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OLÁ,

O trabalho de uma vida: Jesuíta Barbosa encontra seu próprio Ney Matogrosso

O ator fala à Bravo! sobre sua entrega para representar um dos maiores artistas vivos da MPB em "Homem com H"

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 23 Maio 2025, 14h41 - Publicado em 20 Maio 2025, 07h00
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Jesuíta Barbosa interpreta Ney Matogrosso em "Homem com H" (Marina Vancini/divulgação)
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Para um ator, um dos maiores desafios da carreira é interpretar outro artista, celebrado e amado como um verdadeiro herói. Uma tarefa que, se mal executada, pode comprometer todos os sonhos de seu futuro. Quando Jesuíta Barbosa foi anunciado no papel de Ney Matogrosso — um dos maiores intérpretes do país — na cinebiografia Homem com H, ele compreendeu o peso dessa responsabilidade. Talvez, se o convite tivesse vindo um pouco antes, ele ainda não estivesse com as emoções suficientemente amadurecidas para dar corpo ao maior personagem de sua trajetória.

Aquela velha frase parece fazer todo sentido: tudo acontece no tempo certo. O longa, dirigido por Esmir Filho, estreou no início de maio e já acumula uma série de elogios do público e da crítica especializada. Uma verdadeira honraria, especialmente num momento em que a audiência tem demonstrado certo cansaço com novas cinebiografias, e ainda mais arriscado quando o artista retratado está vivo e segue ativo em seu ofício.

Para quem acompanha o trabalho de Jesuíta, seja no cinema ou na televisão, é evidente sua trajetória de amadurecimento, que culmina em Homem com H. Trata-se de um ator que alcançou um grau avançado de percepção sobre si, enquanto pessoa e intérprete, facetas que frequentemente se confundem. Ele conhece seus maneirismos, seus limites, e o ponto de partida para construir um novo personagem, seja por meio da entrega física ou da disponibilidade emocional. Jesuíta entrega uma das maiores performances deste ano, até agora. E, sem dúvida, a mais importante de sua carreira.

A Bravo! conversou com o ator numa noite de sábado. Naquele momento, as coisas já estavam mais calmas. A emoção da estreia havia se assentado, permitindo que ele respirasse com mais tranquilidade.

Agora, enquanto colhe os frutos do sucesso do filme, Jesuíta divide seu tempo com os ensaios do novo espetáculo da Companhia Brasileira, dirigida por Marcio Abreu, com estreia prevista para junho. Apesar da data próxima, ainda é cedo para revelar detalhes sobre a montagem.

Você conseguiu aproveitar essas semanas de estreia? Como está sentindo a recepção do filme?

Eu estou feliz com o filme, Humberto. Tenho tido uma recepção boa das pessoas, estão curtindo o filme. Fiquei feliz desde a segunda vez que vi. A primeira ainda foi um pouco trôpega, fiquei preocupado com o que era aquilo, com o resultado. Depois, na segunda vez, eu comecei a curtir.

Mas quando foi a primeira vez que você viu? E o que sentiu? Teve algum estranhamento nessa primeira exibição?

Acho que sim. Na primeira vez a gente fica muito atento à própria imagem. Fiquei olhando demais pra mim, me julgando muito. E ainda foi um dia meio complicado: o Ney do meu lado, eu estava com insolação… tudo caminhava para não ser um bom dia. 

Mas ao mesmo tempo acho isso interessante, porque o filme pode – e deve – ser visto mais de uma vez. Dessa vez me tocou, me provocou em pontos muito íntimos, muito meus. Para construção dessa personagem. Então tudo bem ter acontecido esse estranhamento. Acho que não foi por acaso.

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Você sente que amadureceu como ator, como pessoa, depois dessa experiência?

Sem dúvida. Me sinto mais fiel a mim mesmo. Acho que a cada personagem a gente cresce. Alguns têm a possibilidade de quase nos destruir. Como uma bomba endereçada que pode fazer mal. Mas nesse ofício de ator, acho que tenho aprendido a lidar melhor com os processos de construção, de modo que não me façam mal.Às vezes eu caía nessa vala de não perceber o quanto algo podia estar me fazendo mal – ao corpo, à mente. Quando a gente passa dos limites… Estou dividindo isso porque acho importante falar sobre. A gente faz isso na vida também. Não percebe o quanto uma coisa nos afeta, não consegue ponderar. E hoje acho essencial perceber a realidade em que se está. E olhar para o real parece cada vez mais difícil.

E isso acontecia com as personagens?

