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O cinema da divergência de José Eduardo Belmonte

Em seu filme “O Pastor e o Guerrilheiro”, que se passa durante a ditadura, o diretor explora a potência no encontro de mentes diferentes em nome do bem

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 18 Maio 2023, 11h38 - Publicado em 17 Maio 2023, 10h56

São incontáveis os temas que o cinema pode explorar. Alguns diretores passam boa parte de suas carreiras perseguindo um ou outro assunto de interesse. O cineasta José Eduardo Belmonte tem alguns, mas um tipo de trama, em especial, parece capturar sua atenção: o encontro de divergentes para achar saída do próprio isolamento. Em sua obra mais recente, O Pastor e o Guerrilheiro, a questão é evidente. No longa, estrelado por Johnny Massaro, César Mello e Julia Dalavia, a história tem partida no ano de 1968, o mesmo em que foi instaurado o AI-5, que serviu para restringir ainda mais as liberdades individuais da população brasileira. João é um jovem que abandona a universidade e se junta à Guerrilha do Araguaia. Seus planos, logo, são interrompidos. Ele é preso e torturado.

Na prisão, encontra Zaqueu (César Mello), um pastor negro, preso por engano. Apesar das diferenças, os dois criam uma relação de cumplicidade e prometem se encontrar na virada do milênio, 27 anos depois. Prometem, portanto, sobreviver àquele horror. Na outra ponta, está Juliana (Julia Dalavia), uma jovem estudante, no ano 2000, que descobre que seu desconhecido pai foi um coronel no período militar, que prendeu e torturou diversas pessoas, entre elas João e Zaqueu.

O Pastor e o Guerrilheiro
(@LipeDuq/divulgação)

Além da conexão entre divergentes, para Belmonte, há uma necessidade permanente de criar registros históricos dos períodos marcados pela violência institucional no país. Para o diretor, o Brasil vive um processo não amadurecido de seus traumas. O Pastor e o Guerrilheiro é, portanto, sua maneira particular de colaborar na análise identitária do país através do cinema. Confira nossa conversa:

O Pastor e o Guerrilheiro é baseado em um acontecimento real. Como essa história chegou até você?
Esse filme demorou muito para ser feito. Começou em 2012, quando o Nilson Rodrigues, produtor, me contou dessa história e eu fiquei muito impressionado. Ele leu o livro nos anos 1980 e ficou com esse filme na cabeça durante anos. Ficamos pensando em como fazer acontecer, e demorou por vários motivos. A primeira versão de roteiro só veio em 2015.

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O Pastor e o Guerrilheiro
(@LipeDuq/divulgação)

É mais comum ouvirmos como se dá a preparação de atores para uma obra, mas acabamos ouvindo menos da perspectiva dos cineastas de como foi o mergulho nas camadas da história que será contada. Como foi esse seu processo de investigação?
Eu estava estudando bastante o universo evangélico na época. Tinha sido aluno da UNB, e algumas pessoas da minha família foram militares. Eu já tinha algum conhecimento naquele universo. Do Araguaia não conhecia tanto, mas durante o processo entramos em contato com muitas histórias, principalmente do Genoíno (o ex-militante José Genoino), que foi um consultor do projeto, algumas histórias que acabaram entrando são dele. A parte mais rica do processo foi quando o elenco entrou. Ali descobrimos a necessidade de aprofundar muito sobre os vários temas.

Entendemos a profundidade do que foi a guerrilha e o que aconteceu, porque é terrível o que o exército fez. Em todos os sentidos, não só com os próprios guerrilheiros, o massacre, mas também com as pessoas que eram locais e eram torturadas para entregar as pessoas, que eram cooptadas para trabalhar para o exército. Essa era uma parte da realidade que eu conhecia muito pouco. Foi um horror. Pensar que isso foi uma política de Estado.

O grande prazer desse processo do cinema é você ganhar consciência, entrar em lugares que você não entraria no seu cotidiano. Sua visão de mundo vai ficando mais complexa e você vai se descobrindo um pouco mais nesses contatos.

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O Pastor e o Guerrilheiro
(@LipeDuq/divulgação)

Histórias sobre o período da ditadura militar já foram contadas aos montes no cinema. Imagino que houve preocupação de trazer um novo ponto de vista. O que, para você, há de novo nessa obra?
Acho que temos que amadurecer muito, até como mercado. Uma vez um executivo falou, muito tempo atrás, que já existem muitos filmes sobre ditadura e que eles não fazem sucesso. É maluco porque é uma dificuldade da gente lidar com a verdade, discutir os nossos próprios traumas, narrar o nosso horror. Ninguém fala: “Mais um filme sobre Vietnã”. É interessante reviver esse momento, aprofundar, buscar outras visões e questões. E até explorar a partir de outros gêneros. Há filmes de ação, filmes dramáticos sobre a Guerra do Vietnã. É muito importante, como sociedade, amadurecer isso.

“Entendemos a profundidade do que foi a guerrilha e o que aconteceu, porque é terrível o que o exército fez. Em todos os sentidos, não só com os próprios guerrilheiros, o massacre, mas também com as pessoas que eram locais e eram torturadas para entregar as pessoas, que eram cooptadas para trabalhar para o exército”

José Eduardo Belmonte
José Eduardo Belmonte
(Bob Wolfenson/divulgação)

E o que mais te atraiu nessa história em particular?
O que me interessou e o que achei único nesse filme, além do encontro entre divergentes para achar um ponto comum para democracia e espírito de comunidade, é o pós-ditadura, aquilo que ficou. Tem poucos filmes sobre o que veio depois de 1985. É importante narrar o horror. Mas o que mais interessou foi falar sobre as heranças. Não podemos apagar, fingir que não existiu e seguir em frente.

