visitamos um acervo que estava fechado há mais de 20 anos. Lá tivemos acesso a fotos, textos que ele fazia para a rádio, roteiros de cinema, manuscritos e até letras que nunca foram publicadas”, relembra o cineasta. 

Na trama, Adoniran (protagonizado por Paulo Miklos), já do alto de seus 72 anos, conta ao garçom de um boteco tradicional a vida em uma cidade que não existe mais, sempre lembrando com carinho dos parceiros, ambos apaixonados por Iracema. Com a ajuda do samba, o trio sobrevive à pobreza e à fome, mas têm seu modo de vida ameaçado quando o bairro do Bixiga começa a passar por transformações, um sinal de que, se não arrumarem trabalho, podem ser engolidos pelo “pogréssio”. O elenco conta ainda com Gero Camilo, Gustavo Machado, Leilah Moreno, entre outros atores.

Não há muitas locações além do bar onde Adoniran encontra com seus amigos e a maloca, casa onde os três moram juntos. Certamente, essa última chama atenção por ser uma espécie de relíquia em São Paulo – é a Vila Itororó, um antigo vilarejo localizado no bairro Bela Vista que hoje funciona como centro cultural. A composição do cenário, a vestimenta e o modo de falar dos personagens trazem, ao espectador, a sensação de nostalgia. Se deixar, a imaginação é levada a criar cenários de época com nossos próprios pais e avós. Será que um dia eles já cruzaram com o cantor pela rua?

“Nós usamos alguns dos objetos pessoais dele no filme. Tínhamos um chapéu, uma gravatinha, os óculos e uma série de artesanatos que ele fazia, mas tive muita liberdade para criar esse Adoniran sem imitar os maneirismos, o gestual e mesmo a voz, que é muito característica”, adianta Miklos. O músico define a experiência do filme como um processo gostoso e desafiador ao mesmo tempo: “Já era fã do Adoniran desde adolescente. A oportunidade de fazer esse personagem e cantar as canções na roda de samba, tudo em cena, é muito rico. A obra do Adoniran é tão fabulosa e fantástica porque traz essa empatia pelo povo. Os personagens que ele cria e os dramas são incríveis.”

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Cena do filme “Saudosa Maloca” (Saudo Maloca (2024)/reprodução)

O longa é livremente baseado na obra de Adoniran e não tem a intenção de ser uma biografia. Pelo contrário, ele dá vida aos versos do músico ao mesmo tempo em que o inclui neste ambiente fictício. Isso porque Serrano já havia lançado o documentário Adoniran, Meu Nome é João Rubinato, que abriu o festival de cinema É Tudo Verdade, em 2018. Bravo! conversou com Pedro Serrano e com Paulo Miklos sobre o processo de criação do filme, o legado das obras de Adoniran e muito mais. Confira o papo completo:

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Paulo Miklos, como Adoniran Barbosa no filme “Saudosa Maloca” (Saudo Maloca (2024)/divulgação)

Como foi o processo de pesquisa para criar o filme?
Pedro Serrano: Comecei fazendo um documentário e, por um bom tempo, ele virou o projeto principal da minha vida. No processo de pesquisa e de entrevista, encontrei muita coisa que não teria acesso de outra forma. As conversas com quem viveu no bar com o Adoniran, com o sobrinho, com o produtor dele rendem histórias que não estão em livro nenhum. E isso ajuda na formação do personagem e de seu caráter. 

Durante esse processo visitamos um acervo que estava fechado há mais de 20 anos porque a família não tinha onde deixá-lo de forma estruturada. Ele tinha sido arquivado em caixas num sítio de um amigo da família. Lá tivemos acesso a fotos, textos que ele fazia para a rádio, roteiros de cinema, manuscritos e até letras que nunca foram publicadas. Foram meses me debruçando nesse material – e espirrando, confesso. 

Paulo Miklos: Nós usamos alguns dos objetos pessoais dele no filme. Fiquei cheio de dedos para poder lidar com esses itens porque são históricos. Nós tínhamos um chapéu, uma gravatinha, os óculos e uma série de artesanatos que ele fazia. Antes de “Saudosa Maloca” nem sabia que o hobby dele era esse.

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Cena do filme “Saudosa Maloca” (Saudo Maloca (2024)/reprodução)
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Vocês gravaram o filme na Vila Itororó, no Bixiga. Duas quadras acima, um casarão histórico caiu recentemente por falta de preservação. Como vocês refletem a necessidade de preservar nossa memória musical, arquitetônica e cinematográfica?
Pedro Serrano: Isso envolve políticas públicas e uma dinâmica de sociedade que não é tão simples, mas que é possível. Todas as vezes que um espaço de convívio, como um comércio e um casarão, é trocado por um muro ou uma grade, as coisas se tornam mais frias, menos humanas. Esse é um processo natural e voraz em São Paulo. A gente sente que a cidade vai perdendo a humanidade junto com seus lugares de afeto. E é curioso como essa modernização não serve para resolver um problema de moradia tão latente. As autoridades poderiam preservar muitos edifícios históricos e ocupá-los com pessoas que precisam – mas o capital vem e o mercado não preserva, derruba tudo. 

