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Cultura para quem e por quem: além das margens 

Quando a palavra chega enraizada na vivência, ela não só comunica: convoca. E talvez seja aí que resida sua força mais revolucionária

Por Veronica Botelho
16 jun 2025, 07h00
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É possível estourar a bolha e integrar as margens? (Arte/Redação Bravo!)
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Recebi de uma amiga o convite para um evento no Complexo  de Manguinhos, zona norte do Rio de Janeiro. No convite, um nome chamou minha atenção — Bando Editorial Favelofágico, que até então eu desconhecia. Movida pela curiosidade que  me caracteriza, fui atrás. Descobri um projeto literário com uma década de existência, criado em uma das regiões mais vulnerabilizadas da cidade do Rio, que já publicou mais de trinta autoras e autores. Fiquei me perguntando: como algo tão potente pode não ter cruzado meu caminho até agora? Seria apenas desconhecimento meu — ou há, de fato, uma invisibilidade que ainda persiste mesmo depois de dez anos de atuação? 

Será que nossa literatura cumpre com o objetivo de conectar através das palavras, ou  simplesmente segue a lógica de um mercado dominado sempre pelas mesmas pessoas, que para disfarçar o monopólio deixa alguns poucos lugares, disputados por quem não faz parte da bolha, por quem não dita as regras? Nossa sociedade está realmente pronta para reconhecer e integrar a literatura que nasce além das margens? 

Quem define o que é literatura brasileira? 

Num país onde mais da metade da população se declara preta ou parda (56,1%, segundo o  IBGE/2022) e onde a maioria dos moradores de favelas se identifica como negra, a literatura produzida na periferia deveria ocupar uma presença proporcional nos catálogos das grandes editoras, nos prêmios literários, nas mesas de debate. Mas não é isso que acontece. 

A criação de selos editoriais específicos, coletivos literários independentes e iniciativas como saraus em bairros periféricos evidencia que o espaço de acolhimento tradicional ainda é insuficiente — e que a construção de vias alternativas continua sendo, para muitos, a única forma possível de existir literariamente. 

Esse cenário aponta para uma estrutura mais profunda: um limite invisível que define quantas vozes das margens podem atravessar o espaço simbólico da consagração literária. Assim como no discurso racial — onde a maioria negra enfrenta barreiras invisíveis para alcançar posições de poder —, o que se observa na literatura é a concessão de espaços mínimos, como migalhas disputadas entre muitos talentos.

Os caminhos improváveis da publicação 

A trajetória de Fabrícia Miranda Segirl, 45 anos, moradora da favela do Arará, no Complexo de Manguinhos, ilustra perfeitamente os desafios enfrentados por escritoras da periferia. Em  um e-mail enviado a um veículo de comunicação, ela escreveu: “Não sei se irão se interessar,  pois aqui no Rio de Janeiro morador de favela atrai mais olhares quando sai nas páginas policiais, mas eu optei pelas páginas da literatura.” 

A roteirista, pesquisadora e escritora vizinha do presídio de Benfica levou vinte e cinco anos  para publicar seu livro. “Para morador da favela não é tão simples conseguir alcançar o objetivo. Tive que ter duas graduações, ter pós-graduação, trabalhar, ralar”, diz a autora de “Codinome Beija-Flor: Noite Escura”, formada em Educação Física e Ciência Política. 

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A história que deu origem ao livro começou a ser escrita na escola, a pedido da professora.  Segirl nunca duvidou de que publicaria o livro. Conseguiu o dinheiro trabalhando durante sete  meses no Censo do IBGE de 2022, recenseando a própria favela. Pagou revisão, editora, gastou cerca de R$ 10 mil. Então começou a saga da divulgação. 

Por todo o Brasil, histórias semelhantes se repetem: escritoras talentosas que precisam trilhar caminhos improváveis para conseguirem publicar suas obras. Enquanto isso, o mercado editorial tradicional continua operando em suas lógicas fechadas. 

Literatura e liberdade: A Academia Brasileira de Letras do cárcere 

Pesquisando sobre iniciativas além das margens, descobri outro projeto também interessante,  a Academia Brasileira de Letras do Cárcere, que completou um ano agora em abril. “A ABLC  tem por finalidade estimular a escrita e leitura de livros escritos por encarcerados e egressos,  visando sua reinserção social e a valorização do ser humano em cumprimento de penas  privativas de liberdade”, diz a nota publicada no blog do advogado e ex-desembargador Siro Darlan, que impulsionou a criação da ABLC. 

