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Marcélia Cartaxo virou a eterna estrela de Clarice Lispector com Macabéa

A atriz, que protagonizou "A hora da estrela", é a grande homenageada do Festival de Gramado neste ano e está prestes a lançar o filme "A praia do fim do mundo"

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 18 ago 2025, 18h16 - Publicado em 18 ago 2025, 09h00
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O filme de 1985, baseado no livro homônimo de Clarice Lispector, volta aos cinemas digitalizado (A Hora da Estrela (1985)/reprodução)
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Algumas trajetórias parecem se entrelaçar de maneira quase mágica, mesmo quando uma das partes desconhece a outra. É o que acontece quando nos sentimos profundamente conectados a um autor ou diretor, capazes de revelar camadas de nós mesmos que nem sabíamos existir. No caso de Marcélia Cartaxo, essa ligação é ainda mais intensa: atravessa décadas e tem como epicentro ninguém menos que a grande escritora Clarice Lispector.

Marcélia eternizou Macabéa, protagonista de A Hora da Estrela, possivelmente a obra mais conhecida e lida de Clarice, em sua estreia no cinema, em 1985, aos 22 anos. A atriz havia sido descoberta pela diretora Suzana Amaral em uma peça de teatro, mas já carregava consigo uma carreira de dedicação e respeito ao palco, marcada por experimentações e pelo trabalho junto ao seu grupo teatral, um dos primeiros grandes amores de sua vida.

“Quando minha mãe não estava em casa, eu passava horas na máquina de costura, tentando fortalecer minhas mãos e braços, não apenas pela habilidade, mas para me preparar para a atuação. Foi assim que fiz a camisola de Macabéa, que usei e ensaiei, repetindo cenas na frente do espelho. Todas as experiências que eu adquirira no teatro, junto com o grupo, colocava em prática: decorava o texto, ensaiava gestos, testava tudo para chegar preparada às mãos de Susana Amaral”, conta a triz em entrevista exclusiva à Bravo!. 

Quarenta anos depois, Marcélia consolidou uma trajetória respeitada no cinema brasileiro e foi escolhida como uma das homenageadas no Festival de Gramado, em uma consagração que celebra sua trajetória e contribuição para o cinema nacional.

Os últimos dois anos foram particularmente especiais para a atriz. A Hora da Estrela ganhou nova exibição nos cinemas em versão remasterizada. Além disso, Marcélia mergulhou novamente no universo de Clarice Lispector com o filme Lispectorante, dirigido por Renata Pinheiro. A obra acompanha Glória, artista plástica que descobre uma fresta em uma casa no bairro onde Clarice viveu, abrindo caminho para outra versão da realidade e conectando passado e presente de forma poética.

Ainda neste ano, Marcélia estreia A Praia do Fim do Mundo, de Petrus Cairy, longa entre os finalistas indicados pela Academia Brasileira de Cinema para representar o Brasil no Oscar. Situado em Ciarema, o filme acompanha mãe e filha diante do avanço do mar, confrontando perdas, resistência e escolhas em um cenário de destruição ambiental.

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Qual é a história da atriz Marcélia Cartaxo?

Filha de Eusébia Cartaxo e José Joaquim Cartaxo, uma dos cinco filhos, Marcélia criava sua própria fantasia nas ruas de Cajazeiras (PB). Em um grupo de mais de 20 crianças, ela se alternava entre o parque de diversões e o açude, que lembra com nitidez com o pôr-do-sol e o céu que a marcaram por sua beleza. Foi de uma geração que se privilegiou da riqueza de tradições passadas dos antepassados, como “brincar na chuva, organizar o São João, o carnaval ou a Paixão de Cristo.”

“Tínhamos o hábito de sentar nas calçadas, levar comida e compartilhar. Minha mãe era costureira, meu pai agricultor, e vivíamos de aluguel. Minha mãe sempre incentivou a educação, costurava, bordava, fazia crochê, rede, bonecas — tudo isso me influenciou e eu aprendi com ela, ajudando nas tarefas domésticas e na costura”, conta a atriz em entrevista à Bravo!.