Totalmente. Acontecia também na construção das personagens. Eu me envolvia de um jeito muito abrangente, quase sem técnica, muito intuitivo. Depois aprendi que não precisava ser só assim. Nesse trabalho, já entrei sabendo que ia construir uma persona, alguém que ia aparecer ali na tela.

No início do meu trabalho com o cinema — não falo nem do teatro, mas do cinema principalmente — eu me distendia de um jeito que me fazia sofrer. E acho que a gente não precisa ficar nesse sofrimento. Tem que entender como aquilo acontece e sair dele o mais rápido possível.

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Ney Matogrosso no palco (1975) (Thereza Eugênia/divulgação)

O Esmir comentou que, no início, pediu para que você não chegasse querendo imitar o Ney, que a construção fosse surgindo aos poucos, com o tempo. Essa proposta de entrega ao processo te ajudou a estabelecer esses limites?

Muito. Funcionou muito bem, assim. Esse pedido inicial dele foi muito importante. Acho que os bons diretores com quem trabalhei sempre tiveram essa noção desde o começo. De não chegar já com um desenho pronto do que vai ser a coisa.

Mesmo que exista esse protótipo, eu acho que ele ainda precisa de densidade. E esse pedido para que a gente esteja literalmente disponível já é muita coisa. Aí vem uma simplificação — que não é nada simplória — mas é começar pelo simples. Pela frequência que você está no dia, pelo que você está sentindo naquele momento. E a partir disso, ir ganhando densidade.

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O pedido do Esmir era sempre esse: que a gente não chegasse querendo imitar. E acho que a gente não fez um jogo de imitação. A gente conseguiu ter um processo de entendimento, de escuta, que foi muito importante.

Isso é impressionante, porque você tá muito parecido com o Ney. Fisicamente mesmo, na gestualidade.

Eu estava vendo um vídeo do Cris Duarte, que fez a preparação de corpo nas cenas de show. Cara, era muito diferente! Eu vi esse vídeo que ele postou e, ali, eu não sabia fazer. Não sabia me movimentar. Não tava nada parecido.

É interessante porque mostra que é um trabalho mesmo, de construção. A gente acha que já chega cheio de si, mas não é nada disso. É um processo lento.

E tem uma coisa que acho muito interessante, que são esses dois caminhos: o caminho que você faz com o diretor e o caminho que você faz sozinho pra construir o personagem. Por onde você começou?

Quando eu comecei…? Ai, não sei te responder exatamente… Acho que preciso começar a partir do momento em que fiquei sabendo que ia fazer esse trabalho. Porque antes disso, o Ney já existia. Esse tamanho que ele tem como artista… é uma grandiosidade. Uma dimensão que atravessa gerações.

E em mim já existia uma admiração muito grande. Pelo corpo dele, pelos movimentos, pela música, pela interpretação. Então, me entendendo hoje em dia como artista, acho que já havia em mim, a partir da admiração, um olhar interessado.

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Claro que isso é completamente diferente do processo criativo dentro de um trabalho. A gente não se vale só da liberação do olhar sobre o artista. Mas acho que começou desde a primeira vez que vi o Ney. Se eu pudesse dizer de um início, seria esse.

Agora, o processo de elaboração já começa junto com a direção. O Esmir estava nesse trabalho muito antes de eu chegar. Ele já estava junto do Ney, participando da escrita do roteiro. Quando eu entrei, não estava sozinho. Estava com o Esmir, com o Ney, entendendo como seria essa produção. Acho que no início de um trabalho de cinema a gente nunca tá sozinho. Já tem muita gente envolvida.

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Ney posa em sua casa, Rio de Janeiro. Foto: Daryan Dornelles, cortesia do artista (Daryan Dornelles/arquivo pessoal)

E como foi sua primeira conversa com o Ney? 

Ele me recebeu tão bem. Lembro de ficar olhando pra ele, admirando a maneira como ele sabe contar uma história. Acho que o bom intérprete é aquele que conta bem uma história. Como o Luiz Gonzaga, por exemplo. Gosto da música dele, mas admiro muito ele como contador de histórias.

O Ney é assim. Quando cheguei, ele começou a falar sobre o que queria contar, o que era importante pra ele. Inclusive, ele repetia histórias. Contava uma coisa num dia, no outro dia contava de novo, mas de outro jeito. Ele queria ser ouvido. E sabia o que estava dizendo.

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Então, eu passei muito tempo escutando o Ney. E devo ter começado pelas beiradas. Fazendo perguntas esporádicas. Mas o meu interesse estava ali, presente. Quando fui à casa dele, por exemplo, fiquei olhando as coisas, escutando ele, observando os movimentos. Olhando como aquele corpo existia dentro daquela casa, dentro das histórias que ele estava contando.