A fundação da Academia Brasileira de Letras do Cárcere, composta por pessoas detidas e  egressas do sistema prisional, é uma iniciativa inédita que reconhece a potência literária que  pode surgir em contextos de privação de liberdade. São vinte cadeiras, nem todas ocupadas, cada uma tendo como patrono importantes figuras de referência na literatura e no ativismo social. Na cadeira número 17 da ABLC, cuja patrona é Ângela Davis, está Gih Trajano. Ela é de Suzano, Região Metropolitana de São Paulo, tem 47 anos e múltiplos dons artísticos: poeta,  romancista, roteirista e palestrante. 

Na prisão, num belo dia, chamaram-na para ouvir poesia, mas ela não queria. “Ainda mais sarau, uma frescura do caramba, falei que não ia”. Mas foi. E se surpreendeu, a ponto de ficar ansiosa antes dos encontros. Em um deles, ouviu a frase que marca sua vida: “Coragem é todo passo dado na direção oposta daquilo que nós somos”. Livre, passou a participar de encontros poéticos, tornou-se roteirista, começou a fazer palestras e escrever. “Descobri que tenho grande capacidade de imaginar gente. Estou me dando a segunda liberdade, a liberdade poética. Quando foi a última vez que me senti protegida? Com a literatura.” 

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Amanda Karoline, 31 anos, do Rio Grande do Norte, ocupa a cadeira número 11 da ABLC,  cuja patrona é Esperança Garcia. “Eu não gostava da escrita, peguei gosto no presídio, foi com  minha autobiografia, ainda presa. Era para ser publicado em 2020, mas a pandemia atrapalhou. Vi que faltava algo para falar, o sistema prisional, e fiz o segundo livro, que ainda não foi  publicado. Estou fazendo um terceiro sobre reintegração.” 

Na solidão do presídio, havia uma pequena biblioteca, de onde Amanda pegava emprestado  uma obra por semana. A escrita foi naturalmente despertada pela leitura. Assim como Gih Trajano, sua companheira de ABLC, Amanda não quer ser resumida ao rótulo de ex-presidiária. “Minha história é sobre sobrevivência e amor-próprio”, frisa. 

Morando em Parnamirim, Amanda vende seus livros nas praias de Natal, cidade vizinha. Segue o ofício do pai, vendedor. Comercializou mais de três mil exemplares da primeira obra, de mão em mão. 

Modelos alternativos de Produção Cultural

O que mais me impressionou, ao continuar mergulhando no trabalho do Bando Editorial Favelofágico, foi seu modelo de atuação. Instalado em Manguinhos, o coletivo criou uma  estrutura que oferece residências literárias remuneradas, acompanhamento editorial e lançamentos. Em um território onde escolas são fechadas por até 59 dias por ano devido a  operações policiais, sustentar um espaço de escrita remunerado é, em si, um gesto político.

Como explica Felipe Eugênio, um dos seis criadores do selo e produtor literário, “o problema  da classe trabalhadora é a economia do tempo, o que torna um grande desafio escrever e se  manter escrevendo”. Esta observação toca em um ponto crucial: o acesso à produção cultural  não é apenas uma questão de talento ou de oportunidades pontuais, mas de condições materiais que permitam o desenvolvimento do fazer artístico. 

Vozes que resistem 

Odailta Alves, nascida na favela de Santo Amaro (Recife/PE), é professora nas redes municipal  do Recife e estadual de Pernambuco. Como escritora, publicou 8 livros: 5 de poemas e 3 de  contos. É mestra em Linguística pela UFPE e, atualmente, faz doutorado na mesma instituição. 

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Vencedora nacional dos concursos de poesia Da Casa de Espanha (2016) e do Elas por Elas  (2019), em 2022 ganhou o prêmio Pernalonga de Teatro de Pernambuco com o seu monólogo Clamor Negro. Coordena o Coletivo de Literatura Mala Preta e é diretora da websérie Escritoras Negras de Pernambuco. Em 2024, publicou pela Palas Editora “Pretos prazeres e outros ais”

O projeto que coordena não apenas produz literatura, mas cria redes de apoio, formação e  circulação que permitem a existência de vozes que de outra forma permaneceriam silenciadas.  É um exemplo de como a organização coletiva pode abrir caminhos alternativos para a  produção literária. 