O Pastor e o Guerrilheiro
(@LipeDuq/divulgação)

Enredos que falam sobre a ditadura acabam tendo um forte aspecto de reconstituir e preservar a memória cultural e histórica. A questão é que não faltam ferramentas para registrar a memória, e mesmo assim parece que continuamos esquecendo. Você, enquanto observador das dinâmicas sociais, qual leitura faz desse momento em que vivemos? Por que é difícil preservar esse tipo de memória?
Teve um momento no Brasil que estávamos produzindo 180 filmes por ano, mas a Cinemateca estava praticamente asfixiada. Não havia nenhum investimento em memória, em preservação. Acho que tem uma questão cultural mesmo, da maturidade da sociedade. Uma vez eu fui filmar uma série de época e tive que ir pro Uruguai, porque nenhum prédio estava conservado no Rio de Janeiro. Eu vejo isso também em Brasília, onde eu fui criado. A cidade tem 63 anos, mas os prédios, os monumentos são novos, mas está tudo destruído, tudo mal conservado. Há uma dificuldade no entendimento do que é público, de construção de sociedade, que ainda não nos alertamos sobre. Existe uma dificuldade de se olhar no espelho, de falar abertamente sobre as coisas. As heranças são muito autoritárias. E nós lidamos muito mal com a verdade.

O Pastor e o Guerrilheiro
(@LipeDuq/divulgação)

Mais uma vez, faço esse paralelo com a carreira do ator e da atriz, sobre como constroem uma bagagem de narrativas que podem ou não conversar entre si, mas que revelam um pouco do perfil e das preocupações que aquele artista carrega. Como isso acontece para um cineasta? Acha que há mais autonomia para a escolha dos projetos que irá fazer parte?
Talvez no geral, sim, mas o cinema autoral realmente deu uma baixa muito grande ultimamente, nos últimos 4 anos. Eu nunca parei para pensar muito nisso, mas acredito que sim. Normalmente, o cineasta tem uma ideia e vai atrás dela. Temos uma cultura da atuação em que esperamos que o trabalho chegue até nós e daí você escolhe o que se aproxima mais. Eu procuro trabalhar com atores-autores, que já tenham um ideário, e que tenham esse perfil de se autoproduzir. O Johnny é um caso muito interessante. Mas, lógico, há uma necessidade de se adaptar às lógicas do mercado, que ainda está amadurecendo. Para o diretor, no entanto, é uma coisa mais diária, sim. E ele, enquanto coordenador do processo, pode ressignificar algumas coisas para trazer mais perto das ideias dele.

O Pastor e o Guerrilheiro
(@LipeDuq/divulgação)

Na sua trajetória profissional e artística, você consegue identificar temas, questões com as quais tentou se aproximar através de seus filmes? Há conteúdos que se entrelaçam em suas obras?
Sim. Claro que tem muitos processos que fui aprendendo quando o conteúdo vem de uma demanda externa, então tento fazer um processo dialético. Mas também foi uma ideia de sair um pouco de mim, de entender um pouco, ocupar outros espaços que eu não ocuparia, viver experiências que eu não viveria também. Acho que teve essa aventura e também uma questão política de entendimento de mercado. Praticamente todos os filmes que fiz abordam muito as pessoas que tentam sair do seu isolamento através do outro. Essa pessoa que tentou se conectar à realidade, de alguma forma, eles não entendem o que está ao redor deles. Nem todos os filmes obviamente, mas tem sempre um personagem que é sonhador, que tem uma fé, uma utopia, mesmo que seja ingênua. Sempre tem esse personagem que às vezes não existe e eu acabo ressignificando a história de alguma maneira para fazer cabê-lo.

“Temos uma cultura da atuação em que esperamos que o trabalho chegue até nós e daí você escolhe o que se aproxima mais. Eu procuro trabalhar com atores-autores, que já tenham um ideário, e que tenham esse perfil de se autoproduzir”

José Eduardo Belmonte
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José Eduardo Belmonte
(Bob Wolfenson/divulgação)

Enquanto estava lendo a respeito de seu trabalho, me deparei com um conceito, uma técnica de atuação, que parece ser uma característica do seu processo, que a “mala pequena”. O que é isso exatamente?
Essa foi uma tirada publicitária. Na verdade, o cinema tem um processo muito dinâmico e dialético. Às vezes pode acontecer muitas coisas que te tiram do foco e podem fazer com que o processo não seja tão orgânico. E aí eu falo que tem sempre uma característica do personagem que não muda, algo que é dele. Existe uma essência e o ator precisa entender o que é. Eu sempre trago o exemplo de Hamlet, onde a vingança permeia toda a história do personagem, assim como a melancolia e a tragédia. E a peça se expande daí. Pensa que se tivesse um incêndio, o que a personagem levaria? Essa é a mala pequena, ou seja, aquilo que é essencial e você precisa selecionar.

O Pastor e o Guerrilheiro
(@LipeDuq/divulgação)

E qual seria a mala pequena de O Pastor e o Guerrilheiro?
É um filme sobre a possibilidade do diálogo, de você se encontrar pelo outro, de você se conectar com os divergentes. O filme se expande dessa ideia.

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O Pastor e o Guerrilheiro
(@LipeDuq/divulgação)
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