Paulo Miklos: O interessante é que as pessoas assistem ao filme e se sentem inclinadas a cuidar do patrimônio porque o Adoniran questiona justamente isso. Ele tem uma ligação afetiva com essa São Paulo e com sua história.

Vocês acreditam que dá pra conciliar o avanço com o afeto?
Pedro Serrano: Não sou especialista, mas sei que há cidades pelo mundo que conseguem ter uma política urbana que faz isso. Uma das mazelas que a gente vive no Brasil é que a força do privado, das construtoras, acaba sempre se impondo sobre essas zonas de interesse público. A gente tem mil exemplos de parques para serem construídos mas que acabam sendo deixados de lado. 

Paulo Miklos: Eu estive em Munique e lá tem um córrego onde as pessoas param para beber água. Para um paulistano, isso é uma coisa completamente surreal. No entanto, a valorização daquele espaço é uma questão cultural. Aquele lugar é sagrado. Ninguém vai poluir aquilo, levantar uma ponte ou passar com um viaduto por cima.

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Cartazes do filme “Saudosa Maloca” (Saudosa Maloca (2024)/divulgação)

As músicas de Adoniran falam de bairros paulistanos como a Sé, Avenida São João, Jaçanã… Vocês passaram a ver a cidade de uma maneira diferente após o filme?
Pedro Serrano: Depois você tem contato com a obra e se aprofunda um pouco, muda sim sua percepção. Principalmente sobre a região central. Eu passei a olhar várias coisas de forma diferente. A própria Praça da Sé, que ele canta no “Samba Bonito”. Imagino aquele lugar quase como uma praça de interior, que era na época dele, onde as pessoas se encontravam. Se estou num ponto que ele cantou, imagino como era o cenário na época dele.

Paulo Miklos: Passei a me dar conta de que os nossos espaços de história pessoal também já sofreram a mesma degradação e um processo de apagamento, assim como o Adoniran cantava. Isso faz a gente pensar de vez em quando: puxa, era aqui que eu cresci e agora está tudo diferente. 

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Cena do filme “Saudosa Maloca” (Saudo Maloca (2024)/reprodução)

Um músico interpretando outro músico: quais foram os aprendizados que Adoniran deixou a você?
Paulo Miklos: Esse processo foi muito gostoso e um desafio, ao mesmo tempo. Cantar em cena é um grande desafio – e é um barato também. Eu já era fã do Adoniran desde adolescente. A oportunidade de fazer esse personagem e cantar as canções na roda de samba, tudo em cena, é muito rico. A obra do Adoniran é tão fabulosa e fantástica porque traz essa empatia pelo povo. Os personagens que ele cria e os dramas são incríveis. Sempre tem uma tragédia envolvida e ele aborda isso com muito bom humor e com saídas meio estonteantes, inesperadas. É isso que faz com que a gente se aproxime desses personagens com empatia e paixão.

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Cena do filme “Saudosa Maloca” (Saudo Maloca (2024)/reprodução)

O Adoniran é uma pessoa que tinha gestos, vestimenta e jeito de se portar muito específicos. Como foi a preparação para criar esse Adoniran do filme?
Paulo Miklos: Tive muita liberdade para criar esse Adoniran sem imitar os maneirismos, o gestual e mesmo a voz, que é muito característica. Foi o contrário, buscamos uma coisa natural para deixar que o personagem viesse com a maquiagem, o figurino e as locações. O que contribuiu para essa construção foi entender as emoções dele. Esse é um personagem que se envolve demais com os colegas de Maloca, com as situações dos outros e com o próprio desejo de cantar samba. 

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Cena do filme “Saudosa Maloca” (Saudo Maloca (2024)/reprodução)

Qual é a memória afetiva que vocês têm com São Paulo?
Paulo Miklos: Eu cresci na Avenida São João. Próximo a Praça Marechal Deodoro. E me lembro da comemoração da Copa de 1970. E isso foi antes do Minhocão, era uma avenidona e as pessoas passavam buzinando e fazendo aquela festa. Acho que eu tinha 11 anos, mais ou menos, e morava no quarto andar. Logo depois, construíram o Minhocão no nosso nariz. Lembro daquela festa acontecendo, eu na calçada vendo tudo e, meses depois, a construção do Minhocão. Nos mudamos pouco tempo depois porque não tinha como ficar com pneu passando na nossa janela.

Pedro Serrano: Vou ser menos saudosista e falar uma bem recente. No auge da minha juventude ia muito na Mercearia São Pedro, que era conhecido como o bar dos escritores. Conheci muitas pessoas, vivi noitadas e passei coisas muito legais por ali. Agora o lugar fechou e, quando passo na frente até evito olhar de tão triste que é ver as portas fechadas. A sua cidade vai deixando esses defuntos na sua cara, né?!

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Cartaz oficial do filme “Saudosa Maloca”, baseado na obra de Adoniran Barbosa (Saudosa Maloca (2024)/divulgação)
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