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‘Utopia Tropical’: um diálogo entre Noam Chomsky e Celso Amorim

No filme dirigido por João Amorim, os dois intelectuais refletem sobre o histórico de dominação norte-americana na América Latina

Por Humberto Maruchel
12 mar 2024, 09h00

Em 2017, durante um período de profundas transformações no Brasil e às vésperas de um novo capítulo em sua história, o cineasta João Amorim teve uma ideia. Naquele momento, a sociedade brasileira estava agitada, buscando compreender sua própria trajetória e, principalmente, os rumos que o país estava tomando. Isso implicava em entender a polarização e os confrontos entre diferentes espectros políticos, da direita à esquerda.

Para João, o tema era familiar. Como filho de Celso Amorim, diplomata e ex-ministro nos governos de Itamar Franco, Lula e Dilma Rousseff, ele decidiu reunir seu pai com um dos principais intelectuais da esquerda norte-americana: Noam Chomsky. A missão deu certo e ganhou forma através do longa Utopia Tropical, que estreou nos cinemas nacionais em 07 de março.

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Cartaz do filme “Utopia Tropical” (João Amorim/reprodução)

No documentário, produzido pela Amorim Filmes, Noam e Celso realizam uma meticulosa investigação sobre os cruzamentos históricos entre os EUA e o Brasil, com foco na influência e dominação norte-americana na América Latina. A partir disso, analisam as consequências, como ditaduras e dificuldades econômicas nos países.

“Hoje em dia, temos uma relação de controle que não se limita apenas à propaganda estatal, é muito mais complexa. Envolve mídias sociais, que criam bolhas, mídia tradicional, que exerce influência, e empresas com interesses econômicos”, relata o cineasta em entrevista à Bravo!.

Com uma abordagem moderna e dinâmica, as entrevistas são entremeadas por desenhos animados de César Coelho, e embaladas por canções de grandes nomes da MPB, como Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil.

O filme foi apresentado em diversos festivais renomados, incluindo o Festival do Rio, de Brasília, a Mostra de São Paulo. Além disso, recebeu o prêmio de Melhor Documentário no Caribbean Sea International Film. À Bravo!, João refletiu sobre as mudanças na política brasileira à luz da influência norte-americana.

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O que te levou à criação deste filme e colocar essas duas figuras frente a frente?

Bom, o Celso Amorim é meu pai (risos), com quem convivi até os 17 anos, exerceu uma influência sobre minha formação política. Morei muitos anos nos EUA, onde iniciei minha carreira e conheci o trabalho de Noam. Ele é reconhecido como um pensador de esquerda americano. Costumava discutir bastante com meu pai sobre Chomsky, embora ele o considerasse um pouco radical na época. Quando meu pai se aposentou pela primeira vez (risos) e após exercer o Ministério da Defesa no primeiro mandato da Dilma, começou a dar algumas palestras. Em uma delas, nos EUA, ele participou do mesmo painel que Chomsky em 2017. Valéria Chomsky, esposa de Noam e brasileira, possibilitou esse encontro. Quando soube disso, disse a meu pai que precisávamos fazer um filme. Foi quando conseguimos acessá-lo.

Na época, Michel Temer assumira a presidência e Lula acabara de ser preso. Queria conversar com ambos sobre a relação entre Brasil e EUA, principalmente. Tinham visões levemente diferentes sobre o papel dos EUA no golpe militar. Em 2018, Chomsky veio ao Brasil. Meu pai me avisou e sugeriu que eu fizesse uma entrevista. Captamos material pela primeira vez. O projeto foi aprovado no fim do ano em Brasília, mas ficou travado devido a diligências no projeto e com a O2, que seria a distribuidora. Conseguimos a liberação dos recursos apenas em maio de 2022. Sabia que não seria possível terminar o filme antes das eleições. Tivemos que mostrá-lo sem saber qual seria o resultado, cientes de que só ficaria pronto depois das eleições. Repensei a estratégia geral do filme, abordando de forma mais ampla, mostrando os ciclos de golpe e histórias de dominação ao longo do tempo.

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Cena do documentário “Utopia Tropical”, com Noam Chomsky e Celso Amorim (João Amorim/reprodução)

E a entrevista ocorreu em dois momentos?

Tivemos uma conversa em 2018, antes do projeto ser aprovado. Depois conseguimos filmar novamente em junho de 2022. Foi uma conversa individual com cada um e outra virtual com ambos.

Sua abordagem e preocupações mudaram muito nesse período de quatro anos?

Acho que evoluíram muito em relação ao filme, buscando algo que nos fizesse refletir e funcionasse como um filme histórico, que pudesse ser visto daqui a dez anos para entendermos essa fase, e não algo muito pontual. Trata-se das ideias desses pensadores, da análise que fazem do mundo e das relações.

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O tipo de dominação dos EUA já não é mais o mesmo. Hoje parece haver mais suspeita em relação ao papel dos EUA nos desdobramentos mundiais. Você acha que mudou muito do que era na década de 1980 para cá?

Acredito que nos anos 1970 houve uma retomada do poder dos EUA no mundo dos negócios e na capacidade de afetar globalmente. Após a crise de 1930, a guerra e o pós-guerra, os EUA adotaram uma política social-democrata, com um Estado mais presente e garantindo direitos. Houve avanços trabalhistas significativos. A partir do fim da Guerra do Vietnã, houve uma mudança para o modelo neoliberal. Desde 1945, o poder do Estado americano mudou. Eles tinham controle de 50% do PIB global, mas agora esse controle é mais exercido pelas corporações do que pelo Estado. Diminuiu e tornou-se, de certa forma, um avalista das empresas.

