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Palavras dadas

Leia a coluna de estreia da autora e atriz Elisa Lucinda sobre o colo lírico da poesia, a magia das palavras e o prazer da escrita como ato de sobrevivência

Por Elisa Lucinda
Atualizado em 7 ago 2024, 11h51 - Publicado em 5 ago 2024, 16h30
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Palavra fruta do conhecimento (colagem com imagem de domínio público / Biodiversity Heritage Library/Redação Bravo!)

Aprendi cedo a ver a palavra como se eu pudesse tocar nela. Tratando-a como o mais concreto dos substantivos abstratos. Como fui imersa nela de maneira muito lúdica realizei ainda pequena um país só delas. Nítido, na minha frente. Palpável. Apesar das nefastas camadas racistas da obra de Monteiro Lobato, seu livro “Emília no país da gramática” foi talvez determinante para semear em mim a ideia deste país imaginário de palavras. Um lugar lindo onde vivem os verbos, os pronomes, sujeitos, adjetivos.

Fui criada numa casa em que a palavra cantada ou falada tinha poder, protagonismo. Eram imagéticas, de modo flagrante. E era como se eu as visse. Como se andassem. Meu pai, o exímio advogado revolucionário, Lino Gomes, costumava corporizar, humanizar todas as figuras de linguagem, por exemplo. E parecia que, se antes eu já imaginava os substantivos com pernas, mais tarde não foi nada difícil imaginá-las como senhoras: dona Metáfora, senhora Hipérbole, tia Metonímia ou vovô Pleonasmo.

Desenvolvi também uma imensa admiração pelos coletivos. Que chiques! São palavras singulares traduzindo comunidades inteiras, representando-as. E não têm o mesmo prefixo do objeto singular que aquela palavra designará no plural. Um monte de peixes não é peixarada, cardume. Cresci correndo solta no país desta beleza. Sou aquele ser estranho que ama análise sintática. Compreendo e até me comove a vulnerabilidade de uma oração subordinada e sua profunda dependência da oração principal.

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(Jonathan Estrella/divulgação)

Se pensarmos bem, a palavra é mesmo um substantivo abstrato que tem poder de ação. E se faz concreto. Se alguém disser, muito perto de meu rosto, que vai me dar um tapa na cara, talvez eu revide. Mesmo não sendo dada a porradas físicas. É que a palavra violenta dita assim tão de perto, queima o rosto, toca-o, fere-o, bate, tem força de gesto. Podes sentir, meu querido leitor, o teor do que escrevo agora? Do mesmo modo se alguém me disser, muito perto de minha boca, que quer um beijo meu ou que vai me beijar…já é meio beijo. A palavra é que começa o beijo. É a cabeça do gesto.

Dito isso, declarado aqui meu amor humanístico pelas palavras, confesso minha alegria esparramada nesta página ao abrimos hoje esta coluna que vem nascer neste honesto inverno. Frio. Coerente. Honroso. E numa revista que sempre admirei. Grande dia o de hoje. Há felicidade em mim. Estou apaixonada nessa estreia. Me aproveito da Gênesis descrita acima para olhar o cotidiano com olhos de literatura viva. Uma certa oralidade se inscreve tão antiga em minha alma que gerou em minha mente um caderno de pensamento onde um certo jornalismo poético, uma certa cronista de prosa e verso e ao mesmo tempo menestrel, anota diuturnamente a experiência do que vive, experimenta, arrisca, teme, vê.

Há um caderno de mil folhas aqui, muito mais. Infinito e virtual, tenho-o exposto e bem guardado na nuvem da cabeça, o céu interior, tela por onde espio e anoto acontecimentos.

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Como fui exposta muito cedo ao colo lírico da poesia, me acostumei desde menina a achar a palavra mágica. A vê-la. A palavra janela pinta uma janela imediatamente na mente, geralmente azul. Ou amarela. A poesia é a maior tradutora da tridimensional realidade, por isso dá conta de seu conteúdo pra todos os lados. Entrega. Realiza o transporte. Se incumbe de derramar um crepúsculo com toda sua sofisticada paleta de cores sobre uma simples página branca com suas aparentemente monótonas linhas. De repente, o poema se organiza e arde aquele laranjal do arrebol na nossa cara. O poeta captura nosso coração. Guardou um por de sol dentro de um livro e incandesceu a noite.

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(Arte/Redação Bravo!)

A fome, o parto, a morte, a guerra, a miséria, a maldade, o amor, a natureza, a saudade, tudo isso quem me revelou primeiro foi a horda dos poetas. Foram eles com suas resmas onde pintaram palavras para descrever tão palpavelmente dores, vitórias, esperanças, feridas, encontros e despedidas, que é como se a memória dos poemas que trago desde a infância guardados em mim, fossem, não poemas, mas sim histórias vividas, acontecidas em mim. Sei que não. Trata-se de um acervo adquirido. Mas moram aqui com a mesma textura da película do sonho, por isso parece que os vivi.

Tal confluência na vida de minha menina fez nascer essas anotações, essa bancada, essa escrivaninha que trago no pensamento anotando opiniões que acredito possam ser consideradas pelo mundo quando daqui saírem. Não quero me omitir. Acho que ninguém deve fazê-lo. Muitos males são denunciados, investigados e evitados por conta do fim do silêncio das vítimas que protegiam o agressor. Muitas vezes não nos posicionarmos é omissão mesmo, com consequências trágicas até. É atitude. Pode querer dizer que não me importo. E isso é desprezar o irmão. Não é natural não dizer o que se pensa, penso eu. Falaríamos não fosse pelo medo, pelo receio de sermos julgados, por temer arrumar confusão.

