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Após 60 anos, “A Paixão Segundo G.H” vira filme com Maria Fernanda Cândido

Monólogo evidencia a descoberta da grandeza do mundo por uma aristocrata. Confira o papo com a atriz

Por Beatriz Lourenço
Atualizado em 22 abr 2024, 14h44 - Publicado em 11 abr 2024, 09h00
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Ensaios Galpão, Maria Fernanda Cândido se prepara para encarnar GH (Luiz Fernando Carvalho/divulgação)
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Adaptar um livro de Clarice Lispector para o cinema não é tarefa fácil, ainda mais quando se trata de A Paixão Segundo G.H. – um livro com diversas camadas sociais, políticas e psicológicas. A publicação, datada de 1964, precisa ser lida com cuidado. Isso porque as entrelinhas e os silêncios são tão valiosos quanto as palavras. No entanto, o desafio não assustou o diretor Luiz Fernando Carvalho e a roteirista Melina Dalboni, que se juntaram à atriz Maria Fernanda Cândido para encenar a obra. O resultado pode ser visto nas telonas a partir do dia 11 de abril.

O monólogo é focado no mundo interior da protagonista G.H., uma escultora da aristocracia que mora na cobertura de um edifício do Rio de Janeiro e frequenta festas da alta sociedade. Certo dia, após a empregada, Janair, se despedir, a madame tem o impulso de entrar no quartinho para arrumar o local. Lá, ela se depara com desenhos perturbadores deixados na parede pela ex-funcionária: em tamanho real o contorno de um homem, uma mulher e um cão. No guarda-roupa vazio, foi deixada para trás uma enorme barata viva. 

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(Luiz Fernando Carvalho/reprodução)

Esse encontro, além de causar repulsa, também desperta uma longa reflexão na personagem, que se dá conta de sua pequenez diante da imensidão do mundo e, ao mesmo tempo, de seus privilégios. O ponto alto da trama se dá quando G.H. come o inseto – um ser que ela até então considerava inferior, mas que, na verdade, não é tão diferente dela assim.  

“Clarice fala sobre a carência, sobre as vulnerabilidades, sobre a aceitação dos seus próprios erros, sobre os seus medos, sobre o aborto. Todas essas vulnerabilidades são um terreno conhecido para as mulheres”, relata Maria Fernanda Cândido. “Por outro lado, os homens precisam se esforçar para manter esse mundo patriarcal de pé, resultando em muita violência, agressividade, um mundo bélico. Talvez o nosso esforço seja por tentarmos juntos imaginar um novo pacto. Uma nova possibilidade de dinâmica entre nós todos, seres humanos.”

O roteiro é o texto original da autora, apenas com poucos cortes e reorganização. Por isso, quem não tem conhecimento prévio do livro pode ter dificuldade ao se deparar com falas que relatam um denso fluxo de pensamento em uma linguagem não usual. “Há várias mulheres dentro de uma mesma mulher. O que a gente fez no filme foi criar um diálogo entre elas: a mulher que vive a ação, a mulher que tenta contar o que viveu e todas suas outras memórias”, conta Dalboni. “Ou seja, à beira de um abismo, ela se depara com os preconceitos que ela tinha e o que ela sofria também”, emenda.

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O processo de gravação e as oficinas realizadas pela equipe foram tão ricos que rendeu o livro Diário de um filme, que chega às lojas pela editora Rocco também abril. Escrito em primeira pessoa por Dalboni, ele pode ser lido como um ensaio de caráter pessoal sobre o fazer cinematográfico. Com reflexões profundas e cativantes, o leitor encontra a rotina de pesquisa de cenário, a preparação do elenco e até o passo a passo da finalização do longa. A publicação também traz fotos de cena e reproduções de cadernos com anotações do diretor, além da transcrição de palestras de grandes especialistas na obra da escritora, como Nádia Battella Gotlib, biógrafa de Clarice e supervisora de texto do filme. 

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(Luiz Fernando Carvalho/reprodução)

Abaixo, confira a entrevista completa com a atriz Maria Fernanda Cândido:

O que você sentiu ao ler o livro “A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector, pela primeira vez?

Tive um sentimento de desorganização. Me lembro disso. Foi um livro que bagunçou um pouco a minha vida. Na época eu tinha uns 28 para 29 anos.

