Quando um idioma mata um país
No livro "Moçambique com z de zarolho", o autor Manuel Mutimucuio imagina uma distopia em que o inglês é adotado como língua oficial
O escritor moçambicano Manuel Mutimucuio decidiu refletir a realidade a partir do que ela mostrava de pior. Em seu livro “Moçambique com z de zarolho” (Dublinense, 2022), o autor imagina a vida de diversas pessoas de diferentes classes sociais virada do avesso após uma determinação parlamentar: adotar o inglês como idioma oficial em substituição ao português. Essa troca, que desconsidera que muitos na população nem sequer falam português, é vista como uma maneira de impulsionar a política e economia do país, elevando-o a um patamar mais alto de importância global.
No entanto, aqueles que não dominam o novo idioma são excluídos e submetidos a uma vida ainda mais precária, algo não tão distante da conjuntura atual. “Desconfio que a tendência será progressiva (ou, quiçá, regressiva) em Moçambique, tornando o inglês efetivamente a língua através da qual se veicula o conhecimento num país que afirma ter o português como sua língua oficial”, afirmou em conversa com a Bravo!.
Com esse tensionamento criativo de uma distopia não tão distante da realidade histórica de Moçambique, Manuel constrói uma história que se identifica facilmente com outras culturas que ainda lidam com os resquícios da violência da colonização e que continuam a lutar para reconstruir sua própria identidade. O Brasil, por que não, é uma delas. O impacto da literatura de Manuel, que tem uma carreira paralela à literatura como consultor internacional de gestão de recursos naturais, chegou ao Brasil. Nesta quinta (23), o romancista participará Flip 2023, na mesa “Digamos que seja a lua nova”, ao lado de Tatiana Pequeno, professora na Universidade Federal Fluminense.
Para a Bravo!, o autor falou sobre seu livro e sua vinda ao Brasil para participar da Festa Literária.
Poderia contar um pouco sobre si, sua trajetória pessoal e profissional?
Nasci na cidade de Maputo, mas passei os meus anos formativos na Beira (então segunda cidade moçambicana em termos de relevância político-administrativa), aonde fomos morar por força de obrigações profissionais dos meus pais. Este detalhe biográfico é, na verdade, bastante relevante para a construção da minha identidade. Ofereceu-me oportunidades tremendas, mas também condicionou aspectos identitários como, por exemplo, o que considero a minha primeira língua. Em termos profissionais, trabalho em desenvolvimento internacional, olhando para aspectos como degradação ambiental e pobreza.
Em que contexto você escreveu “Moçambique com z de zarolho”? O que o motivou a criar essa trama?
Tenho uma paixão especial pela educação e preocupa-me a deterioração progressiva do ensino público e a sua substituição pelo privado. Uma coisa que me pareceu curiosa é a estratificação das escolas privadas, umas para os pobres (onde se deve aprender menos que nas escolas públicas, mas, no seio do descrédito generalizado em relação ao ensino público, serve de paliativo) e outras para os vários níveis dos que têm mais condições financeiras. Há uns anos, no extremo do privilégio estavam as chamadas escolas internacionais, hoje, cada vez mais, se leciona em inglês nas escolas privadas convencionais.
Desconfio que a tendência será progressiva (ou, quiçá, regressiva), tornando o inglês efetivamente a língua através da qual se veicula o conhecimento num país que diz ter a língua portuguesa como a sua língua oficial. Tudo isso não seria, se calhar, dramático se significasse apenas o multilinguismo dos moçambicanos (fenômeno comum em países africanos ou naqueles cuja língua nacional é globalmente inexpressiva).
A narrativa pode parecer uma distopia, mas não é muito distinta da realidade que Moçambique enfrentou durante a colonização. Dentro dessa ficção, a escolha do inglês como idioma oficial também é uma maneira de confrontar um passado de submissão a Portugal?
O problema em Moçambique é que a expansão da língua portuguesa é construída às expensas da riqueza linguística do país (embora ainda relativamente pequeno, cresce o número de moçambicanos que, tendo o português como primeira língua, não fala fluentemente qualquer outra língua nacional das mais de uma vintena de línguas autóctones – até recentemente os únicos idiomas) e a emergência do inglês, se não mortal para a língua de Camões, parece representar o mesmo risco para as línguas africanas “originais”. É nesse contexto que escrevi o Moçambique com Z de Zarolho.
No livro você revela o quanto o português ainda é um idioma reservado a alguns grupos sociais. Poderia elaborar mais essa questão?
Embora a língua portuguesa seja a língua oficial e talvez unificadora dos moçambicanos, ela é só língua franca nas cidades e entre os alfabetizados, mas ironicamente a maioria da população é ainda rural e quase metade é considerada analfabeta.
Você acredita que uma ideia seria possível de ser levada adiante por parlamentares de seu país?
Acho que a anglicização está a acontecer de forma espontânea, catalisada pela globalização, mas também por fatores geográficos (Moçambique é circundado por ex-colônias inglesas com as quais têm fortes relações culturais), econômicos (Moçambique é muito dependente da ajuda externa que geralmente vem em inglês, mesmo quando os doadores não são anglófonos; o inglês é cada vez um requisito básico para aceder aos “bons” empregos). Embora haja um movimento político de resgate da relevância das línguas locais através da introdução e expansão do ensino bilíngue, não é inconcebível que estes mesmos políticos e particularmente os seus descendentes que são produtos da educação privada (dentro ou fora do país) em inglês de que falei, acelerem a transição dando-a legitimidade administrativa.
Olhando para a realidade atual de Moçambique, o quanto a herança do colonialismo e da assimilação continua presente?
Muito presente. Não me parece que haja um território que tenha sido ocupado e não guarde vestígios da mesma ocupação. Para começar, podemos falar da miscigenação racial, mas também cultural (em Moçambique é notável, por exemplo, na culinária e na indumentária). Existe depois a marca na língua que adotamos e moldamos nossa, o Direito (i.e., leis que quando não são simplesmente as do tempo colonial, são copiadas do Portugal contemporâneo). Podemos também falar da arquitetura das cidades, como edificamos as nossas casas, etc.
Como autor, que tipo de reflexão você espera que os leitores tirem de “Moçambique com Z de zarolho”?
Apesar do título nos remeter à Moçambique, penso que o tema é facilmente aplicável aos países que passaram pela experiência de dominação colonial, o que significa dizer a esmagadora maioria dos países e territórios do planeta. A título de brincadeira, com algumas adaptações aqui e acolá, o título poderia ser Brasil com Z de Zarolho.
Não quero dar spoilers com uma pergunta, mas gostaria de perguntar sobre a sua escolha para o destino de um dos personagens, o Hohlo, o trabalhador doméstico, pobre, e um daqueles que mais sofre com essa nova determinação do estado. O que você desejava mostrar a partir da jornada desse personagem?
Simplesmente a realidade. Os mais pobres são os mais expostos aos problemas da sociedade. Até os chamados desastres naturais castigam sobremaneira os desfavorecidos. E para agudizar a situação, a realidade não reserva muitos finais felizes aos que Franz Fanon chamou de “danados da terra”.
Já esteve no Brasil anteriormente?
Sim, estive anteriormente para um evento literário: a Filipoços (Feira Literária de Poços de Caldas, MG). Foi lá onde travei contacto com os responsáveis da minha editora no Brasil, a Dublinense.
Não posso deixar de perguntar sobre a Flip. Como está a sua expectativa para participar do evento?
Antes de mais nada, foi uma grande surpresa ter recebido o convite e quanto mais me informo sobre a FLIP, mais compreendo o privilégio. Vou com muita sede e enormes expectativas.
–