Feliz dia do meio!
Esse texto é para quem está namorando e tem muito o que comemorar: ou seja, todo mundo que tem tempo para estar atento a si
Para Francoise Hardy
Sim. Eu sei que vocês preferiam estar beijando na boca a me ler agora. Mas, vejam bem, é das coisas que mais gosto na vida, escrever essa coluna. Espero que os olhos de vocês tenham tempo entre uma saudade e outra. Eu também preferia estar com a boca ocupada, entretanto me contento com as mãos. Sempre quis começar um texto com a palavra sim. Amo e odeio clichês na mesma proporção. Há também o fato de que é preciso sentir-se suficientemente relevante pra crer que seu parecer sobre o que acontece vá fazer alguma diferença na vida das pessoas, não pretendo, então peço um pouco de generosidade aqui, pois um trabalho é um trabalho e o bom operário não desiste de embutir sua peça na engrenagem. É muita opinião sobre tudo o tempo todo. Escolher um assunto é um eterno flerte. Ler é também namorar.
Se o boy lixo for o Brasil, aí mesmo é que a mensagem não chega. Quero falar de amor e não consigo falar de amor, sendo ululantes a consciência de classe e o antirracismo (ainda que falar de amor seja também apontar para a falta dele). Quero falar do show do Djavan na praia de Copacabana e de como ele é a mais pura personificação da paixão, mas não se podem desviar das demandas da crise climática e da tragédia do RS e da PEC da privatização das praias e da PL que criminaliza o aborto depois de 20 semanas de gestação, mesmo para crianças estupradas. Quero contar que me apaixonei, mas preciso exclamar que Expatriadas é uma série com todas as principais questões do mundo contidas (Lulu Wang é um baque!), e que não há nada mais importante que a vitória de Claudia Sheinbaum nas eleições do México em plena era dos neo-mussolinis.
Acontece que dessa vez eu decidi. Justo agora que soube da morte de Françoise Hardy, minha musa das baladas sentimentais, vou inaugurar minha liberdade nesse espaço. No sentido de que, ora aprofundo, ora emerjo, ora milito, ora medito. Lacan que me perdoe, mas que o gozo nunca seja recusado e eu tou mais pra Caetano que está sempre a vir. Então o que quero mesmo fazer hoje, nesse dia metade cafona, metade singelo, é anunciar que pode ser que comecem a surgir alguns poemas no lugar de crônicas nas próximas publicações. Ou declarações apaixonadas. Ou uma piada longa, já que a vida não pode ser outra coisa. E que eu posso ser canalha a qualquer momento. Do nada, um pouco feliz no centro da tragédia. Tipo coluna do meio.
De modo que para os que topam uma pausa das notícias, do núcleo duro da existência, venho por meio desta data dizer que namorar é uma delícia. Que tá gostoso namorar. Outra pessoa que não eu. E que brilha como se jogasse na cara do mundo que estrelas são mesmo toda a poesia que há num corpo terrestre, e não essa balela de hélio e hidrogênio, certezas que ameaçam o amor. E pra quem talvez pense que está só, uma breve intimidade: passei um bom tempo namorando comigo. Sim, esse clichê mais bradado que exequível. Com o qual me comprometi, arrebatada. Inventei coisa à beça pra driblar os padrões (e ter sobre o que escrever que afinal é tudo que importa). A vida é muito assunto, afinal. Deu trabalho e foi maravilhoso. Gosto muito da solidão. Foi difícil me separar de mim para dar vez à presença estrangeira. O que também me aproxima de mim. Mas aí é outra onda.
Esse texto é pra quem tá namorando e tem muito o que comemorar: ou seja, todo mundo que tem tempo para estar atento a si. Com ou sem um outro corpo. Feliz dia! – que é, na verdade, dia do ermitão (Santo Onofre), logo antes do dia do casamenteiro (Santo Antônio). Entre o eu e o outro, fundamental, sejam quantos forem os integrantes, é desviar os olhos da bomba para o amor. Para o caminho do meio. Para o reflexo do um no outro. Porque ninguém é solteiro diante de um espelho.