Acho que meu interesse era um entendimento energético mesmo. Isso foi o que mais me valeu no início. Eu queria entender a aura do Ney Matogrosso.

Você chegou a criar alguma rotina de visitas à casa do Ney durante o processo?

Não. Fui umas três vezes no máximo. A gente se encontrou, sim, mas não teve uma rotina fixa.

Teve alguma qualidade do Ney que te serviu de ponto de partida ou que te deu sustentação na construção do personagem?

Essa coisa da escuta. Dentro de toda a complexidade dele, o Ney consegue ser muito bem entendido porque ele sabe respirar e ouvir. Se alguém fala, o Ney se cala e escuta. Ele sabe o momento de dizer algo. Acho que essa noção do tempo, do silêncio, foi o que mais admirei nele no início. Existe uma sofisticação em alguém que gosta do silêncio. E hoje em dia, o silêncio está cada vez mais caro.

Falo do silêncio também pra falar sobre tudo o que ouvi dele. Todas as pausas do Ney me interessaram.

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Ney posa com figurino da turnê Ney Matogrosso, 1981 (Thereza Eugênia/divulgação)

Você se sente parecido com ele?

Não… Tem uma coisa muito importante, que é entender o tempo do Ney hoje. Mas ouvi ele dizer que, lá em 1976, ele não tinha essa frequência mais calma que tem agora. Ele era muito mais urgente.

Então eu sabia que a personagem que eu ia criar tinha uma onda diferente da do Ney de hoje, que é calmo, pacífico na fala. Sabia que ia construir um rapaz da minha idade. Quando ele começou com os Secos & Molhados, tinha 33. Eu também tinha 33 quando a gente filmou. Tô com essa idade até hoje. Então, eu sabia que ia construir alguém com uma urgência maior do que o Ney sentia ali.

Então… isso era bom, porque eu acho que se aproxima de mim também. Acho que sou um pouco mais… tenho uma braveza. Talvez o Ney também tenha, mas ele já conseguiu apaziguar isso. Eu ainda estou tateando, sabe?

Acho que só com mais maturidade, com mais alguns anos, vou conseguir tranquilizar essa braveza — transformar isso em bravura. Acho que o menino já conseguiu fazer isso. 

Mas pra você, qual é a diferença entre braveza e bravura?

Eu acho que a bravura é quando você tem o ímpeto, mas entende ele, processa, e transforma em alguma outra coisa — talvez mais interessante. A braveza, não. A braveza às vezes é só uma violência, uma agressão.

Acho que isso está mais próximo dessa juventude que pensa que entende uma coisa, mas não entende. E eu falo de mim agora, nesse instante. 

Da impulsividade?

É, da impulsividade. O Ney era muito assim, cara. Ele era impossível. Não engolia sapo. Estava sempre se autoafirmando, querendo entender isso.

Acho que era até uma forma de sobreviver. Ele precisou sair de casa porque o pai não o queria lá, foi morar sozinho em São Paulo, pobre, sem dinheiro… e gostava disso. Precisava ser bravo, se autoafirmar.

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(Facebook Ney Matogrosso/reprodução)

Dizem que ele era uma pessoa muito tímida, e ainda assim construiu logo no início uma persona feroz — quase o oposto do que se esperaria. O que você acha que explica essa figura tão intensa?

Ah, eu não quis criar uma distância entre o palco e a personalidade dele. Acho que o palco alimentava muito o Ney da vida particular, entre amigos, na família. Estava tudo ali dentro.

E aí eu falo de um corpo de personagem, isso é outra história. Não falo do Ney Silva, da vida dele. Mas essa coisa feroz que você descreveu, sempre existiu nessa persona que eu quis criar. E essa persona foi transformando a vida dele também. Foi nessa personagem que tentei me apoiar.

O seu olhar tem um peso muito forte na atuação. Embora você diga que não imitou, parece que boa parte da narrativa é conduzida por ele, pelo olho mesmo, pela expressão. Queria que você comentasse sobre essa construção física, do olhar ao corpo como um todo.

O cinema, essa linguagem, pede muito pelo olhar. Às vezes é tentativa, às vezes é provocação. Mas o olhar no cinema é muito poderoso.

O olhar do Ney — o Ney que conheci — tem uma calma, uma paz. Ele tem um olho amendoado, meio repuxado. É bom olhar para o Ney. Mas havia uma intensidade nesse olhar, uma dor misturada com fúria. Uma rebeldia interna.

