Rodrigo Pederneiras e os 50 anos do Grupo Corpo
Coreógrafo revisitou influências e trajetória de cinco décadas de sucesso em entrevista à Bravo! e revela: “adoraria poder trabalhar com David Byrne”

Ao longo de cinco décadas, o Grupo Corpo se consolidou como um dos maiores nomes da dança brasileira, conquistando um reconhecimento internacional notável pela sua inovação e autenticidade. No contexto das celebrações dos 50 anos da companhia, Bravo! conversou com Rodrigo Pederneiras, coreógrafo e uma das figuras centrais do grupo, que ofereceu uma visão fascinante sobre a evolução artística da companhia mineira.
“Não acho que dança seja uma forma de arte que se preste muito à narrativa. É preciso encontrar esse outro caminho, essa outra veia, de forma que ela chegue às pessoas, mas sem estar contando uma história. Ela chega porque ela é fundamental. Emocionar pessoas é muito difícil. Se você consegue fazer com que as pessoas sintam coisas novas, aí é o grande barato da dança”, revela, convicto.
Nessa conversa, Pederneiras reflete sobre as diferentes fases de sua trajetória, desde os primeiros trabalhos coreografados por Oscar Araiz, até a busca por uma linguagem própria e inconfundível, fundamentada em influências musicais e culturais brasileiras. Com a sinceridade de quem passou por diversos desafios e transformações, ele compartilha também sua paixão pela música e como ela sempre foi a base de seu processo criativo, permitindo que dança e trilha se tornassem uma expressão única e harmônica no palco.
BRAVO!: Como você vê a evolução do grupo nessas cinco décadas, tanto na forma artística quanto no reconhecimento internacional?
Rodrigo Perdeneiras: É muito tempo. Podemos pensar em três fases diferentes durante esses 50 anos. A primeira, com Maria Maria, Último Trem, trabalhos mais narrativos coreografados por Oscar Araiz. Ele quem trazia iluminador, figurinista, cenógrafo e tudo mais. Na época eu era só bailarino. Depois dos anos 1980, a gente começou a assumir a parte artística [Rodrigo e seu irmão, Paulo] e foi um período de muito aprendizado mesmo. Porque a gente trabalhava com o material que a gente tinha: as músicas dependiam do estava ouvindo na época. E a vida inteira eu escutei música clássica, desde que eu entendo por gente. Então, começamos a trabalhar primeiro com os compositores clássicos brasileiros, depois abrimos o leque, passamos para Chopin, Mozart, Strauss, etc. E, no início da década de 1990, que começou a descoberta da nossa maneira de ser, da nossa maneira de fazer.

B!: E qual foi o divisor de águas para esta terceira fase do Grupo Corpo?
Foi quando começamos a convidar os compositores para criar. Isso aconteceu em 1992 com 21, com música do Uakti e Marco Antônio Guimarães. Demos um salto impressionante para nós porque eles vinham com ideias novas, que nós não tínhamos, e fomos nos deixando influenciar por eles. Então, a partir daí, nós começamos a criar uma linguagem própria, agregando elementos brasileiros às peças. Essas três fases eu acho que são muito claras na nossa trajetória, sendo que a dos anos 1990 foi a que nos fez ser quem somos mesmo hoje.
B!: Vou dar um passo atrás: você era bailarino e depois já assumiu o lado artístico da criação. Como é que foi essa transição?
Na verdade, quando comecei a fazer dança, logo de cara, conheci o Oscar [Araiz], e ia muito pra Buenos Aires, na Argentina, pra fazer aula com a companhia do Oscar, mas desde sempre queria coreografar. Comecei por conta própria, para companhias amadoras, para escolas, incluindo a nossa. Fui desenvolvendo ao longo do tempo mesmo. Como eu falei, os anos 1980 foram os anos de aprendizado total, por isso a passagem se deu de uma forma muito tranquila, porque eu queria mesmo era ser coreógrafo, mais do que ser bailarino.

