Cazuza revive em dois lançamentos literários
O músico e poeta é homenageado nos livros "Meu Lance é Poesia" e "Protegi Teu Nome por Amor"
Neste mês, Cazuza vive uma dupla homenagem com os lançamentos dos livros “Meu Lance é Poesia” e “Protegi teu Nome por Amor” (ambos da editora WMF Martins Fontes). O primeiro reúne poemas do músico, organizados cronologicamente. São reúne 238 poesias, dentre elas 27 inéditas, que trazem um olhar íntimo sobre sua evolução como escritor. A publicação organizada por Ramon Nunes Mello traz ainda ilustrações criadas por Daniel Kondo.
O segundo, por sua vez, é uma fotobiografia, com imagens compiladas por Ramon Nunes e Lucinha Araujo. A obra traz mais de 700 retratos inéditas que evidenciam sua trajetória pessoal e profissional, desde a infância até o sucesso musical e sua luta contra a AIDS. A publicação também conta com depoimentos de amigos e familiares. Há artigos de Caio Fernando Abreu, Nelson Motta, Karina Buhr e do próprio Cazuza.
Cazuza foi um dos grandes ícones do rock nacional nos anos 1980. Nascido em 1958 no Rio de Janeiro como Agenor de Miranda Araújo Neto, destacou-se inicialmente como vocalista da banda Barão Vermelho, onde escreveu hits como “Pro Dia Nascer Feliz” e “Bete Balanço”.
Após sair da banda, ele seguiu uma carreira solo bem-sucedida, lançando músicas que se tornaram clássicos, como “Exagerado”, “Ideologia” e “O Tempo Não Para”. Suas letras, marcadas por forte crítica social, ironia e introspecção, refletiam tanto suas experiências pessoais quanto a realidade política e cultural do Brasil da época.
O músico foi uma das primeiras figuras públicas brasileiras a assumir que era HIV positivo. Ele faleceu em 1990, aos 32 anos, em decorrência de complicações da doença, deixando um legado artístico que continua a influenciar gerações de músicos e admiradores.
Leia com exclusividade um dos poemas do livro, “Cineac Trianon”, que se refere ao nome pelo qual Cazuza costumava chamar a casa de sua família em Petrópolis (RJ). O poema inspirou o livro “O homem que amava rapazes & outros ensaios” (2002), do ensaísta Denilson Lopes.
“Cineac Trianon”
Procurando um lugar ao sol?
todas essas pessoas que são jogadas na sociedade
e que aprenderam desde criança
que a farsa dá grana
aonde será que elas estão indo?
te olhando assim de repente eu pensei:
Quem é o mais covarde
o médico alienado
ou o louco consciente da enfermaria n.6 do Tchekhov,
[lembra?
aquele romance que eu li e te pedi pra ler também
mas você não leu porque não teve saco.
Será que há uma saída?
eu me respondo sempre
que talvez não hoje
que talvez seja por isso que as pessoas
brinquem de cabra-cega o tempo todo,
porque são inteligentes e
sabem que não há
saída.
Um dia no meio dessa loucura toda
eu encontrei uma pessoa que tinha uns
olhos claros
que conversava sempre olhando o chão, numa
timidez
e ingenuidade parecida com a dos pássaros
que dificilmente nos encaram
“O amor é o ridículo da vida.”
Porque nós sempre procuramos nele
uma pureza que é impossível conseguir
se você já perdeu.
A vida obriga as pessoas mais sensíveis
a perderem a ingenuidade
mas uma vaga ideia de paraíso
nos persegue como borboletas
que só vivem 24 horas.
Essa impressão
de que você está me olhando,
secretamente me quer,
essa loucura tá me acabando!
Eu nasci numa sexta-feira santa,
era noite.
Eu me debati durante nove horas e nasci
ISSO É UMA VERDADE
Eu morro de medo de solidão
a que certos intelectuais precisam se
entregar
para produzir alguma coisa mais ou
menos profunda.
Ficar um dia sozinho me leva à loucura
convívio social também.
