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Qual a história de Geni em “Ópera do Malandro”

A protagonista da célebre canção “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque, virou alvo de um conflito on-line em torno de sua identidade de gênero

Por Humberto Maruchel
13 jun 2025, 09h00
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Marieta Severo contracena com Ary Fontoura e Otávio Augusto, com Nadinho da Ilha ao fundo (de terno branco), na montagem de A Ópera do Malandro, de Chico Buarque, dirigida por Luiz Antonio Martinez Corrêa. (Arquivo/reprodução)
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Recentemente, uma das personagens mais icônicas da dramaturgia brasileira esteve no centro de uma intensa disputa. Geni, protagonista da célebre canção “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque, virou alvo de um conflito on-line em torno de sua identidade de gênero. Tudo começou porque o filme homônimo à música, dirigido por Anna Muylaert, havia escalado uma atriz cis para interpretar uma personagem supostamente trans.

Inicialmente, Thainá Duarte foi anunciada como a protagonista. No entanto, o anúncio gerou o efeito contrário ao esperado pela diretora, provocando uma enxurrada de críticas, especialmente pelo fato de que Geni, personagem originária da peça “Ópera do Malandro”, é uma mulher trans.

Mas as discussões não ficaram restritas a isso. Outras vozes se somaram à controvérsia, resultando numa verdadeira confusão, onde muitos falam, poucos escutam e, como infelizmente é comum nas redes sociais, o debate acabou servindo de terreno para manifestações transfóbicas.

Então, quem é, afinal, Geni? Sente que a história é longa.

O musical de Chico Buarque, criado em 1978, foi concebido e encenado em pleno período da ditadura militar. A montagem ficou a cargo do renomado encenador Luís Antônio Martinez Corrêa, irmão de Zé Celso, outro grande nome do teatro brasileiro. Quando foi apresentado, a peça, inclusive, sofreu censura pela ditadura.

O texto foi fortemente inspirado na obra “Ópera dos três vinténs” (1928), do dramaturgo alemão Bertolt Brecht e do compositor Kurt Weill, que, por sua vez, baseou-se na peça inglesa “Ópera dos mendigos” (1728), de John Gay.

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O que une essas três obras é o caráter satírico e crítico voltado contra os costumes das elites: a aristocracia, na peça inglesa; a burguesia, na versão de Brecht e Weill; e a burguesia aliada ao poder institucional, na brasileira “Ópera do Malandro”. De certo modo, elas se complementam e se explicam mutuamente, utilizando música popular, humor e personagens marginais para denunciar a corrupção das elites, da polícia e das instituições.

Ambientada na Lapa dos anos 1940, “Ópera do Malandro” gira em torno de Max Overseas, um contrabandista sedutor que desafia Duran, dono de um bordel e aliado da polícia. Quando Max casa-se às escondidas com Lúcia, filha de Duran, o embate entre os dois se intensifica, revelando os interesses escusos por trás das aparências. Políticos, cafetões, policiais e prostitutas se juntam na peça, mostrando, com humor ácido, um sistema onde todos agem por interesse próprio. O malandro torna-se símbolo daquele que aprende a sobreviver em meio à corrupção e à hipocrisia.

Geni é uma releitura brasileira e ainda mais radical da personagem Jenny das Seis Janelas, da “Ópera dos três vinténs”. Seu nome remete ao bordel “As Seis Janelas”, onde trabalha Jenny, uma ex-amante do protagonista Macheath e prostituta inserida no universo marginal da peça. Jenny simboliza a dura realidade social e moral de uma sociedade marcada pela desigualdade, exploração e cinismo. Em uma das cenas mais emblemáticas, ela canta “A Balada de Jenny das Seis Janelas” (“Seeräuberjenny”), revelando seus sonhos de ascensão social e vingança.

No universo brasileiro, Geni vive à margem da sociedade, constantemente humilhada e rejeitada pelos moradores. Na trama, ela é alvo de preconceito, mas, em um momento crucial, é chamada a “salvar” a cidade, sacrificando-se por um bem coletivo, o que expõe a hipocrisia social: insultada quando não serve, exaltada apenas quando útil. É aí que a famosa canção “Geni e o Zepelim” integra o espetáculo. Há quem diga também que Geni contou com mais uma inspiração: a personagem de mesmo nome, outra prostituta, da peça “Toda nudez será castigada” (1965), de Nelson Rodrigues

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Geni é a figura mais marginalizada daquele universo. Além de prostituta, ela é, sim, uma personagem trans. Isso não fica apenas subentendido; é explicitado no enredo quando Geni é chamada insistentemente de Genival, seu nome de batismo, e identificada pelo pronome masculino. Confira um trecho da peça:

GENI Olá, todo mundo. Vitória, meu anjo, arranja um conhaque rápido senão eu tenho uma síncope. (Atira-se numa poltrona)

DURAN Que houve, rapaz? Apanhou dum taifeiro?