O problema é que o silêncio pode também levar os outros a nos confundirem com os vilões. Se eu fosse um homem e um homem hétero, me apressaria em mostrar de cara para a mulher, que não sou aquele cara bobo da quinta série, que não sou um abusador, me apressaria em deixar claro que condeno quando meus iguais matam suas companheiras e que sou incapaz de machucá-la.

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(Jonathan Estrella/divulgação)

Do mesmo modo, se eu fosse branca também me adiantaria pra não ser confundida com uma pessoa racista. Seria muita humilhação. Procuraria me educar, completar o déficit que há na formação oficial ocidental de minha geração e das gerações que a antecederam, em que ficamos reduzidos ao restrito saber europeu dominando o ensino. Buscaria o letramento racial e me inspecionaria intelectual e emocionalmente pra ver se não estou reproduzindo em palavras, hábitos, costumes, bolhas, ações e omissões, o racismo que penso combater. Repararia bem se eu não trouxe para minha casa os costumes da casa grande, de explorar gente, destratar e ofender.

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Portanto, aproveito este encontro mensal como uma tribuna, um lugar pra compartilhar tais digressões, tais despretensiosas reflexões, páginas desse caderno que talvez possam servir ao menos como testemunhas de um tempo e seus matizes.

Tudo passa. É bom anotar o que importa. Será chamado de memória se puder chegar adiante. Nossa digital, ou seja, a impressão das marcas que fazem o desenho na epiderme de nossos dedos, conta no final das contas. Cada um sendo um aumenta a variedade da contribuição de olhares sobre o mesmo mundo. Amplia a visão. Então tá combinado. Pode ser que se encontre aqui um poema, uma crônica, uma prosa em forma de diário, ou até um poema em forma de canção.

Não importa, será sempre meu caderno sincero e aberto aqui para desfrute de todos que aqui vierem beber.

Quem espreita tudo e nele escreve acredita em palavras como companhias e que, vivas que são, podem produzir epifanias, novas sinapses, revoluções. Acontece comigo. Muitos autores iluminaram e iluminam a minha vida inteira. Sabem mover as palavras. A magia depende da escolha delas, do tipo de agrupamento, do rumo que o tecido toma produzindo encantamento. Enfim, o que sei eu? Escrever é acender uma lanterna na estrada escura, esculpir uma partitura, um caminho de símbolos, traços, significados onde antes não havia nada, e vai literalmente fazendo o caminho ao caminhar.

Sempre vi a literatura como a arte de me dar prazer. Tanto como produtora dela quanto como leitora. Sempre gostei que meus pais, as professoras, os mestres da vida, os livros, a escola, os amigos e as canções me contassem histórias. Depois as tvs, os filmes, as séries, os teatros. Essa alcateia de enredos me distrai, me acalma, me representa, me entretém. As revelações e as inquietações de uma podem explicar coisas. Agigantam questões com a liberdade das ficções. Vão longe.

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(Jonathan Estrella/divulgação)

Aqui, a partir de agora, me correspondo diretamente com você meu leitor tão considerado, meu querido destinatário das segundas. Pra mim, escrever histórias, contar casos, piadas, fotografar impressões em formas de poemas, contos, crônicas e romances é condição sine qua non de sobrevivência. E como traz prazer! Em nada me sacrifica. Dá um trabalho gostoso. Se tornou um jeito de olhar a vida, um observatório permanente cujo relatório se dá em forma de arte.

Pouco se trata o escritor como artista: “Eliana Alvez Cruz lança seu mais novo livro hoje. A artista estará no espaço cultural…”   Nunca vi esta notícia dita assim. Mesmo sabendo que não basta ser alfabetizado para se ser escritor, ainda assim a gente esquece que se trata de um artista, sem contar que há vários casos de versadores analfabetos e grandes compositores com pouco estudo formal ou nenhum. Mistério. Acho bom no entanto refletir sobre este belo ofício. Coisa importante em qualquer profissão é que ela possa ser nascida de um dom. Aí, ganhar dinheiro com aquilo vira realmente uma benção. Um Axé.  Amo fazer isso e ainda me pagam?! Essa deveria ser a base lógica do mercado de trabalho.

Quando me perguntam se me custa ou me sacrifica escrever, respondo que não, porque realmente me sinto com esta habilidade. E habilidade é uma tendência, uma facilidade, uma ladeira. Aquilo te leva inevitavelmente para aquele centro gravitacional do dom.

Escrevo com minha alma, com meu corpo, com minhas ideias, como minha emoção, com a história coletiva que me compõe, com a memória e com a esperança de ajudar a melhorar o jardim do mundo de onde brotamos sem parar.

Aqui neste caderno que trago na cabeça vou escrevendo sem esforço em pensamento o que vejo. Quieta. Muda. Ninguém sabe que há uma escrivaninha aqui. Um silencioso e volumoso caderno que não ocupa espaço físico porque tem presença luminosa que só ganha corpo quando acessada. Tal qual um grande tabuleiro na mesa da vida, cada palavra é uma carta do jogo. Na primeira segunda de cada mês porei aqui minhas cartas na mesa no jogo de abre caminhos e sua leitura é democrática. Vai depender do olho que ler.

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Será uma conversa a partir deste falar. Afinal, escrever é um jeito lírico de não morrer ao se entregar.

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Elisa Lucinda, inverno de agosto sobre tudo, 2024

“Meu Caderno de Pensamentos” é uma coluna mensal assinada publicada sempre na primeira segunda-feira do mês

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