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Havana tem biografia

Jamil Chade e Juliana Monteiro, autores do livro "Ao Brasil, com Amor", trocam cartas com exclusividade na Bravo!

Por Jamil Chade e Juliana Monteiro
Atualizado em 20 fev 2024, 11h14 - Publicado em 19 fev 2024, 10h00

Havana, 18 de fevereiro de 2024

Querida Juliana, 

Do seu quarto no Hotel Nacional, em Havana, Jean-Paul Sartre observava os cubanos que caminhavam à beira-mar. Ele, no conforto de um ar condicionado exemplar. La fora e suada, a população enfrentava um sol asfixiante. 

O histórico prédio de Vedado, anfitrião de celebridades, da máfia, da nobreza e considerado por muitos como um monumento à submissão, parecia ser o espelho da própria sociedade. O frescor de um grupo de privilegiados era uma riqueza efêmera. De certa forma, a temperatura artificial de seu quarto era uma causa indireta da agitação social que acabara de ocorrer. 

Sartre esteve aqui em 1960 e, em seu texto “Ouragan sur le sucre” (Furacão sobre o açúcar), ele relata o momento em que chegou a essa conclusão sobre a distância entre as elites e a população. 

O chão ainda reverberava diante do terremoto da revolução que tinha acabado de ocorrer.  Havana tinha sido, uma vez mais, artífice da história. 

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A capital nunca foi apenas mais uma cidade. Seria ingênuo dizer que ela tem uma história. Havana tem uma biografia. Foi protagonista do fim do império espanhol, da construção da superpotência americana. Foi o palco de uma tensão que deixou o planeta sem saber se teríamos um amanhã. Mas também embalou o mundo com suas melodias. Em cada uma de suas ruelas, é como se o caleidoscópio de Carpentier penetrasse uma nova imagem no imaginário coletivo latino-americano.

Te escrevo justamente daqui de Havana para compartilhar contigo a sensação que uma nova insurreição é necessária. 

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Foto de Jamil Chade (Jamil Chade/divulgação)

O sistema internacional está falido. Mas o velho mundo resiste em admiti-lo, num negacionismo orquestrado para que, aqueles que desfrutam de temperaturas amenas, possam continuar com seus privilégios.  

Em algum lugar de suas almas, eles sabem que as ondas trazem, sem negociação, uma transformação irresistível. Ao eclodir diante dos muros erguidos ao longo das últimas décadas, os fatos revelam que o modelo que pautou nossas sociedades está esgotado.

Teremos, em apenas uma década, o primeiro trilionário da história, um marco insuportável da desigualdade. Juntos, os cinco homens mais ricos do mundo contam uma fortuna de US$ 869 bilhões, o dobro do que tinham em 2020. Enquanto isso, o mundo precisará de mais 229 anos para erradicar a pobreza.

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Sabemos e sentimos que o planeta atravessa uma transformação climática que nos colocará um desafio existencial nos próximos anos. 

No ano passado, muitos dos desafios do mundo se uniram em um terrível cenário infernal. Milhares de pessoas em Derna, na Líbia, perderam suas vidas em uma enchente épica. Os que sobreviveram ficaram sem futuro. Ali, em 24 horas, os céus liberaram 100 vezes a chuva mensal. 

A chuva, os anos de guerra, a ditadura e a negligência romperam as represas.

Como constatou a ONU, elas foram vítimas múltiplas vezes. Vítimas das mudanças climáticas e de líderes, próximos e distantes.

O povo de Derna morreu afogado pela indiferença. Seus corpos banharam a costa do mesmo Mar Mediterrâneo onde a elite do mundo busca um lugar ao sol e onde barcos de luxo fazem questão de ignorar apelos por socorro.

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Um mar que passou a ser um dramático retrato do nosso mundo, desenhado com o dilúvio de desigualdade. Nós mesmos acabamos de viver os dias, os meses e os anos mais quentes em milhares de anos. Mas será que todos sentem mesmo o calor? Até quando o frio dos ricos vai aguentar? 