E eu não sei como ele lidava com isso. Mas acho que isso sempre existiu nele, não só na forma física do olhar, mas subjetivamente. E tentei trazer isso. Acho que tenho um pouco disso em mim também. Algumas dores, alguns traumas muito parecidos com os dele. Minha relação com meu pai nunca foi muito boa. A gente conversava muito sobre isso. Essa coisa militar que temos em comum, esse desejo de melhorar essa relação. É algo que nos aproxima.

Vi num programa agora, ele falando do beijo que dá no pai dele. E esse beijo é muito bem filmado na cena que a gente faz em frente ao Estadão, em São Paulo. E eles não deixam de se beijar depois disso. O pai pede esse beijo. Então, acho que havia nele uma inteligência instintiva; algo de ensinar ao pai também.

Talvez ele tenha nascido com um instinto muito forte. E a partir da cultura familiar, foi entendendo que precisava dizer algo para o pai.

Muito do trabalho dele, os primeiros shows, por exemplo, pedem essa relação com o pai. Foi um lugar em que a gente se assimilou.

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Jesuita Barbosa como Ney Matogrosso (Azul Serra/divulgação)

Viver esse processo te fez repensar sua relação com seu pai?

Eu repenso minha relação com meu pai todos os dias. Ele existe em mim. Nos meus trejeitos, na minha voz, no tom da minha voz. Meu pai habita o meu ser. É meu pai biologicamente. É uma pessoa que encontrei muito na infância. Tenho vontade de encontrá-lo. Encontro quando posso, quando vou a Fortaleza.

E quis trazer isso pro filme com consciência. Já tinha trabalhado muito em terapia. Já tinha desfeito muitos nós entre eu e ele. E isso acho que é importante no trabalho que escolhi fazer. E que foi importante no trabalho que o Ney escolheu compartilhar e criar.

Eu acho que são essas nuances… essas necessidades de mudança dentro de si. Acho que a gente faz o que faz por isso. E por isso o nosso trabalho tem tanta importância também. Porque a gente fala sobre o outro — sem dúvida — sobre questões fundamentais, necessárias. Algo que é humano. E não tem problema nenhum em falar sobre isso. Eu acho importante. 

Você começou a entrevista falando sobre a importância de estabelecer limites até para não ultrapassar o que você pode oferecer. Mas, ouvindo agora a sua última resposta, fiquei pensando: um trabalho, um personagem, pode também funcionar como um processo de cura?

Sem dúvida. Desde o começo. Eu sei disso desde o começo. Porque, bom… quando ainda estava em Fortaleza, escolhi fazer teatro. E entendi como aquilo me fazia bem. Entendi que poderia ser um trabalho. E que o meu trabalho podia ser algo bom, que me desse prazer em fazer — mesmo quando eu precisasse buscar em lugares dolorosos da minha vida, da minha memória.

E eu tive esse prazer em fazer isso. Entender que as duas coisas se comunicam: prazer e dor. Estão juntas. Eu entendi que eu tinha sido salvo mesmo. Então, eu não tenho dúvida em dizer que o teatro me salvou. E acho importante poder dizer isso.

Porque é onde a gente vai trabalhar de forma muito preciosa… de forma intensa, sem dúvida… as nossas questões. Questões pessoais, e também questões humanas, do mundo.

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Ney Matogrosso e Jesuita Barbosa (Lucas Ramos/divulgação)

De que forma ele te salvou?

A gente tem convenções muito bem acordadas sobre o que fazer, como fazer, como se comportar no mundo, que tipo de trabalho escolher. Muitas vezes, os pais querem que você vá para uma profissão que esteja de acordo com o que eles pensam.

Existem convenções, representações mesmo, que a humanidade cria por uma questão, talvez de sobrevivência. Mas que podem ir para um lugar muito violento, muito difícil de lidar, particularmente. E acho que o papel do teatro é justamente permitir que a gente olhe para essas representações e possa refazê-las.

E, nesse processo de estudar o que é representar, o que são as questões humanas, acho que a gente consegue destrinchar. E, nesse momento, conseguimos demonstrar isso. Quando colocamos tudo em cena. Aí se cria uma cena sobre um palco, uma apresentação. E aí você faz arte.

Porque é o encontro entre o estudo de um tema, de uma condição, e o desejo de mostrar aquilo. E interessa alguém ver aquilo sobre o outro. A gente se vê no outro.

A gente escuta o outro quando alguém conta uma história, quando conta uma fofoca, quando compartilha algo. Então, esse estudo minucioso do ser humano, que o teatro propõe como vertente de criação, é algo muito poderoso. É algo pra vida.

