Biografia de Nelson Freire é lançada no 80º aniversário do pianista
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Um dos maiores pianistas brasileiros, o mineiro Nelson Freire (1944 – 2021) colecionou feitos impressionantes ao longo de sua trajetória, mas sempre evitou os holofotes — e concedeu raras entrevistas durante sua carreira.
O jornalista francês Olivier Bellamy — autor da biografia sobre a pianista Martha Argerich e também de livros sobre música erudita como Dictionnaire amoureux du piano e Un hiver avec Schubert — foi um dos poucos que conversou com o intérprete em mais de uma ocasião. O resultado desses encontros está agora compilado na biografia Nelson Freire: o segredo do piano (DBA Literatura, R$ 75), que será lançado no Brasil dia 1/2. 2024 seria o ano em que o artista completaria seu 80º aniversário.
Originalmente publicado em francês com o título Nelson Freire: le secret du piano, o texto foi traduzido por Julia da Rosa Simões, a mesma responsável pela tradução de O Mundo de Sofia em Quadrinhos e A Odisséia do Cinema Brasileiro, ambos publicados pela Companhia das Letras.
Ao longo de 232 páginas, Olivier Bellamy entrega um resgate sensível da trajetória de Nelson Freire e descobrimos detalhes curiosos sobre a vida íntima do artista, como quando venceu o Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro e ganhou uma bolsa concedida pelo então presidente Juscelino Kubitschek para estudar no exterior.
O repertório de Freire era variado e incluia Beethoven, Liszt e Debussy entre suas referências, sem, no entanto, deixar de lado conterrâneos, a exemplo de Heitor Villa-Lobos. “Nelson Freire é um daqueles cometas que aparecem a cada cem anos”, definiu Tom Jobim certa vez.
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Estados de espírito
Sua carreira tem altos e baixos. Nelson toca com grandes orquestras, em salas prestigiosas, mas de maneira irregular. Ele diz que isso lhe convém. O público é mais ou menos fiel. Os concertos com orquestra funcionam bem, ele goza da estima dos músicos e obtém um sucesso merecido. Os recitais, porém, não conseguem encher as salas. Na série de concertos Piano 4 Étoiles, ele dá um único recital durante os anos 1980 e 1990.
Nelson toca Chopin e Debussy no Théâtre des Champs-Élysées para uma plateia esparsa. Ele está ali porque aceitou um convite, mas alguma coisa resiste sem que se saiba direito o quê. Em 1981, ele toca os Estudos sinfônicos de Schumann no programa de Jean-Michel Damian na emissora France Musique.
Em 1984, de novo Chopin no Théâtre des Champs-Élysées. Nelson Freire ainda não é uma estrela. Ele é apenas um grande artista. Passar o tempo em aeroportos, quartos de hotel e precisar responder sempre às mesmas perguntas lhe parece um caminho lamentável em direção à música. A perspectiva de dividir uma boa refeição com amigos e ouvir um bom disco degustando um ótimo vinho parece diverti-lo mais do que percorrer o mundo. Se não temos tempo para viver, não temos mais nada a oferecer ao público, ele acredita.
E ele não agrada a todos. Nelson nunca toca com a Orquestra de Paris, por exemplo. Daniel Barenboim, que com frequência convida a compatriota Martha Argerich, nunca fará um gesto em sua direção. Nelson não se queixa. Em contrapartida, seus amigos se irritam com seu relativo purgatório em alguns lugares. Uma noite, em Caracas, Nelson bebe um pouco além da conta e sai de sua reserva. “Me diga o que está acontecendo comigo”, ele pergunta bruscamente a Lyl Tiempo. “Como assim?”, quer saber a amiga. “Você sabe, minha carreira, é estranho, não?” Ele se sente respeitado, mas não amado. Os dois conversam por uma boa parte da noite. Por que Martha desperta tanto fascínio no público? Por que ela é solicitada em toda parte e ele não? “Enfim, o que ela tem que eu não tenho? Me diga!”
Assim como o amor, a carreira é um mistério. A parte racional age menos que a grande parte irracional. Existem amores à primeira vista que não pensam no amanhã, longos relacionamentos tranquilos e fiéis, paixões tardias depois de anos de indiferença. Existem artistas de quem gostamos imediatamente e aqueles que se revelam com o passar dos anos. Ninguém é senhor do tempo. Há aqueles cuja personalidade fascina tanto quanto a maneira de tocar e aqueles que admiramos por sua arte. De resto, a histeria em torno da pessoa de Martha é um dos motivos que a levarão a parar de dar recitais sozinha. Se Nelson às vezes invejou a atração despertada por sua amiga sobre o público, ela
de bom grado aceitaria inverter os papéis. Sabendo que Nelson não obtém o sucesso que seu talento merece, Martha Argerich faz de tudo para ajudar o amigo.
Quando a Philips lhe pede autorização para comercializar a gravação do Concerto n. 1 de Tchaikovski apresentado em Munique sob a regência de Kirill Kondrashin, ela responde: “Desde que eu possa gravar um recital com Nelson Freire”. Em 1982, eles viajam para La Chaux-de-Fonds para gravar um primeiro disco a dois que se tornará mítico. No programa: Suíte n. 2, de Rachmaninoff, Variações sobre um tema de Paganini de Lutoslawski e La Valse de Ravel. A capa do disco mostra os dois frente a frente, de perfil, em plano americano, com uma mão no quadril e a outra no piano, como dois toureiros prontos para entrar na arena ou para tirar a roupa com selvageria.
A fotografia será julgada sugestiva demais na edição francesa, espantosamente pudica, no início dos anos Mitterrand.