B!: Acho fascinante quando a gente vê o conjunto, ainda mais do que os solos, como tudo é ligado. Isso está na música?
Sim, inclusive, a minha paixão sempre foi a música. Aprendi a coreografar ouvindo música e foi uma coisa muito relevante na minha trajetória, na minha carreira. Porque sinto que música e dança e coreografia, essa coisa espacial que você falou, tem que ser uma coisa só. Não tem que ser uma coisa superando a outra, elas têm que se irmanar. É a tentativa. Às vezes a gente consegue, às vezes não. [risos]
B!: Tinha uma época, e isso era bem um diferencial da dança clássica onde a narrativa era essencial, mas havia o “sinfônico”. George Balanchine, por exemplo, detestava que chamasse os balés dele de sinfônicos. Existe uma história, início, meio e fim, pra você, na sua cabeça, quando você coreografa uma sinfonia completa, ou é só sentimento?
História com início, meio e fim, não tem, mas existe uma ideia central, que eu persigo o tempo todo. Antes de começar, essa ideia tem que estar bem amadurecida, bem maturada para o trabalho deslanchar legal. Não acho que dança seja uma forma de arte que se preste muito à narrativa. Já que você citou Balanchine, ele falava: “dança não é o teatro, não é a palavra”. É preciso encontrar esse outro caminho, essa outra veia da dança, de forma que ela chegue às pessoas, mas sem estar contando uma história. Ela chega porque ela é fundamental. Mas, mais uma vez, às vezes a gente consegue, às vezes não consegue. Emocionar pessoas é muito difícil. Se você consegue fazer com que as pessoas sintam coisas novas, aí é o grande barato da dança.

B!: Quais foram os principais desafios nessas cinco décadas?
Convivência. O lado financeiro também é sempre muito difícil. São 22 bailarinos, todos têm carteira assinada, férias, 13º, plano de saúde e tudo. A gente sempre priorizou os bailarinos. Às vezes nos momentos mais complicados, quem ficava sem receber éramos nós, os sócios. Os bailarinos nunca. Eles são importantes. Primeiro eles, segundo eles, terceiro eles. Depois, quem sabe, a gente pensa em outras coisas.
B!: São cinco décadas e quantas gerações? Existem relações construídas, pessoais, ao longo dessa jornada?
Estou no meu terceiro casamento, fui casado com três bailarinas. [risos] Acho que isso já mostra alguma coisa nessa relação. Muita viagem junto, a convivência muito estreita, porque a gente sempre viajou muito. Às vezes nós passamos sete meses do ano viajando. Na estrada, essa convivência vai se estreitando, mas nem sempre é fácil. A base de tudo é o respeito, sabe? Se existe o respeito de verdade, as coisas são muito mais fáceis, são muito mais tranquilas.

B!: E existe algo de bastidores que tenha te marcado mais?
Houve uma situação em Lyon, na França. Às vezes nós fazíamos até três semanas de apresentações na Maison de La Danse — e fomos a única companhia do mundo que já fez isso. Mas aconteceu um caso que eu acho que é genial, que nos emocionou. No último espetáculo da temporada, Onkotô, assim que começamos, caiu a luz da cidade inteira. Teve um apagão em Lyon, que é raríssimo. Esperamos…e como não voltava, o público foi embora e sem ver a segunda parte. Então, o que nós fizemos? Íamos embora no dia seguinte de noite e decidimos fazer o espetáculo para quem quisesse voltar. O teatro avisou ao público, que voltou para assistir o espetáculo. Só que, em agradecimento por termos feito isso para eles, não sei como combinaram isso, todos levaram uma flor. Quando acabou, o palco ficou coberto de flores. Foi das coisas mais emocionantes que eu já vivi.
B!: Ia comentar que a resposta no exterior ao Grupo Corpo foi imediata. Sempre teve um “sotaque”?
É engraçado. Principalmente em Lyon. O Guy Darmet, que era o diretor da Maison de La Danse, dizia que com o Grupo Corpo ganhava muito dinheiro porque não precisava fazer cartaz, não precisava colocar anúncio, era apenas colocar na programação que esgotava em dois dias tudo. Vinte espetáculos, tudo esgotava em dois dias. A gente criou um público lá fora muito cativo.

