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“Nada lá fora e aqui dentro”: Juliana Monteiro estreia com romance sobre luto e isolamento na pandemia

Publicado pela Editora Patuá, o romance se passa no início da pandemia de Covid-19, em 2020, e narra a jornada de Loretta, que lida com a perda súbita da mãe

Por Redação Bravo!
3 out 2024, 09h00
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 (Fernanda Ottoni/divulgação)
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Na próxima quarta-feira (2), a escritora e jornalista Juliana Monteiro lança seu primeiro romance, “Nada lá fora e aqui dentro“, pela Editora Patuá. Ambientada no início da pandemia de Covid-19, em 2020, a obra narra a jornada de Loretta, que lida com a perda súbita da mãe, Olivia, uma escritora premiada. O livro aborda temas como luto, memória e identidade, refletindo sobre as relações familiares e os impactos emocionais do isolamento durante a quarentena.

Radicada em Roma desde 2014, a escritora é coautora de “Ao Brasil, com amor“, lançado em parceria com o jornalista Jamil Chade. Agora, ela estreia com uma narrativa íntima, rica em referências literárias.

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“Nada lá fora e aqui dentro” de Juliana Monteiro (Editora Patuá/divulgação)

Leia a seguir um capítulo inédito da obra:

6 de junho de 2020

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Logo cedo Loretta escutou Stefano recusar um convite para qualquer coisa ao telefone e precipitou-se na direção do marido,
— O que é?
— Um aperitivo na casa de verão dos Garoffale hoje, às 5 da tarde.
— Vamos! Por que não?

Stefano não gostava da ideia de arriscar-se fora de casa, mesmo que esse tipo de reunião estivesse autorizado, mas Loretta insistiu. Seria ao ar livre, estariam de máscara, seria bom sair um pouco de casa. Então, ele cedeu. Ela foi para a cozinha, cortou uma circunferência no centro de dois pães de forma, manteiga na frigideira, tostou os pães, virou-os, um ovo no centro vazado de cada um, temperou, esperou os ovos cozinharem um pouco, virou os pães, um pouco de muzzarela. Um copo de espremuta, gelo, tão cedo e tão quente. Café. Serviu os filhos, ajudou-os a se vestir, penteou os cabelos deles, supervisionou a escovação dos dentes e estavam prontos para as tarefas escolares e a teleaula, passariam todo o dia ocupados com isso. Requentou o café, fumou, então, um cigarro.

Pensou na natureza da paz magoada que sentia. Uma pequena parte de si talvez se enciumasse por essa mulher na vida de Martin. Outra se entristecia por ser rebaixada de amante em potencial à amigona confidente, uma carapuça que recusava vestir. A maior parte daquele sentimento, no entanto, permanecia encoberto. Por que ele escolheu me contar isso? A suposição de que sua intenção fosse manejar o desejo dela, provocava uma pequena e consoladora eletricidade, significava que ele se ocupava dela de forma mais refletida. Talvez estivesse marcando, não seria a primeira vez, um limite na conversa entre eles. Deixava empenhado que ela não era a única, que se ocupava dela tanto quanto de outras mulheres ou menos. Talvez quisesse lhe provocar ciúme. “Ele vai ser cruel com você, Lori”. De qualquer forma, outra mulher era uma explicação para a indiferença de Martin e isso a acalmava. A tristeza vinha do reconhecimento de que a informação era um golpe na sua fantasia. Ela não queria perdê-la.

Combinou com a baby-sitter que cuidaria das crianças enquanto os dois estivessem na festa. Sem concentração para o trabalho, por pura impaciência, começou a se arrumar horas antes, preciso de um guarda-roupa novo, não gosto de nada disso, tudo é jovem ou sem graça demais, enrolou os cabelos em cachos largos, preciso cortar o cabelo, pareço uma testemunha de Jeová, maquiou-se com cuidado, lamentou as pequenas rugas em volta dos olhos, preciso dar um jeito nessa pálpebra, pensou em Malu isolada no quarto para não contaminar a família, pensou em Martim, agridoce, definitivamente não era ciúme, o que sentia era de outra ordem, da frustração, talvez, e um pouco de raiva por ele estragar seu texto, ele podia não me contar. Sentiu enjoo quando lembrou da carta que ngela virou assim que falou o nome dele. Terminou de se arrumar e aprovou a imagem no espelho.