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Ney Matogrosso, na época em que era vocalista do conjunto Secos e Molhados, anos 1970. (Lucio Marreiro/acervo rede Abril)

Acho que seria muito difícil fazer esse personagem, interpretar o Ney, sendo um ator muito vaidoso. Todo mundo tem vaidade, claro, mas queria te perguntar: como você lida com isso? Ainda mais nesse lugar em que te colocam, de celebridade. 

Isso é legal de tu perguntar. Uma amiga minha, lá de Fortaleza, a Andrea Pires, me escreveu dizendo que conseguiu assistir algo que não se aproximava de uma celebridade, de jeito nenhum.

Eu fui lendo e demorei um pouco para entender o que ela queria dizer… mas depois entendi que era sobre isso: sobre entrega. Sobre uma construção que não foi por um caminho que poderia ter ido. E eu fico feliz que isso tenha acontecido. Porque eu me despi completamente para criar essa personagem, para estudar a vida do Ney Matogrosso.

Eu precisava estar muito aberto a toda essa energia de décadas que precisava viver ali. E de jeito nenhum isso passou pela vaidade.

Tentei olhar para ele com muito carinho. E entender de que forma conviver com esse “Deus”. E, junto com o Ney, eu acho que consegui entender um pouco dessa entidade.

Parece que não gosta dessa coisa de celebridade.

Não. Não gosto, não.

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Esmir Filho e Ney Matogrosso durante as gravações de Homem com H (Renato Hojda/divulgação)

Tem um outro assunto que não tem como fugir: falei isso com o Esmir. Achei o filme muito corajoso na forma como aborda a questão sexual. Como foi construir essa partitura, essa confiança entre você e os colegas de cena.

O Esmir tinha um desenho das cenas de sexo muito bem estruturado. Ele sabia o que queria. E eu estava muito confiante nele. O Esmir tem uma cabeça muito criativa. A fala dele é muito convidativa. Te chama para entrar, para somar.

E, nas cenas de sexo, ele tinha uma vontade muito clara de fazer algo. Eu percebia que ele queria muito conseguir filmar as ideias que tinha. E eu tive muito respeito por isso. Porque ele propriedade no filme inteiro, mas especialmente nos desenhos do sexo…

A gente está estigmatizado, no Brasil. As pessoas condenam muito o nosso cinema por ter sexo. E eu acho isso uma grande bobagem. Diz muito sobre nós enquanto sociedade, enquanto nação.

Acho que existe uma caretice muito grande nesse assunto, e o Esmir entendia isso. E eu sabia que ele não estava com medo. Isso me deixava em paz, porque não era sobre evitar filmar alguma coisa, muito pelo contrário.

Eu fui com ele, me joguei mesmo. E eu me coloco muito disponível quando é pra fazer cena de sexo. Acredito que o sexo, pra ser bom, precisa de disponibilidade. É necessário estar ali com o outro, presente, e ao mesmo tempo fiel aos seus próprios desejos, instintos, fetiches. E quando a gente leva isso para o cinema, é preciso transpor essa intimidade para um outro nível. É abrir possibilidades para que esses desejos também sejam compartilhados por quem vai assistir. Então, não dava pra eu ficar com receio. Eu precisava estar totalmente disponível. E isso aconteceu. As cenas ficaram muito bonitas.

E como você sai desse processo todo?

Forte. Eu saí mais forte desse filme. E percebo isso ainda hoje. Recebi uma mensagem de uma menina falando das cenas de sexo, criticando a gente, porque ela levou a mãe e a avó pro cinema, e elas ficaram muito desconfortáveis, incomodadas na cadeira e tal.

Mas, no fundo, ela estava falando sobre ela mesma. Não era o incômodo da avó. Era o incômodo que existia nela. E quando leio esse tipo de coisa, fico feliz. Porque algo foi construído ali, entre filha, mãe e avó. Aquelas três pessoas saíram do cinema modificadas, com certeza.

E é isso: a gente não faz cinema para agradar. O cinema existe como linguagem, como arte. A gente está aqui para provocar processos de transformação. E eu acho que esse filme tem conseguido isso muito bem.

E agora, você pretende focar mais no teatro?Agora eu tô fazendo teatro. A gente ensaia de segunda a sexta, então, por enquanto, estou em função disso. Adoro fazer teatro.

 E aquela pergunta clássica: tem algo que você gostaria de acrescentar?

Acho que a gente conversou bem. Não, tá ótimo.

Na última vez, você me deu uma resposta que fiquei pensando depois. Você disse algo como: “Isso já é com você, agora é sua responsabilidade, você vai ter que descobrir sozinho.” Você lembra disso?

Lembro. Deve ter sido uma bobagem de menino (risos).

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