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Quando vão levar a produção infanto-juvenil a sério?

Neste Fluxo de Pensamento, a autora discorre sobre a falta de reconhecimento do segmento perante outras áreas culturais e propõe outros caminhos de futuro

Por Keka Reis
8 jul 2024, 09h00
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Fluxo de pensamento: o mercado infato-juvenil (Arte/Redação Bravo!)
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Comecei a escrever para crianças e adolescentes do mesmo jeito que muita gente que conheço. Estava imersa na criação de uma filha pequena, lendo muito com ela (e para ela) – e eu também estava me divertindo com os filmes e desenhos infanto-juvenis mais inventivos e caprichados. Não era qualquer contexto. Vivíamos um momento em que o audiovisual brasileiro fervilhava com a novidade da Lei da TV a Cabo, que obriga até hoje os canais a exibirem diariamente três horas e meia de conteúdo nacional, e as salas de roteiro pipocavam aqui e ali. Nessa altura, eu já era uma roteirista freelancer que circulava no mercado. Muito rapidamente passei a trabalhar para animações nacionais que foram produzidas naqueles tempos.

Acho que foi na época em que estava na equipe de Osmar, A Primeira Fatia do Pão de Forma – uma animação da genial Alê Mchaddo –, quando me dei conta do quão poderoso é escrever histórias para crianças e adolescentes. Entrar em contato com esse tempo da vida em que a imaginação pode (e deve) andar ainda mais solta, longe dos boletos e dos ditos BOs adultos, é como uma espécie de antídoto para a chatice do dia a dia. Passar tardes e mais tardes rindo com colegas, tentando entender juntos que tipo de comida os pães comeriam, foi um alento viciante ao marasmo do que costumamos chamar de vida média – e tudo isso simplesmente porque Osmar é um pão-protagonista da animação que citei, e precisávamos dessa informação para o desenvolvimento do roteiro.

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Osmar, a Primeira Fatia do Pão de Forma (Alê Machado/reprodução)

Para além do meu umbigo e dos insights mais fofinhos que o trabalho de escrever para as infâncias e juventudes pode trazer, pouco a pouco fui me dando conta de um contexto estranho que até hoje tenho dificuldades em entender: a produção infanto-juvenil não tem e nunca teve o reconhecimento que merece nas diferentes áreas da nossa cultura. Sim, a realidade se impõe. E ela sempre dá um jeito de fazer isso.

Quando escrevo aqui sobre esse reconhecimento, sei que falo por muitos colegas que trabalham para o mesmo público. Pouco tem a ver com ressentimento ou essas coisas que podem acometer artistas em um país que não é exatamente nenhum paraíso para quem é da área da cultura. Até porque, desde as tardes em que escrevia sobre o pão Osmar até os dias de hoje, tenho conseguido construir uma carreira sólida na literatura e no audiovisual. Sempre com uma espécie de fé cega no trabalho criativo, e com uma devoção que envolve sangue, suor, lágrimas e milhares de voltas em montanhas-russas emocionais das mais diversas. E, claro, também apoiada em uma da grandes vantagens da maturidade, que é poder olhar com desconfiança esses parâmetros que a contemporaneidade insiste em dar para medir o trabalho de qualquer pessoa, dos motoristas de aplicativos aos artistas de teatro: as pontuações, as estrelinhas, os números de seguidores, as lacrações – nada disso me comove muito.

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Mas me comove sim e me entristece demais a falta de espaço que as produções infanto-juvenis costumam ter em ambientes em que elas deveriam ser absurdamente respeitadas e destacadas. No audiovisual, na literatura e também no teatro. Um dia, no meu grupo de Whatsapp da associação de roteiristas, apareceu uma pessoa procurando trabalho. Depois de fazer um marketing pessoal bem rápido, ela digitou algo como “posso até escrever para criança”. Me deu vontade de responder “não, você não pode”. Porque escrever para eles exige escuta, experiência e uma dose gigantesca de alteridade.