Vivemos a constrangedora paralisia dos órgãos internacionais, ultrapassados e inócuos, enquanto assistimos ao vivo a massacres que ficarão impunes. Vemos tribunais anunciando decisões que jamais serão cumpridas, cúpulas negociando textos que jamais mudarão a vida das vítimas. 

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Hoje, a geopolítica define se um bairro tem luz ou não. Se a vacina vai chegar. Se uma criança vai sobreviver.

Mas os sinais também revelam que não há como esconder a realidade com a fumaça do choque das ondas. 

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Juntos, os países dos Brics têm hoje um PIB superior ao do G7. Os países da Ásia registraram, no ano passado, 67% de todas as novas patentes no mundo. Em 2023, os países emergentes receberam mais investimentos que todas as economias ricas. Em 2023, pela primeira vez, Pequim usou mais sua moeda para o comércio internacional que o dólar.

Até quando as lideranças, próximas ou distantes, optarão pelo negacionismo e repressão diante da iminência de uma transformação profunda? 

Por quanto mais tempo os muros de contenção vão suportar o quebrar das ondas sem reconhecer essa nova realidade? Por quanto tempo os muros aguentarão antes que sejam tomados de assalto por aqueles em busca de cidadania?

Onde a escuridão é a realidade, onde os direitos são suprimidos, se não tolera qualquer brecha de luz. Sabem que não podem resistir. 

Juliana, de Havana, te escrevo com uma convocação a reinventar o futuro. O dilema que enfrentamos em nossa geração não é reforma versus status quo. É reformar ou se preparar para o caos. 

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Alejo Carpentier dizia que “hablar de revoluciones, imaginar revoluciones, situarse mentalmente en el seno de una revolución, es hacerse un poco dueño del mundo”. 

Falar da reinvenção do futuro, portanto, é mergulhar na ideia de forjar um novo destino. Quero um insurreição também a partir do Sul, num mundo onde todos possam caber. 

No Malecón, qualificado como o divã mais eloquente do mundo em desenvolvimento, basta chegar mais perto de onde as ondas quebram para descobrir que, ali, o ar tem outro gosto. Ali, a espuma, a água e a luz explodem em sete cores. 

Uma paleta que talvez nos ajude a desenhar um novo destino.

Vamos?

Jamil Chade

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Foto de Juliana Monteiro (Jamil Chade/divulgação)

Havana, 18 de fevereiro de 2024

Querido Jamil,

Você está certo, Havana tem biografia. Talvez por isso, na minha geografia íntima, a cidade está no mesmo continente que Macondo, Oceânia ou o País das Maravilhas, lugares que existem mais vivos na imaginação do que jamais seria possível nos atlas ou na memória. Porque tudo que a palavra toca cria realidade, a palavra é o sopro que permite, às coisas, ser. E Havana foi coberta por muitas delas. Algumas lhe vestem do fascínio que inspira as utopias revolucionárias no mundo inteiro. Outras lhe definem por suas contradições.

Havana poderia facilmente ser uma das cidades invisíveis do romance fabuloso de Ítalo Calvino. Nele, o imperador dos tártaros pede que Marco Polo conte como são as cidades sob seus domínios onde ele nunca irá pisar. O viajante, então, ergue diante dos olhos do outro e de quem lê o livro – palavra por palavra, como se tijolo fosse – cada detalhe dos lugares onde esteve. No entanto, em certo momento, adverte: “jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve”. O viajante sabe o poder das palavras e o poder que ele tem por ser o dono das histórias que as palavras contam.

Se Marco Polo tivesse imaginado Havana, talvez contasse que, assim como em Zaíra, ela é feita da relação entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado. Ou que é uma cidade distante que muda à medida que nos aproximamos dela, como acontece em Irene. Ou ainda que, como em Tamara, os olhos aqui não veem as coisas porque cada uma delas significa outra coisa. Essa última definição lhe veste bem.