Ao mesmo tempo eu temo a loucura e
vou vivendo assim
feito uma bola entre duas raquetes de
frescobol.
Eu não possuo nada que seja meu.
Mesmo assim algumas pessoas
gostam de mim e me procuram porque
são parecidas comigo
e por isso me dão medo.
A simples imagem de um pássaro
sentado num sofá
olhando pro peito com vergonha,
me incendeia o corpo todo
e me faz viver.
Talvez se eu escolhesse um mundo
e me entregasse a ele cegamente,
talvez eu me transformasse
numa raquete…
A poesia é linda porque nela tudo cabe,
porque não é certa nem errada.
Mesmo eu sendo um anacronismo,
me sinto poeta.
Noite após noite
eu me consumo em amores impossíveis,
numa forma de encarar o amor
que podia ser definido como uma punheta
sem fim.
Apesar de ter lido vários ensaios que o
verdadeiro amor
é aquele que nasce das duas partes,
num movimento matematicamente feliz
mesmo já tendo feito análise
e descoberto o sentido da palavra carência
mesmo assim eu vejo um pássaro
que está prestes a voar.
Todo amor não correspondido é careta
e eu sou um caçador solitário
que um dia vai morrer de fome
por sentir pena dos bichinhos
e vacilar na hora de atirar.
E por viver na floresta
em que a única profissão possível
é a de caçador.
Um dia o homem
foi condenado a mentir
e isso se tornou comum
que nos tornamos felizes,
apesar de…
O meu apesar é existirem tantas
donas de casa, empresários,
comerciantes.
E sou feliz, às vezes,
por preencher folhas em branco movido
por paixões ridículas.
O simples fato de estar amando
uma pessoa que conheci há duas horas atrás
me leva a questionar a razão
de termos um cachorro
e o levarmos todos os dias à rua
para que ele satisfaça
suas necessidades naturais.
E que, certas
pessoas, por serem pássaros,
nos induzem a voar.
Agora o pássaro
voou de novo não sei pra onde
e a mediocridade se apoderou da sala
Eu sou tão infeliz
que seria capaz de cometer os atos mais
baixos
pelo simples prazer de me sentir vivo.
Ele agora passeia pela casa.
Deve estar procurando,
procurando alguma coisa.
Eu entro e saio do banheiro
Sem razão nenhuma
me olho no espelho, ajeito
o cabelo,
me desespero em pensar que é loucura.
Temo me transformar num professor Aschenbach
aos 21 anos de idade.
É tempo de ser Tadzio na minha vida,
mas eu quero a riqueza de ser
grande o bastante
para não temer o ridículo.
Talvez esteja lendo
muitos romances russos e alemães
do começo do século
e por não ter personalidade esteja
confundido as coisas.
Ontem me apaixonei por uma moça de 19 anos
mas a paixão passou
depois de algumas horas juntos,
passeando pelo Rio.
Ela era real demais e amava o pai.
Agora eu amo a sua imagem
e sonho com ela.
Sonho com nossa casa
e nossos filhos que nunca vamos ter.
Agora eu amo o irmão da moça de 19 anos,
que tem 17.
E que é pássaro encabulado.
Ele, como o anjo louro,
é a imagem de alguma coisa que
procuro
desesperadamente sabendo que,
nunca, nunca neste mundo, vou
encontrar.
A imagem da paixão do Aschenbach do Mann,
é igual minha imagem de
adolescente retardado aos 21 anos.
Embora essas coisas pareçam ser bem
antigas possuem algum espírito,
é estranho o fascínio que elas me dão.
É com o mesmo fascínio que ouço
blues e boleros horas a fio e que leio
antigos romances, romances… e poesia beat.
Serei mais um
“quem eu quero não me quer quem me
quer eu mando embora”?
Billie Holiday cantando dá uma
sensação de exata
ignorância com o tempo real de sua
existência.
É triste sensação
de haver perdido o trem
e ter muitas malas pra carregar.
(Cazuza, 1989)