Ao lançar o meu segundo livro, ouvi de vários amigos e conhecidos a pergunta: “quando é que você vai escrever para adultos?”. Como se a experiência com a obra infanto-juvenil fosse só uma ponte que eu tentava construir para furar a bolha do mercado editorial

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A escritora e roteirista Keka Reis (Caroline Bittencourt / Instagram/reprodução)

Essas lembranças e frases soltas parecem detalhes pequenos e sem importância, mas, para alguém que é fã de psicanálise e também uma devota fervorosa das palavras, elas dizem muito sobre o lugar que as produções infantojuvenis ocupam no imaginário das pessoas. Um espaço em que o livro infantil vira “livrinho”.

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Uma realidade em que as feiras e os eventos literários dão pouco lugar para os autores que trabalham para esse público. Um país que paga menos aos roteiristas de cinema e TV que trabalham para esse público.

Fico me perguntando como e por que esse pouco caso. Será que as pessoas pensam que escrever para crianças e adolescentes é mais fácil? Não é. Menos glamouroso? Talvez. Não sei. Como disse anteriormente, glamour, estrelas, status, são sintomas contemporâneos que mexem com a autoestima e o poder de criação de muita gente, mas não me parece que essas coisas estão ligadas com a causa dessa ignorância toda.

Criar histórias para quem ainda está em formação é um trabalho que exige muita responsabilidade. Despertar nessa audiência o gosto pela cultura, dar as mãos para eles no momento de transição, quando eles abandonam a infância e começam a flertar com as produções adultas, é bastante desafiador

 

 

Criar histórias para quem ainda está em formação é um trabalho que exige muita responsabilidade. Despertar nessa audiência o gosto pela cultura, dar as mãos para eles no momento de transição, quando eles abandonam a infância e começam a flertar com as produções adultas, é bastante desafiador. Isso sem falar na responsabilidade de soar autêntica para uma geração que vive em um mundo completamente diferente do nosso. É só pensar que não existiam telefones celulares nos anos 1980, quando eu era adolescente.

Sempre teve em nosso zeitgeist um discurso de que é preciso proteger a infância. Eu concordo em gênero, número e grau e costumo assinar embaixo de qualquer iniciativa com esse propósito – especialmente porque conheço o país perigosamente machista em que vivo. Mas também me preocupo com o que realmente significa essa proteção. Porque estamos todos profundamente apavorados com os estragos que as redes sociais vêm fazendo em um público que não está preparado para esse tipo de exposição e disputa que a internet acirrou. Nem nós, os ditos adultos, estamos.

Mas, como consequência desse pavor, encastelamos nossas crianças e adolescentes em bolhas superprotegidas que as impedem de fazer o que antigamente era muito natural – cair, se ralar, sofrer, quebrar a cara e depois amadurecer. Será que esquecemos que proteger significa também dar ferramentas para que elas enfrentem do melhor jeito possível esse mundo torto e totalmente colapsado que estamos deixando para as próximas gerações?

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Fora o amor, a atenção e a educação, eu não conheço nenhuma ferramenta mais poderosa do que a cultura para isso. Uma criança que tem a possibilidade de ler, ver filmes, se reconhecer neles e nas histórias, vai saber navegar com mais tranquilidade pelas águas turbulentas da vida adulta contemporânea. Precisamos pensar nisso. Precisamos pensar muito mais nisso. E dar para as produções infantojuvenis nacionais todo o reconhecimento que elas merecem.

Uma criança que tem a possibilidade de ler, ver filmes, se reconhecer neles e nas histórias, vai saber navegar com mais tranquilidade pelas águas turbulentas da vida adulta contemporânea. Precisamos pensar nisso. Precisamos pensar muito mais nisso. E dar para as produções infantojuvenis nacionais todo o reconhecimento que elas merecem

Agora, se a questão é grana, faço questão de reforçar aqui que investir em produções culturais voltadas para o público infanto-juvenil pode trazer um retorno financeiro significativo – talvez até maior que algumas produções adultas, devo falar… dois fatores relativamente simples sobre o comportamento desse “target” (como as agências e TVs gostam de se referenciar) justificam esse investimento: engajamento e lealdade.