Foi na escola que começou a explorar o mundo fora de casa. E, mais importante, foi ali que formou seu grupo de teatro, aquela que foi sua descoberta para sua grande vocação. No quintal da casa de um amigo, os jovens realizavam pequenos shows, imitando artistas e cantores da época.

“Eu, com meus cabelos enrolados e óculos redondos, imitava Silvio Brito, dançava e brincava com luzes, criando pequenos espetáculos. Também criávamos nossas próprias peças de teatro, como Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve e Os Três Porquinhos. Essa infância criativa e comunitária foi a base da minha relação com o teatro e da formação do meu amor pela arte, continua ela.

A brincadeira foi ficando cada vez mais séria, assim como o comprometimento das crianças, que foram enxergando naquele mundo de faz de contas um destino. As brincadeiras de rua encontraram outro lugar mágico: os três cinemas da cidade. Marcélia lembra que havia um rapaz que trabalhava em um desses locais que emprestava fitas com áudios dos filmes. O jogo dos pequenos artistas passou a ser a reprodução das cenas. O palco ainda era o quintal de suas casas.

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Naquela época, ainda na década de 1960, ficou marcada por outra grande abertura: a inauguração da universidade de Cajazeiras, que já no seu início instituiu a semana de artes. Foi nesse contexto que o grupo se profissionalizou.

“Foi quando conhecemos Luiz Carlos Vasconcelos, ator e diretor de teatro. Luiz Carlos abriu a Escola Piolín, trazendo estudantes de várias regiões e países. Ele organizou encontros de teatro que incluíam grupos do interior, como o nosso. Para participar, ele exigia dedicação aos estudos e responsabilidade, assegurando que nenhum aluno ficasse de recuperação e prejudicasse o processo artístico.”

Ali se formava o maior grupo teatral da região. “O desejo do grupo era claro: todos queríamos seguir carreiras artísticas. Naquela época, não havia cursos de teatro ou audiovisual na região; a educação artística era limitada, e a comunicação ainda dependia de cartas e avisos, pois o telefone era pouco acessível. Mesmo assim, nossa paixão pela arte nos unia e nos impulsionava a criar e apresentar, mesmo com todos os obstáculos da época.”

O encontro de Marcélia Cartaxo com Suzana Amaral

O coletivo emprestou o nome de um rato famoso e foi batizado de “A Turma do Mickey”. Ao lado de Luiz Carlos Vasconcelos, os adolescentes começaram a percorrer outras cidades. Mas um projeto específico marcou uma virada na carreira de Marcélia Cartaxo.

Marcélia tinha 19 anos quando participou da peça “Beiço de Estrada”, de Eliezer Rolim Filho. A obra explorava prostituição, misticismo religioso, miséria e vida à beira da estrada. E girava em torno de uma velha com várias filhas, e da filha mais nova, que a mãe tentava preparar para casar e tirar a família da pobreza e da prostituição.

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O espetáculo fez parte do projeto Mambembão, que promovia intercâmbio cultural entre os melhores espetáculos do Sul e do Nordeste, levando peças a cidades como Brasília, Curitiba, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. Foi em São Paulo que ocorreu um encontro decisivo para a carreira de Marcélia.

Susana Amaral, que trabalhava na adaptação do romance A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector, assistia a espetáculos vindos do Nordeste em busca da atriz perfeita para interpretar Macabéa. Após a apresentação de Beiço de Estrada, Susana abordou Marcélia com o livro em mãos:

“Olha, eu tô fazendo um projeto. Você já leu o livro da Clarice Lispector, A Hora da Estrela?” Marcélia respondeu que não. A diretora explicou que ainda estava captando recursos e que já iniciava a pré-produção, procurando elenco e pensando em convidar grandes nomes como Fernanda Montenegro. O que brilhou aos olhos da atriz.