B!: Eu diria que no Brasil também, né?
Sim, por aqui também. Onde a gente vai, lota, né? [risos] É impressionante, porque tem muitos anos que nós não nos apresentamos no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, mas fizemos isso por muito tempo e sempre esgotou. Houve uma pausa por causa da Pandemia de Covid-19, mas estamos retomando agora, inclusive a parte internacional. Agora, o pessoal está na França [conversamos no final de março]. Ficaram um mês, voltam, ficam uma semana, e depois vamos para os Estados Unidos.
B!: Gosto muito como vocês sempre montam a programação resgatando repertório e apresentando algo novo.
É, a ideia é essa mesmo: sempre que estreia um, buscamos outro que há muito tempo a gente não mostra no Brasil. Então nós vamos resgatando esse repertório e trazendo ele de volta, para não deixar ficar lá atrás, se perder lá atrás.

B!: Quais suas principais influências na sua criação além da música?
Olha, mais uma vez, eu vou atrás do Balanchine, porque quando eu comecei a fazer dança, eu era alucinado com ele. Via tudo. Outro que, pra mim, é o maior coreógrafo de todos os tempos, é o Jiří Kylián [bailarino tcheco de dança contemporânea]. Gosto também de Franco Dragone, que foi o cara que criou o Cirque du Soleil. Fiquei dois meses em Paris e trabalhei com ele, foi ótimo.
B!: Ao longo desses 50 anos, a dança evoluiu muito também. Houve uma adaptação? Como é que você olha para o cenário da dança contemporânea?
Eu acho que teve um crescimento impressionante, qualitativo também, não só quantitativo. Teve um crescimento muito grande. Começaram a surgir coreógrafos tão diferentes, foi um período muito fértil de criação. Principalmente nos anos 1970 e nos anos 1980.
B!: Existe um perfil de um bailarino do Grupo Corpo?
Não, não mesmo. São pessoas muito diferentes. A primeira coisa que a gente vê é a técnica clássica. Quando nós precisamos contratar alguém, as pessoas vêm, ficam três dias aqui, fazem aula, almoçam com a gente. As que têm uma técnica clássica, a gente pede que elas fiquem outros dois, três dias para aprender partes do repertório, para ver se saem. Porque é engraçado: tem pessoas com uma técnica fenomenal, mas quando começam a fazer as variações não sabem o que é norte e o que é sul. É impressionante como se perdem, acontece muito. E, ao mesmo tempo, tem outras que já têm um ouvido musical que tem a ver, porque tem muito trabalho que a gente faz demanda coordenação. E, obviamente, vemos a personalidade também. Como é que a pessoa se apresenta no palco e tudo mais. Não tem um biotipo específico.
B!: E qual é a rotina quando não está viajando?
De segunda à sexta tem aula de nove às dez e meia, tem uma pausa e às onze começa o ensaio que vai até às três. São seis horas corridas.