VITÓRIA Nossa, Genival, como você está pálido! Tá com cada olheira… (Vai buscar a garrafa)

GENI É, devo estar mesmo um bofe! Imagina que nos bons tempos eu levava quatro, cinco noites de enfiada com os marujos na maior disposição. Agora que tô pra lá de balzaqueana, basta uma noite em claro pra me deixar podre e bolorenta.

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VITÓRIA Mas por dentro você deve estar uma bela viola. Eu sei como essas aventuras rejuvenescem o espírito.

GENI Que aventura nada. Foi só uma festinha que o Max organizou.

DURAN Continua cumpincha daquele safado, é?

VITÓRIA Ih, Genival, me contaram que esse Max é um cafajeste!

GENI Que nada, inveja do povo! Não é por ele ser meu patrão, mas se vocês conhecessem pessoalmente o Max, tenho certeza que ficariam cativados. Se vocês quiserem, eu posso trazer ele aqui dia desses…

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VITÓRIA Deus me livre e guarde, Genival!

DURAN Um fora-da-lei não põe os pés nesta casa!

VITÓRIA Me disseram até que ele é ateu e materialista!

GENI Não sei, Vitória, mas é graças a ele que você pode andar assim cheirosa… (Abre a chapeleira) Olha, falando nisso o teu Aimant de Coty continua em falta…

E outros exemplos não faltam:

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CHAVES Genival, eu peço perdão, eu perdi o controle, desculpa!

GENI Eu tô exausta de desculpas. Agora eu quero é quarenta contos do Duran e trinta e cinco do inspetor que aliás acabam de passar a cinqüenta pra indenizar a ofensa física.

CHAVES Mas eu não tenho esse dinheiro todo!

GENI O teu amigo Duran empresta, né?

DURAN Você tá me arruinando, Genival. Noventa contos é demais!

VITÓRIA Duran, tá em cima da hora!

DURAN Merda! (Assina o cheque)

VITÓRIA Agora fala, Genival.

Ao final, as críticas à escolha do elenco do filme de Anna Muylaert, que vieram inclusive de colegas do audiovisual, como Camila Pitanga e Liniker, surtiram efeito. Thainá foi substituída pela atriz trans Ayla Gabriela, que agora assume o papel principal. A diretora se explicou:

“Quero explicar tudo. Durante o processo de criação deste filme, a gente entendeu que a letra do Chico e o conto do Guy de Maupassant, Bola de Seda, no qual o Chico diz ter se inspirado, poderiam ter várias leituras: poderia ser uma mulher trans; poderia ser uma mãe solteira; poderia ser a Fabiana Silva da Favela do Moinho, uma carroceira; poderia uma presidente tirada do poder sem crime de responsabilidade; poderia ser uma floresta atacada diariamente por oportunistas.”

Ela pediu desculpas a atriz Thainá Duarte e anunciou a mudança de elenco. “Quero dizer que eu, como uma diretora cis, vou fazer todo o possível pra honrar essa personagem trans (..) Depois de quarenta anos que essa música foi composta, a Geni continua tomando pedra. Ao contrário disso, a gente criou um final de glória para ela, e espero que após esse debate o nosso filme se torne uma ponte entre vários grupos no Brasil e no mundo”.

Com direção e roteiro de Muylaert, o longa oferece uma releitura da história da prostituta ribeirinha Geni, amada pelos desvalidos e rejeitada pela sociedade local, a primeira protagonista de Ayla no cinema. As filmagens foram encerradas nessa semana e o filme ainda não tem previsão de estreia. O filme não é uma adaptação fiel à peça de Chico, mas uma adaptação que se passa na Amazônia. 

Além de Ayla, outro nome de peso se junta ao elenco. Seu Jorge interpreta o comandante do zepelim, uma figura tirânica que invade a cidade com um projeto predatório de dominação. As filmagens ocorrerão ao longo de dois meses, em locações da floresta amazônica.

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