Como Havana, todas as cidades invisíveis têm nomes femininos, como são femininas as utopias bonitas que eu conheço nesse século 21. O ideário dos homens criou o lucro, as castas econômicas, os preconceitos, a guerra e provoca um esgotamento dos recursos do planeta que ameaça o futuro próximo de todos nós. Um mundo de pulsão autodestrutiva e, por princípio basilar, para bem poucos. Para que essa utopia tenha triunfado sobre as outras foi necessária a força, como sabemos, mas para que se mantenha, a despeito da exclusão indecente que provoca, é fundamental a adesão, inclusive dos excluídos. É preciso que a palavra opere dentro das mentes, o que antes só o chicote garantia aos senhores.

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Foto de Jamil Chade (Jamil Chade/divulgação)

Foi preciso consagrar o que você chama de “sistema internacional” como um tipo de verdade, para que mesmo os que sofrem possam se alienar nele. O contraditório é desmoralizado, satanizado, esvaziado do seu conteúdo socioeconômico e cultual para virar, em mãos maliciosas, um espantalho de camisa vermelha afugentando do campo das possibilidades qualquer lógica que não tenha como centro o acúmulo de capital. Desqualificar como delirante ou mal-intencionado, antes que se instaure o debate, a ideia de comunitário. Assim roubam nossas almas e nos persuadem de que não há outro mundo possível.

Como se posto por deus, o trabalho tornou-se a quinta essência do ser humano, quando, historicamente, trabalho é o que fazem os dominados para que a elite durma no fresco. Os corpos explorados já não ameaçam os senhores, mas os defendem. Transformado em valor, o sistema nos fez não apenas desejar o trabalho, mesmo que degradante, mas nos dispor subjetivamente em direção a ele. Refletir sobre o lugar do trabalho no imaginário das sociedades é pensar no propósito da vida humana.

A maioria das crianças do planeta não pode escolher o que vai ser quando crescer, enquanto seus pais trabalham para sobreviver, alienados do propósito do que fazem, pauperizados não apenas de bens de consumo, mas das possibilidades de se significarem no mundo. O sistema mantém as pessoas ocupadas, chantageadas ou abandonadas o suficiente para que não tenham tempo nem recursos subjetivos para imaginar outros futuros sequer para si mesmas, quiçá para as sociedades em que vivem.

No livro de Calvino, Marco Polo diz que, de uma cidade, aproveitamos “a resposta que dá às nossas perguntas” e que não faz sentido classificar as cidades de felizes ou infelizes. Na verdade, existem dois tipos de cidades: aquelas que continuam, ao longo dos anos e das mutações, a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por esta cancelados.

É verdade que o sistema internacional está falido e o momento é grave. No entanto, quem está sonhando as novas utopias? Quantos de nós ainda se atrevem? Quantos nos dispomos a compreender a práxis e iluminar outros caminhos sob o imperativo da realidade dos povos e dos corpos? E do desejo que habita os corpos? A história nos ensina que uma ideia pode fracassar muitas vezes até realizar seu potencial. O fracasso é o movimento que a ideia provoca na sua relação com o contexto e com as condições efetivas para ser realizada. Os fracassos também constituem as ideias, assim como o contraditório as sofisticam. Não por radicalizar suas crenças, mas por expandir suas possibilidades.

A ideia de justiça social que nos é tão cara tem fracassado miseravelmente, independente da ideologia e do sistema político em que esteja baseada. Talvez seja a mais ambiciosa utopia do nosso tempo porque significa garantir a mesma dignidade e as mesmas condições para que cada um exerça a individualidade sagrada dos seus próprios horizontes e motivações. Todos temos o direito de subscrever nossa existência, boa ou ruim. Na minha utopia, que é socialista e feminista, é prerrogativa inalienável do ser humano escolher como quer viver a própria vida e ter os meios materiais e imateriais para isso. As pessoas se organizarão em torno de propósitos e não mais do dinheiro. Guerra, fome, pobreza, racismo, misoginia, homofobia, embargo serão palavras de uma língua morta, usada quando essas deformações do humano existiam.

O que te parece, querido amigo? É ingênua, anacrônica, absurda, inviável a minha utopia?

Com amor,

Juliana

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