O paradoxo da exceção 

O sucesso de nomes como Rafael Simeão, um dos participantes de uma residência literária do Bando, hoje publicado pela Companhia das Letras com o livro de contos “Quando chega nossa vez acaba” (selo Alfaguara, 2024), Lilia Guerra, escritora e enfermeira, moradora da zona leste  de São Paulo, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura com “O céu para bastardos” e autora do recém-relançado “Perifobia”, ambos pela Todavia, ou Odailta Alves, é motivo de celebração, mas também evidencia a exceção. 

Casos como estes são frequentemente utilizados como prova de que o sistema é meritocrático e acessível, mas raramente se discute quantas vozes igualmente potentes permanecem no silêncio por falta de oportunidades estruturais. Quantas vozes são autorizadas a furar essa bolha? Quem define os critérios de pertencimento? E o que perdemos, como sociedade, ao não escutar histórias em sua multiplicidade? 

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O paradoxo se estende: mesmo quando conseguem publicar, estes autores enfrentam a categorização de sua obra como “literatura marginal”, “literatura periférica”, “literatura negra”“literatura LGBTQIA+” que embora possam servir como estratégia de visibilidade, também  podem cristalizar fronteiras simbólicas. 

Antropofagia das Margens 

É o Bando Editorial Favelofágico que evoca explicitamente o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade — aquele que propunha a devoração crítica de influências externas para  recriá-las a partir da experiência local. Mas, mesmo sem declarar essa filiação, projetos como  o coordenado por Odailta Alves ou a Academia Brasileira de Letras do Cárcere também operam  nessa ótica: não apenas devoram referências, mas recriam mundos a partir da experiência vivida. Suas existências não adaptam a periferia ao centro; deslocam-no — ou melhor, multiplicam os centros. Recusam as margens impostas socio-historicamente. E não seria esse o objetivo da arte? Multiplicar os olhares, neutralizar as fronteiras que insistem em se manter? 

A quem chega? 

Mas é aqui que volto ao “para quem?” do título. O índice de analfabetismo funcional ainda é  alto nas periferias urbanas; o acesso ao livro, limitado; às bibliotecas públicas, escassas ou mal equipadas. Em muitos casos, nem mesmo os próprios territórios de origem conseguem acessar plenamente as obras que neles são produzidas. É uma contradição dura, que revela como as barreiras não estão apenas na circulação editorial ou nos prêmios — mas também na estrutura educacional, econômica e simbólica que separa tantas pessoas do direito à leitura. 

Como defende Antonio Candido em seu ensaio O direito à literatura, “a fruição da literatura  pode ser considerada um direito de todo ser humano” — tão fundamental quanto o da alimentação ou da saúde, pois é por meio da ficção que se constrói o imaginário, a empatia e a  dignidade do sujeito. Essa ideia, longe de permanecer no campo teórico, encontra corpo em  iniciativas como a do Bando Editorial Favelofágico, que compreende a literatura como  ferramenta de promoção da saúde coletiva e como tecnologia de enfrentamento das desigualdades. Escrever e publicar, nesse contexto, não são apenas gestos estéticos: são formas de reivindicar dignidade, reelaborar a própria experiência e reimaginar o território. 

Os projetos citados demonstram que é possível recriar esses espaços. Criam brechas onde antes havia silêncio. Fazem da literatura um espaço de pertencimento, onde leitoras e leitores se reconhecem nas histórias — e, a partir desse espelhamento, se sentem autorizados a contar as suas. Quando a palavra chega enraizada na vivência, ela não só comunica: convoca. E talvez seja aí que resida sua força mais revolucionária. 

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Para além das celebrações 

A última reflexão que deixo não é apenas sobre como abrir espaço para a literatura produzida além das margens: será que a nossa sociedade está disposta a transformar a estrutura que limita o alcance e a produção dessas vozes — mesmo que isso implique abrir mão de privilégios? 

Quando celebramos o lançamento de seis novos livros por um selo editorial independente, ou aplaudimos a entrada de uma autora periférica em uma grande editora, estamos realmente  transformando o sistema cultural — ou apenas aceitando exceções que o validam? 

Sem transformação, qualquer celebração é só mais um verniz sobre o teto.

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