É chegada a primavera
A colunista comenta sobre as movimentações políticas recentes no Congresso e no Senado, como o protesto contra a PEC da Blindagem e a votação da Isenção do INSS
Há dois domingos mais ou menos, meu coração está feliz, pulando alto nos campos da liberdade. Quando fomos para as ruas, recuperamos um fôlego e uma coragem que me pareceram, por um tempo, adormecidos. Nos últimos meses, do julgamento dos golpistas até os dias de hoje, as forças democráticas do país viraram o jogo. Os golpistas até podiam crer na absurda possibilidade inconstitucional de uma anistia, mas era uma incongruência! Como a Constituição poderia considerar a tentativa de golpe de Estado um crime contra a ordem democrática e, ao mesmo tempo, autorizar a impunidade a tais infratores?
Não dá. Tal premissa não anda uma esquina no campo da lógica. Mas o Congresso, herdeiro da obscenidade do orçamento secreto com o capitão Lira no comando, achou que poderia navegar sem disfarce nos campos da impunidade, acreditando que o povo não perceberia que é o verdadeiro patrão dos caras. Ir para a rua devolveu protagonismo às urnas, ao voto, e mostrou a podridão de parlamentares traidores. Foi isso que assustou. Parece até que escuto o burburinho: “Quem foi que acordou o povo?”, “Está faltando metanol na bebida de geral?”, “Como faremos para cegá-los de novo?”
A verdade é que o Supremo, impecável, apontou sua mira absolutamente constitucional e jurídica para os responsáveis pela tentativa de golpe de Estado e, no julgamento, não poupou generais. Uma quadrilha de homens brancos civis e militares de alta patente, usou a presidência da República e, sob o slogan fascista “Deus, pátria, família”, tocou o terror sobre nosso avanços democrático — e fez de um tudo para que Lula não assumisse, mesmo sendo eleito pelo resultado legítimo das urnas como o inominável também foi na vez dele.
Para quem viveu e cresceu na Ditadura como eu, essa punição aos militares estava entalada na garganta. Os caras ficaram 20 anos no poder, instauraram o terror nas universidades, teatros, sindicatos, escolas e na monte de artistas, filósofos e professores brasileiros. Foi uma carnificina: estudantes, jornalistas, artistas foram torturados, mortos, e se tornaram os “desaparecidos” sem enterro. As digitais dos seus crimes estavam nos corpos das vítimas da crueldade da tortura. Vários pensadores foram covardemente assassinados por uma ditadura truculenta e impune é cercada pelo Estado. Uma parada fratricida. Faltou julgar os alfozes na época; pagamos o preço, mas a democracia respondeu agora.
Durante as oitivas do julgamento do século, lembro de estar atenta aos depoimentos dos generais. A maioria falava com a empáfia de quem se acreditava imune à qualquer ordem, especialmente à ordem democrática. Dançaram. Nossa democracia amadureceu.
Dessa vez não colou, dessa vez não deu. Até aquele momento ainda poderia sobreviver a imagem de “bom moço incorruptível” de um militar. Boa parte da população acreditou nisso por muito tempo: “É de uma família boa, o pai é militar, são honestos, têm caráter”. No entanto, a prática exposta não deixou a velha teoria virar a esquina. Militares se corromperam, se venderam, chafurdaram na grana que lhes ofereceram, e traíram à Pátria!
Muitos aceitaram o comando espúrio de um ex-capitão indisciplinado expulso do Exército. A boa fama dos militares fez com que a população até então não acreditasse que isso fosse possível. Claro que há bons militares e honestos, e é bom lembrar que o golpe não se confirmou por conta da resistência de duas das três forças armadas. Mas este texto não é sobre isso. Espero que a nova fase de desenvolvimento democrático nos leve à desmilitarização das polícias e à extinção das ameaçadoras escolas cívico-militares.
Estamos vivendo outra parte da história. A extrema direita reabre sua boca enorme sobre o mundo e revela que seus dentes continuam afiados. Minha ingênua utopia sonhou que um dia viveríamos em um mundo sem racistas, sem nazistas, sem fascistas. No entanto, nascem grupos neonazistas, neofascistas, e o seu movimento tóxico aumentou também o número de jovens de direita. Oh, meu Deus, ver juventude ser de extrema direita é apunhalar meu coração. Dói. Estou convicta de que o balcão da juventude é o da revolução, e me dilacera saber que só se é jovem de extrema direita em decorrência de uma grave distorção na educação.
Só sei que o que nos levou às ruas foi o sonho de Mia felicidade coletiva. Um sonho. A nutrição dele evita truculências, autoritarismos e tendências suicidas. Creia-me: o sonho é nutrição. É dele que o sonhador vive. Vem de seu ventre a força para estabelecermos de uma vez uma cultura de paz. Até agora minha alma se refestela com o astral do povo na rua reafirmando a democracia. Foi lindo, leve, com a bandeira do Brasil estendida nas mãos do povo brasileiro, sem ninguém ajoelhado e rezando para pneu. Tudo sem ódio.
No Rio de Janeiro, no palco principal, brilhavam nossos ícones, os griôs da música e da história brasileira, cada um trazendo na camisa a nossa bandeira. Simbólico. Foi uma retomada. Cada música ali era um hino à justiça contemporânea da jovem democracia brasileira. Provocou um sapeca-iaiá no Congresso.
Apesar da manobra vil do voto secreto, vazou a lista de quem votou contra o povo. Depois que o povo foi às ruas, em todas as capitais, em tempo recorde de divulgação, veio um tal de arrependimento público, uma tal de desculpa esfarrapada, uma cara de pau inacreditável correndo atrás do prejuízo. O certo é que, na esteira desse despertar popular, o Senado sepultou a PEC da bandidagem. O projeto de anistia não respira mais. Aprovou-se o não pagamento de impostos para quem ganha até 5 mil. E é a vez do fim da escala 6×1, triste resquício da escravização que ainda estrutura a lógica capitalista, trabalhista e racista no Brasil.
A atual ocupação parlamentar no Congresso é, em sua maioria, representada por “ raposas “( que me desculpem essas pela metáfora) que só pensam em enriquecimento pessoal por meio de recursos públicos. São ratos de terno e gravata que vão querer se reeleger de novo no ano que vem. Não passarão. Cabe a nós escolher: precisamos de um Congresso que cuide dos nossos interesses e resolva as necessidades do povo brasileiro.
Essa foi a grande lição que o Brasil recebeu, a céu aberto. Espero que acertemos todas essas questões na hora da prova.
– Elisa Lucinda. É chegada a primavera
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