Crianças e adolescentes tendem a consumir esse tipo de conteúdo por um período muito mais longo do que os adultos, com produções sendo repetidamente assistidas. Enquanto um filme ou série para adultos pode ter um ciclo de vida curto, as produções infanto-juvenis são consumidas ao longo de vários anos, à medida que as crianças crescem. Às vezes até por um fator nostálgico. Quem não lembra com carinho o livro que leu na infância, o desenho que via com o irmão, ou até o primeiro filme que foi assistir no cinema? Esse fator amplia enormemente o tempo útil desses produtos, maximizando o retorno sobre o investimento inicial.

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Além disso, esse público é extremamente leal aos personagens que os cativam – e que, por sua vez, podem gerar um fluxo constante de receita. Diferente dos adultos, que muitas vezes buscam novidades e variedades, procurando o próximo Sucession ou The Bear que vão comentar com os amigos na mesa de bar, as crianças e adolescentes tendem a se apegar a determinadas histórias e universos, influenciando inclusive os hábitos de consumo de suas famílias. Isso não é demagogia ou papinho. E o meu trabalho é a prova disso.

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O primeiro livro de Keka: O dia que a minha vida mudou por causa de um chocolate comprado na ilhas Maldivas (Editora Seguinte/divulgação)

O primeiro livro que escrevi, O Dia Em Que a Minha Vida Mudou Por Causa de Um Chocolate Comprado nas Ilhas Maldivas, foi publicado pela Seguinte, o selo jovem da Companhia das Letras, em 2017. Uma história que fala da difícil transição da infância para a adolescência e que cativa leitores de todas as idades até hoje: professores, alunos, pais, mães, seja pela nostalgia que eles sentem ou pela identificação mesmo. Esse foi um romance que me transformou em escritora, que me rendeu prêmios, que fez uma grande bilheteria de teatro (porque eu adaptei o texto para os palcos), que foi destaque de audiência (porque eu também adaptei para a TV), e que ainda faz sucesso no streaming (porque está disponível na Globoplay).

Tudo isso me dá uma vontade enorme de seguir trabalhando com esse público. Mas não deixo de me questionar e compartilho aqui a pergunta: por que ainda nos enxergam como menos importantes?

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Keka Reis é escritora, roteirista e dramaturga. Começou sua carreira na MTV dos anos 1990, onde escreveu, produziu e dirigiu programas de televisão de diferentes tipos e formatos. Atua como roteirista freelancer desde 2006: esteve em mais de vinte salas de roteiro; ganhou alguns editais audiovisuais (Proac, Fundo setorial); e trabalhou em quatro longas-metragens para o público infanto-juvenil. Publicou os livros O Dia Em Que A Minha Vida Mudou Por Causa De Um Chocolate Comprado Nas Ilhas Maldivas, e O Dia Em Que A Minha Vida Mudou Por Causa De Um Pneu Furado Em Santa Rita Do Passa Quatro – ambos finalistas do Prêmio Jabuti (2018 / 2019) e editados pelo grupo Companhia das Letras, selo Seguinte.

Além disso, Keka também trabalhou como chefe de salas de roteiro para streamings como Disney e Amazon Prime. Em 2021, escreveu o roteiro de Um Ano Inesquecível – Outono, longa metragem adaptado de um conto da Babi Dewet e produzido pela Panorâmica Filmes. Nesse mesmo ano, lançou seu terceiro livro Medley Ou Os Dias Em Que Aprendi A Voar, com os direitos de adaptação para o cinema vendidos para a produtora Panorâmica e que será produzido ainda esse ano. O livro foi finalista do Prêmio AELIJ (2022) na categoria infanto-juvenil. Em setembro de 2022, Keka lançou seu livro mais recente chamado Sozinha, um romance adolescente publicado pela editora Gutemberg, que foi vencedor do prêmio AELIJ (2023) de melhor texto infanto-juvenil e também finalista do Jabuti (2023). Em 2024 a série O Dia Em Que A Minha Vida Mudou, criada por ela e dirigida por Thais Medeiros e Pedro Jorge, estreou no canal Gloob.

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