Por que você acha importante ler esse livro e assistir ao filme no contexto atual?

Acho super importante que a gente leia esse livro hoje porque, em 1964, ele foi lido e considerado um livro intimista, introspectivo, existencialista. Naquele momento, a mentalidade da sociedade não permitiu uma leitura sociológica. E aí muitas críticas, ensaios e estudos dizem que ele fala apenas sobre uma escultora burguesa da classe média alta do Rio de Janeiro, que após despedir a sua empregada resolve arrumar o seu apartamento. Hoje, conseguimos perceber que temas como luta de classes, racialidade e feminismo também estão sendo discutidos na obra.

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(Luiz Fernando Carvalho/divulgação)

O que você achou do resultado?

O filme foi exibido no Festival de Cinema Brasileiro de Paris no dia 31 de março. Foi a data de 60 anos do golpe militar. Foi uma apresentação incrível, o cinema estava lotado. Muita gente não conseguiu entrar, teve que voltar para casa. Foi, assim, muito, muito emocionante. 

Como o livro e o filme se conectam com o feminino?

Eles tratam da existência de uma mulher nesse mundo patriarcal feito de homens para homens. A Clarice, tem uma escrita transgressora, né!? Tudo vai acontecer a partir de uma barata. Ou seja, você não está falando de uma machadada, de um helicóptero que caiu, de uma bomba que explodiu, está falando de uma barata. E assim é na literatura da Clarice – coisas ínfimas de um cotidiano podem provocar grandes desmoronamentos. Isso é subversivo porque dentro da nossa lógica, uma barata não faria acontecer nada. Precisaria de um evento grande e eloquente. 

Clarice fala sobre a carência, sobre as vulnerabilidades, sobre a aceitação dos seus próprios erros, sobre os seus medos, sobre o aborto. Todas essas vulnerabilidades são um terreno conhecido para as mulheres. E acho que os homens também vão se identificar porque eles também fazem parte desse mundo. Por outro lado, eles precisam se esforçar para manter esse mundo patriarcal de pé, resultando em muita violência, agressividade, um mundo bélico. Talvez o nosso esforço seja por tentarmos juntos imaginar um novo pacto. Uma nova possibilidade de dinâmica entre nós todos, seres humanos. Entre nós, países. 

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(Luiz Fernando Carvalho/reprodução)
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E é um filme que diz muito por meio dos silêncios. Como você percebe a importância do silêncio para esse filme?

Para mim, o silêncio tem o mesmo peso das palavras. Os silêncios preenchidos são tão densos quanto as palavras. 

A personagem tem cenas de desespero, de medo, de sofrimento. Mas também há uma certa alegria de estar passando por aquele momento. Como foi encarar todos esses sentimentos?

Poderia dizer que tudo isso me deu uma alegria difícil. Mas chama-se alegria. Citando a própria Clarice, no prefácio do livro.

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(Luiz Fernando Carvalho/reprodução)

Esse ano você completa 30 anos de carreira e 50 anos de idade. Como está o seu momento de trabalho e de vida? 

É interessante esse momento porque, pela primeira vez, cheguei em um lugar onde posso olhar para trás e ver uma caminhada realizada. Tenho esse recuo para pensar: “Puxa, são três décadas de profissão e cinco décadas de vida”. É prazeroso fazer isso e, ao mesmo tempo, percebo muitos caminhos pela frente. Hoje posso seguir em frente com mais apreço pelos processos, pelo percurso, pela trajetória em si. Sou muito mais apaziguada com os meus erros. Tenho a plena consciência de que tudo faz parte da minha existência e da minha caminhada. A ansiedade diminuiu.

Além disso, começo a dedicar um pouco mais do meu tempo para ideias e para projetos que já estão germinando em mim há mais tempo. Agora, de repente, vou dar um pouco de atenção a isso também. A gente participa da realização dos sonhos de parceiros, de diretores, de realizadores incríveis, mas vou dar voz aos meus sonhos.

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O que você leva de aprendizado desse filme?

Ficou mais coragem e mais confiança. Coragem para seguir rumo ao desconhecido porque a vida independe de nós. Eu preciso confiar na vida, não posso viver achando que tenho o controle sobre as coisas. E é essa confiança que a experiência me deu. 

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(Diário de um filme: Paixão Segundo GH / Editora Rocco/divulgação)
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