B!: Estar fora do eixo Rio-São Paulo foi importante para o Grupo Corpo?
Isso foi, de uma certa forma, até fundamental pra gente ter essa longevidade, sabe? Porque quando a gente começou, o fato de trabalhar em Belo Horizonte daquela época, em 1975, uma cidade muito mais pacata, nós acordávamos Grupo Corpo, almoçávamos Grupo Corpo, jantávamos Grupo Corpo. O foco era total, não existia uma dispersão que talvez existisse, por exemplo, em São Paulo, sabe? Isso ajudou muito a criar uma base bem sólida da companhia ao longo do tempo.
B!: Como é que surgiu o nome?
Na verdade, foi o Paulo que deu o nome, porque já éramos um grupo de amigos, que estávamos criando o grupo — fora os irmãos — todos juntos também. O Paulo saiu com essa ideia de que existe “Corpo de Bombeiro”, “Corpo Docente”, que são pessoas que trabalham tendo o mesmo direcionamento. Ao mesmo tempo é “Corpo” porque é dança também, sabe? Mas foi pensado mais no sentido de união mesmo. Corpo, um corpo só.
B!: E como é que é trabalhar com o irmão? Como é que é essa relação?
Ah, é difícil, é difícil. Eu evito muito discutir essas coisas. O Paulo é o Diretor Artístico, predetermina as coisas e pronto. De uma certa forma me retirei um pouco desse tipo de decisão. Evitamos o ponto de atrito que é muito fácil entre irmãos. A gente pensa de maneira diferente e ficou mais fácil depois que eu recuei.
B!: E nas reuniões em casa? Nos natais e reencontros em casa? Nada de dança, nada de trabalho?
A gente não encontra, não. Não tem reunião de família. Tinha quando meus pais eram vivos, mas eles já morreram há mais de 10 anos, então se perdeu esse espírito familiar…
B!: Como você vê a companhia daqui a 50 anos?
Você deve conhecer, claro, a Cassi Abranches. Ela dançou conosco durante 12 anos. Depois foi para São Paulo, dirigiu o Ballet da Cidade e tem uma forma de trabalhar bem parecida com a nossa. Então, a ideia foi trazer a Cassi para começar a assumir o meu papel.
Com 70 anos já é hora de baixar a bola e ela começar a assumir essa parte de criação. Ela e o meu filho, Gabriel, que é o responsável por toda a logística da companhia, de viagem e tudo, todas as montagens. Vejo o futuro na mão dos dois. Eu e a Cassi estamos trabalhando juntos, fazendo coisas a quatro mãos, um deles com Gustavo Dudamel. Está sendo muito gostoso, está sendo muito legal. É uma forma nova de trabalhar para mim e para ela. Mas tem dado certo, ainda bem!

B!: Como tem sido o documentário sobre os 50 anos do Grupo Corpo?
O filme faz um apanhado dessa trajetória e vamos fazer mais um livro também, sobre tudo que foi feito até aqui. E mais uma estreia com música da Clarice Assad, essa compositora brasileira que mora em Chicago e fez uma trilha super legal. A gente tá começando a pegar depois que a companhia voltar dos Estados Unidos. Porque eu inclusive não viajo mais com a companhia, né? Eu parei de viajar.
B!: Eu ia perguntar o porquê, se essa era uma das suas escolhas de não acompanhar. É muito puxado, né? É muito cansativo?
Eu viajei demais na minha vida inteira, né? Minha atual mulher parou de dançar há uns 10 anos e viajar sozinho vai cansando. Além de ter pânico de avião. Chega, não posso mais não. [risos]

B!: Você tem uma mensagem que você deixaria para os bailarinos que estão começando agora?
O campo de trabalho é muito pequeno, mas tem duas coisas que são fundamentais. Uma é estudar, estudar, estudar, estudar. E outra coisa, é muito fácil, principalmente nesse tipo de profissão, que a gente fica fazendo aula se olhando no espelho, é não se achar foda, é não se achar o máximo. Eu acho que é importante uma certa insatisfação consigo mesmo, uma força de correr atrás. Eu acho isso bem importante.
B!: É verdade, essa busca da perfeição é exatamente isso, né? A gente não pode… Porque o espelho.
É um vício, né?
B!: Tem algum compositor que você ainda sonha trabalhar que você ainda tem esse desejo de trabalhar, que você ainda não tenha trabalhado?
Compositor? David Byrne, do Talking Heads.

B!: E ele sempre esteve envolvido com a cultura brasileira!
Pois é, exatamente. Ele é muito envolvido e eu gosto muito do trabalho dele. As coisas que ele faz, os shows dele, são todos performáticos, mas não nos conhecemos.
B!: Jogar para o astral para juntar vocês. Seria algo incrível.
É, eu tenho vontade de trabalhar com ele! Imagina?