Susana manteve contato próximo. Acontece que Marcélia não tinha telefone em casa. Um mês depois, chegou a primeira de oito cartas de Susana. Nelas, a diretora elogiava o trabalho do grupo e sugeria iniciar a preparção de Marcélia para interpretar Macabéa.

Da preparação à estreia de Macabéa

A diretora enviou a Marcélia Cartaxo uma passagem de ônibus para que ela pudesse sentir a viagem como Macabéa: o cansaço, a monotonia, a solidão. A despedida na rodoviária foi difícil; a mãe tremia, os amigos tinham ciúmes e poucos foram se despedir. 

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Chegando à rodoviária de São Paulo, não havia ninguém esperando. O desespero tomou conta. Sozinha, sem coragem de perguntar a alguém, ela esperou quase meia hora até que Cacá, filha de Susana, apareceu com uma plaquinha: “Marcélia Cartaxo”. A alegria foi imediata, e as lágrimas vieram junto. Cacá a levou para a casa de Susana, onde ficaria uma semana. A diretora estava convicta: Marcélia era a escolha certa.

Mesmo assim, a produtora Assunção Hernandes sugeriu testes, já que Marcélia nunca tinha feito cinema. Cada candidata teria um horário separado, e uma semana depois Marcélia foi chamada. A sala lembrava o escritório do personagem Seu Raimundo, quase como um cenário pronto do filme. Para o teste, precisou interpretar a cena em que Macabéa digita, come um sanduíche e toma uma Coca-Cola. Usou tudo que aprendera no teatro, trazendo naturalidade e ritmo para a personagem.

Susana perguntou sobre o cabelo de Macabéa. Marcélia fez três cocozinhos, amarrou com grampos e manteve a franja. Cada gesto, cada detalhe, foi pensado. Quando terminou, a equipe se emocionou: “Temos a Macabéa, ela é maravilhosa!” Marcélia chorou de alívio. Tudo que passou — a despedida, a viagem, a espera — tinha valido a pena.

Nesse período, ela começou a absorver os ensinamentos de Susana Amaral, que até hoje orientam sua atuação: concentração, observação, memória da emoção, memória do corpo, caracterização e ritmo. Tudo é importante: como andar, falar, respirar, expressar tristeza ou alegria. Foi ali que consolidou seu jeito de atuar.

Do teatro à televisão

Tudo aconteceu muito rápido para Marcélia. Seu talento se expandia cada vez mais e a levava para novos lugares, inclusive para a televisão. No entanto, enquanto no teatro as possibilidades pareciam infinitas, na televisão encontrou uma nova barreira, construída em cima do preconceito.

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“Confesso que, às vezes, me frustrava um pouco nas novelas. Alguns personagens tinham histórias interessantes — as duas primeiras empregadas que interpretei, por exemplo, tinham vida própria, e era gostoso trabalhar com elas. Depois vieram outras empregadas: fiz sete no total. Algumas já não tinham história, entravam e saíam, e eu sentia falta de profundidade. Claro que o pagamento era bom, a experiência valiosa, havia muitos atores incríveis, e era fascinante acompanhar a evolução dos personagens. Mas ainda assim, sentia que faltava algo”, confessa.

Mesmo com o talento, com um personagem emblemático na manga, num filme com Fernanda Montenegro, Marcélia era reduzida a personagens secundárias e estereotipadas nas novelas. Mas no cinema, as coisas eram diferentes.

“Depois, fui morar em Brasília e trabalhei na TV Manchete, experiências muito diferentes da Rede Globo. Na Manchete, tínhamos mais liberdade para criar, para experimentar. Foi lá que surgiu o convite para Madame Satã. Pensei bastante sobre a Laurita: nunca tinha feito uma prostituta antes. Queria que ela fosse alegre, que tivesse força, que carregasse o personagem de Lázaro [Ramos] de forma intensa. Foi incrível dar vida a ela.”