No caminho, um fim de tarde belíssimo de início de verão romano, a música de Mina alta no carro, uma sensação de bem-estar tão rara. Olhou para Stefano, estava bonito, o marido, passou a mão em seus cabelos, ele sorriu sem jeito.

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O aperitivo era em uma villa impressionante, no alto de um monte, em Frascati, a trinta quilômetros de Roma. Loretta se sentia à vontade, tudo era agradável, a piscina brilhante de borda infinita para o horizonte da paisagem toscana mesmo que não tivessem saído do Lazio. Era um grande jardim e as pessoas podiam cumprir, com maior ou menor empenho, as regras do distanciamento social. Mesmo com a mascherina, estava
novamente em uma festa, eufórica como se fosse a primeira festa de sua vida.

Já era noite escura quando se deu conta de que estava feliz. Quando stai bene, renditi conto, era o dito italiano preferido de Olivia. Stefano conversava animado com uma mulher bonita, toda vestida de branco, ela combina com ele, parece inteligente, é elegante, talvez estejam flertando. Loretta também notara o interesse discreto de alguns homens, olhares que a vestiam, não lembrava de se sentir tão sedutora antes, sorria muito por trás da mascherina, bebia muito, cedia a todas as rodas, demorava o olhar nos olhos que a olhavam, poderia sair com três ou quatro convidados dessa noite. Mesmo quando solteira, costumava desviar os olhos das atenções que recebia como se o olhar do outro a pudesse despedaçar. Considerava todos os homens que não fossem o seu, intimidantes ou desagradáveis, se retraía com a mínima ousadia, cuidava para parecer séria. Agora se divertia. Sentir-se desejada era o núcleo irradiador da diversão. Pensou com horror no quanto sua participação na vida vinha sendo burocrática e aborrecida, mesmo que sorrisse, mesmo que dançasse.

Perto do balcão onde ficavam as bebidas, havia um grande espelho com uma bela moldura talhada em madeira patinada de branco. A cena em volta congelada, como nos filmes: só ela se movia. Olhou sua imagem refletida e viu Olivia com seu grande sorriso de festa. Quando teriam ficado parecidas? Depois que ela morreu, mas não elaborou essa impressão. Um homem mais velho, talvez da mesma idade de Stefano, veio falar com ela, disse exatamente isso, conhecera sua mãe, “és belíssima como ela”. Sorriu quando um outro ofereceu um brinde a distância. Stefano continuava a conversa com a senhora de branco, agora estavam sentados com mais duas pessoas em um pequeno gazebo, ele está flertando. De vez em quando voltava a olhar a própria imagem refletida para ter certeza de que era mesmo a mulher que desfrutava aquela noite. Para ter certeza de que existia naquele corpo, naquela festa, na vida que lhe parecia espetacular.

Foi sozinha para a pista de dança onde poucos convidados dançavam com a discrição dos italianos de seu círculo social. E, então, dançou de olhos fechados, à brasileira, com mãos odaliscas se contorcendo acima de sua cabeça, era bom dançar, ela sorria, por que paramos de dançar?, não dançava com tanto prazer desde que Germano resmungara qualquer coisa sobre a vulgaridade latino-americana ao ver sua mãe dançando quando ela tinha uns 9 anos. Cruzou seu olhar com o de Stefano e sorriu. Ele sorriu de volta, parecia admirado. Ela estava bêbada. Pensou em Martin e checou o celular. Ele não havia escrito, foda-se. Passou por sua consciência, mas apenas rapidamente, que não fazia diferença. O amor, a paixão, o tesão fosse lá o que fosse aquele sentimento, era dela, nem conheço esse cara, pensou que era capaz de endereçar o que sentia a qualquer um dos homens que a cortejavam naquela noite. Pensou que o amor era uma construção mental, o que existia, de fato, era o desejo e o desejo era dela.

 

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