Hoje, representa muito mais as big techs e as empresas de petróleo do que o povo americano. A intenção de dominação continua clara, mas agora é exercida com influência do grande capital mais do que do Estado. Por trás das guerras no Oriente Médio e na Ucrânia, há uma máquina de venda de armas do complexo militar-industrial, que é uma grande parcela do PIB americano. Eles lucram com a guerra. Empresas podem decidir que uma guerra é interessante. Tudo isso é determinante na política externa norte-americana e nos afeta muito.

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Desenhos animados de César Coelho no documentário “Utopia Tropical” (João Amorim/reprodução)

E os personagens nesse jogo mudaram?

Chomsky fala que nos anos 1970, os EUA chegavam nos países, derrubavam governos e instalavam ditadores. Agora não é mais tão óbvio. Existe um trabalho de manipulação de massas, de criação de situações que levam à corrupção. Mudou muito. Até a igreja, principalmente as evangélicas neopentecostais, desempenha um papel forte sobre a população, muitas vezes maior do que a mídia. Muitas pessoas no Brasil votam no candidato que o pastor indica. É um espaço que a esquerda deixou de ocupar. Onde temos ações comunitárias de esquerda que abraçam a população que está na rua, do cara que agride a mulher? Muito pouco. A igreja meio que salva o cara, ele para de beber, para de agredir a mulher, arruma um emprego e depois vota no candidato que o pastor indicou.

Hoje em dia, temos uma relação de controle que não é mais apenas propaganda estatal, é muito mais complexa. Envolve mídias sociais, que criam bolhas, mídia tradicional, que exerce influência, e empresas com interesses econômicos.

No início do documentário, Noam compara a década de 1930 com a atualidade, dizendo que, apesar da pobreza e das dificuldades, havia muita esperança e um esforço comunitário. Você acha que chegamos a uma era de desesperança?

Sou um eterno otimista, mas é muito difícil. Acredito que as novas gerações estão cada vez mais dominadas e alienadas pela máquina. Hoje, estão muito mais imersas na bolha digital e, simplesmente, desconhecem o problema. Além daqueles que perderam o otimismo. Se nos rendermos, é como jogar a toalha e deixar de desempenhar um papel na sociedade. Trazer essas informações à tona é um caminho para encontrar brechas. Sou contra esse comodismo, gosto de cutucar as pessoas sobre o papel na vida.

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Noam Chomsky, filósofo, sociólogo e ativista (João Amorim/reprodução)

Quais você acha que são as brechas individuais?

Acredito que existem algumas e houve algumas evoluções também. Há 150 anos, as pessoas eram vendidas e escravizadas, as mulheres não votavam. Toda a evolução do movimento LGBTQIAP+ foi transformadora e acho que isso não tem volta. Pessoas indígenas têm muito mais voz do que tinham há 10 anos. Temos duas ministras indígenas. Acredito nessas mudanças. O MST é uma brecha, produzindo a maior quantidade de arroz orgânico. É um dos poucos movimentos que abraçam as pessoas como a igreja evangélica faz. Tem um centro comunitário, cooperativas. É um mercado que não é baseado no lucro individual, mas considera o coletivo. Essas brechas existem. Isso ao nível nacional, mas globalmente há um processo de reestruturação, como a queda do domínio americano. A ascensão dos BRICS deixa isso muito claro, incomoda.

Vivemos um momento de grandes desafios, mas também mais multipolar do que em qualquer outro momento da história. Forças do Sul Global estão tendo uma voz que está reverberando no mundo. Imagine, há 30 anos, a África do Sul entrando na Corte de Haia contra Israel, era inimaginável.

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Desenhos animados de César Coelho no documentário “Utopia Tropical” (João Amorim/reprodução)

Gostaria de perguntar sobre sua relação com a ilustração. Foi algo no filme que tornou tudo ainda mais interessante.

Desde o início, tivemos o desafio de linguagem devido às limitações do Chomsky. Não podíamos simplesmente sair com ele pela cidade. Sabíamos dessas limitações, especialmente em 2022, no pós-pandemia. Precisei ficar isolado durante cinco dias. Fiz a entrevista com ele sozinho, sem a equipe. Tudo isso afetou o tipo de material que conseguiríamos. Com Celso, teríamos mais liberdade, mas não faria sentido adotar uma linguagem com um e não com outro. É um filme sobre ideias.

Buscamos apresentar os personagens, conectá-los, usando muitas imagens de arquivo, participações em programas. E aí, entrou a animação. Comecei minha carreira como animador, trabalhei muitos anos no Brasil e nos EUA. Tornei-me diretor de animação e participei do filme Chicago 10. Esse filme me abriu os olhos para o uso de animação em documentário. Sempre usei desde então. Como é um filme sobre ideias complexas, a animação desempenha um papel em simplificar e traduzir esse conteúdo. Até para entender a relação do Brasil como “jardim” dos EUA. Cesar Coelho foi responsável por todas as animações. Fizemos um mini roteiro do que a animação precisava ser, nem que fosse um mini parágrafo de cada sequência de imagens.

Você falou sobre a alienação. Acha que a alienação que vivemos atualmente é maior do que nos anos 80 ou 90?

Acho que os instrumentos são mais sofisticados. Tenho uma batalha diária com meus filhos adolescentes sobre o uso de telas, mas eu também uso. Isso não existia. A mídia tradicional sempre exerceu influência, mas nem todos estavam conectados. É mais sutil agora, você não percebe a manipulação. Acredito que esse poder é exercido globalmente. Tem o lado bom da globalização, mas também a dominação mundial das redes sociais e das big techs.

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Celso Amorim, professor, acadêmico e diplomata (João Amorim/reprodução)
Utopia Tropical

João Amorim
2023. Brasil.
77 minutos

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