Mais recentemente, Marcélia deu vida a Pacarrete, inspirada na história real de Maria Araújo Lima. Essa foi uma das personagens mais marcantes de sua carreira e um desafio completamente distinto. A atriz empre sonhou em ser bailarina, mas nunca teve oportunidade de se dedicar à dança. No filme, Pacarrete é uma bailarina de Russas, no interior do Ceará, que decide se apresentar como presente pelos 200 anos da cidade, mas enfrenta o descaso e a indiferença daqueles ao seu redor.

“Quando chegou o momento de interpretar Pacarrete, já estava com mais idade, mas a preparação foi intensa: aprendi coreografias, trabalhar para ficar nas pontas, explorar o corpo e mergulhar de fato na experiência do balé. A personagem tinha 60 anos, voltava para cuidar da irmã e, mesmo assim, queria mostrar seu frescor e seu talento à cidade.”

Para compor Pacarrete, Marcélia contou com apenas duas fotos da bailarina jovem, uma delas tirada no cemitério. No primeiro dia de filmagem, levou champanhe e flores, conversou com Pacarrete e prometeu levá-la para o mundo — uma promessa cumprida nas telas: Japão, festival de Gramado, Los Angeles.

O reencontro com Clarice Lispector

Marcélia não teve a oportunidade de conhecer Clarice, que morreu em 1977, muito antes do lançamento do filme A Hora da Estrela. Já fazia alguns anos que Marcélia havia interpretado Macabéa no cinema, e estava vivendo uma fase desgostosa. Então ela voltou para casa, um pouco sem rumo ou perspectiva.

“Quando voltei para Recife, me dei de cara com a realidade da minha família. Não tinha dinheiro, não tinha como alugar nada, estava voltando sem nada nas mãos. Me vi naquele lugar de glória, mas também de limitação. Em João Pessoa, não havia o movimento que eu tinha no Rio: convites para shows, teatro, cinema, museus — lugares onde eu desaguava meus momentos, buscava inspiração, ia atrás de livros, contos, referências.”

Fez o que estava ao seu alcance e voltou a estudar: curso de roteiro, interpretação, retomando tudo que fazia antes, mas desta vez sozinha, sem seu grupo, sem amigos, sem aquele caleidoscópio cultural que tinha no Rio. Clarice meio que a salvou neste momento. “Foi aí que a Clarice Lispector entrou na minha vida de forma mais intensa. Conhecia seu trabalho de cinema, teatro, rodas literárias, mas ir a Recife e mergulhar na história dela foi transformador.”

Aquele período cruza com a história que viveu recentemente nas telas, quando interpretou Glória em Lispectorante. “Ver como ela se comunicava, de si para o mundo, era uma inspiração direta para a construção de Glória, assim como a própria Renata, que é artista e diretora, carregava parte desse espírito. A obra da Clarice me mostrou camadas de dor, mágoas, ilusões, separações. Ler Clarice exige atenção, reler, absorver. É nesse universo que Glória se inspira, e se fortalece e a partir das referências e da própria vida da escritora.”

Nos últimos anos, Marcélia teve novas oportunidades na televisão e no streaming. Em Cangaço Novo, interpretou Zefa, uma líder comunitária que equilibra resistência e cuidado com sua comunidade. Já em 2025, esteve na novela elogia Guerreiros do Sol, no Globoplay, dando vida a Generosa, a matriarca do núcleo central.

Mas, em meio a todos os projetos, Clarice Lispector, autora de origem ucraniana, permanece como um farol em sua trajetória, e segue como fonte de admiração e também de profunda gratidão.

“Clarice Lispector continua sendo uma referência viva na minha carreira. Toda vez que participo de projetos relacionados a ela, sinto que esse diálogo continua — desde atuar em A Hora da Estrela até revisitar seus livros, como O Livro dos Prazeres. Cada experiência é um aprendizado, uma inspiração que se renova. E mesmo após décadas, a presença dela ainda desperta em mim o desejo de criar e de levar ao público a força das histórias que ela nos legou”, finaliza.

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