Prazer, Luana Carvalho
A compositora, poeta, escritora e cantora brasileira faz seu texto de estreia como colunista da revista Bravo!
Se olhar ao redor vai ver que é bonito. Não há céu mais canalha que a madrugadinha. Os pássaros adiantados das 4 da manhã, eles acham muita graça da página vazia. Na esquina há ninguém esperando por mim. Ninguém por detrás da samambaia, no escritório. Meu pai me deu um nome bom. Mas há ninguém a essa hora pra chamar meu nome. Escrever é uma noite silenciosa. Sinto vergonha dos objetos a testemunharem meu fracasso enquanto passam as horas, enquanto os pássaros. É uma questão de sobrevivência, lhes digo. Eles riem. O cursor piscando é uma pessoa me olhando de viés. Tenho medo de gente. Porque temo o que amo demais. Da minha mesa vejo o piano e a máquina de costura. Eu poderia estar fazendo todas as outras coisas. O Morro Dois Irmãos começa a definir o céu. Os postes se apagam, os guardas cochilam, o vento macio na copa das árvores. Folha treme e isso é um alívio para os covardes.
O problema não é você, sou eu. Mas sobretudo o meu país. Meu trabalho não é mais ou menos digno que o de um motorista de ônibus ou um pedreiro. Não é mais ou menos importante. Construir parede, destruir parede, conduzir pessoas. Levantar edifício, transportar uma casa ou um fuzil, escrever um livro. É tão determinante erguer um gesto quanto demoli-lo. Na mesma proporção, escrever ou apagar. A História. Mas minha pátria não pensa assim. Minha pátria nega pão aos operários, nega leite aos seus poetas, nega teto à sua ancestralidade. Os milicianos têm mansões e seus filhos, cavalos.
Falta-me um cigarro no canto da boca. Falta-me o hábito que nunca tive. Um trago com Cartola, dois com Krenak, uma reza para Nego Bispo (que perdemos no último dia 3). Viver, beber, fumar, foder, folhear, morrer. Tudo requer manuseio. O que fazer com as mãos, nunca sei de fato. Sei que quando espremo um limão com a direita, a esquerda faz o mesmo movimento só que sem limão. Falta-me sobretudo um estômago que suporte as bofetadas da cafeína, do vinho, do chope de tardinha, da falta de sono. Se não é o copo, são os mosquitos que entram pela boca, igualmente alucinógenos. Ao menos ainda lhes cuspo, se porventura, os mosquitos. Melhor assim. Muitas coisas viram verso dessa maneira. Ou, na pior das hipóteses, um post. Escrever sobre escrever, essa coisa ordinária que nem Compadre Washignton ousaria defender.
Enquanto luto contra o Vale do Silício pra me concentrar, há uma guerra acontecendo no meio do mundo. Há 75 anos matam-se pelo mesmo motivo: território. Milhares de inocentes sendo exterminados exatamente agora, incluindo bebês. Em sua maioria, minorias. Há outra guerra acontecendo bem aqui do nosso lado. Há 523 anos matam-se pelo mesmo motivo: território. Milhares de inocentes sendo exterminados exatamente agora, incluindo bebês. Em sua maioria, maioria mesmo: pretos. Mas meus compatriotas estão mais preocupados com a guerra de lá. É curioso o efeito dos oceanos nas pessoas. Quanto mais distante a tragédia, mais sentem-se atingidas. Acho que é porque aí não há muito o que fazer, é uma Rocinha que não está ao alcance dos olhos, a gente solta um post revoltado e vai comer sushi. Combinado executivo.
Falo, mas é pelo tanto que gostaria de estar calada. Escrever é outra coisa. Irrompe as paredes da minha casa para que o mundo entre devagar. Devagarinho. Tudo meu demora. Dona Ivone é minha gira e nada me faltará. Mas uma hora eu chego. A escrita é a presa que ofereço aos predadores da minha solidão. Não há gentilezas. Escrevo pra fora como quem cozinha ou costura pra fora. Para que continuem felizes e vis, e pensem em mim de vez em quando. É preciso saber hospedar a desgraça da gente. Se há mais de uma pessoa na casa ou uma só pessoa, há a Humanidade inteira na casa. Também as páginas quando se enchem de palavras vão-se tornando Humanidade. É preciso coexistir com espaços profundamente vazios. Diariamente. O corpo deserto avançando em todas as frentes. A palavra precisa do nada e “nada é suficiente”, já disse Daniel Maclvor na peça divinamente interpretada por Drica Moraes e Mariana Lima, dirigida por Enrique Diaz em 2013. Uma coisa que aprendo com o bom teatro é largar de mão, deixar a vida escorrer por ela. Pra ver o que acontece. O teatro pode ser um puta susto, Deus no auge, a gente sair farta de tanto viver. É quando me abandono na minha própria casa. Me deixo pra lá. É simplesmente maravilhoso.
A verdade é que com 18 pontos, pedir a próxima carta é sempre suicídio. E não dá mesmo pra fechar os olhos sobre a bicicleta, nem por três segundos, nem assim. Mesmo no outono do Rio. Entretanto peço a carta e fecho os olhos. Por isso é melhor que escreva em lugares altos, para que a distância do chão relativize o perigo dos parágrafos. Marguerite Duras, uma de minhas artesãs favoritas, disse uma vez: “não se pode. E se escreve”. É assim que finalmente inicio essa honrosa jornada na Bravo! Quarta sim, quarta não, venham me ver.
Apesar do mundo, a morte pode ser amarela e cheirar a baunilha. Viver pode ser um desgosto, vem uma tempestade e leva tudo. A sorte é uma coisa boa, mas uma hora tudo termina. É bastante útil saber terminar quando ainda estiver bom. Um texto ou um amor. Ninguém termina contra ninguém. Ninguém morre contra ninguém. Escrever, amar, não se faz por vingança. Se faz para seguir.
Se olhar ao redor, sim, é bonito.