No pé do ouvido: a revolução do audiolivro na era dos streams
No último ano, o país ganhou duas novas plataformas produtoras de audiobooks, a Audible e a Supersônica, e formato se mostra tendência literária
Uma das grandes características do mundo contemporâneo é a constante disputa pelos nossos sentidos. A necessidade de nos envolvermos em multitarefas é outro aspecto que logo se segue. Nosso principal concorrente, afinal, parece ser o tempo. Não é coincidência, portanto, que haja um crescente interesse por plataformas que atendam a diferentes meios de percepção.
Durante a pandemia, foi a vez dos podcasts se expandirem. Com os conteúdos em áudio, podemos lavar louça, caminhar, malhar ou nos deslocar de um lugar para outro. No último ano, no Brasil, um mercado similar cresceu: os audiobooks (ou audiolivros). A ideia é adaptar o conteúdo escrito em uma leitura.
No Brasil, talvez o público de uma geração mais velha se lembre das antigas fitas cassetes que reproduziam histórias infanto-juvenis. Havia desde as fábulas clássicas até as versões mais modernas da Disney. Os audiolivros fazem algo parecido, mas numa escala muito maior. Apesar de novos no país, internacionalmente este é um mercado bilionário e já tem até categoria própria no Grammy Awards (Viola Davis, por exemplo, ganhou uma estatueta em 2023 com a versão narrada de sua biografia “Em busca de mim”).
Tal como a expansão do podcast, há diversos fatores que explicam essa alta demanda, como o avanço dos smartphones, uma vida hiperconectada e, sem ignorar, a necessidade constante de adquirir informações num intervalo mais curto.
Apenas em 2023, foram criadas versões brasileiras de duas plataformas produtoras de literatura em áudio: a Audible e a Supersônica Livros. Embora a primeira já exista desde 1997, foram necessários quase 30 anos para que encontrasse abertura para ingressar no mercado nacional. Em pouco mais de seis meses, entretanto, já produziram cerca de 1.700 audiolivros.
Criando acesso para o audiobook
A Supersônica nasceu a partir de outra necessidade, que por vezes é ignorada em quase todas as searas sociais. Uma das fundadoras da Supersônica, Maria Carvalhosa, é uma jovem editora que ficou cega aos 13 anos. Mesmo com pouca idade, ela já havia desenvolvido uma paixão imensa pela literatura. A nova condição, no entanto, limitou o seu acesso aos livros. E com o tempo, a falta de meios para acessá-los foi gerando um incômodo crescente. Decidiu, então, escrever a respeito.
No artigo publicado pela revista “Quatro, cinco, um”, ela discorre: “O primeiro audiolivro que realmente escutei foi Antígona. Era leitura obrigatória no primeiro ano do ensino médio. Não sabia como fazer para ler um texto dramatúrgico e não estava acostumada a ter que achar formas alternativas para chegar ao mesmo conteúdo que meus colegas.”
Após publicado, é difícil monitorar o alcance de um texto. Fato é que as palavras de Maria atingiram a pessoa certa. A cenógrafa e diretora teatral Daniela Thomas, que também apreciava audiolivros, leu o artigo. E isso foi suficiente para iniciar uma parceria que, após dois anos de pesquisa e muito estudo, resultou na Supersônica.
“Nós propomos ser uma editora de audiolivros com muito charme, para fazer audiolivros com cuidado, como objetos de desejo, tratando cada livro como um projeto artístico. Buscamos fazer cada obra com direção e com grandes atores e atrizes, adicionando uma camada de voz que influencie a leitura do livro da maneira mais positiva possível. Que seja outra forma de ler, mas uma forma incrível e espetacular de mergulhar na história”, resume Maria Carvalhosa em entrevista à Bravo!.
Quando Maria teve a oportunidade de escutar os primeiros livros em áudio, reconheceu algumas particularidades que dificultavam o acompanhamento, fosse o ritmo da leitura, os elementos sonoros que compunham o todo e a ausência de distinção entre a fala dos personagens. Faltava, aparentemente, uma padronização. Esse foi um dado importante na criação do seu projeto. Em algumas audições, ela percebeu: “A construção sonora não tem função narrativa clara, o ambiente criado é muito disperso. Parecem recursos acessórios que você tem que anular para ter contato direto com o texto.”
Mas nem toda experiência foi negativa. Ela encontrou leituras brilhantes, como a de Patti Smith, que interpreta seu livro “Só Garotos”, ou em “The Sandman”, de Neil Gaiman. Que serviram como grandes inspirações para a Supersônica.
“Um audiolivro acrescenta uma camada que, normalmente, ‘não existe’ entre o leitor e o texto. Então, sempre tivemos o cuidado de escolher vozes muito específicas e adequadas. Sabíamos que essa voz precisa engrandecer o livro, mas também não pode ultrapassar o limite, de forma que você não se conecte com o texto porque a voz está muito presente. Portanto, é sempre uma escolha artística”, complementa Mariana Beltrão, diretora-executiva do projeto.
A expectativa é que o avanço desses novos projetos impulsionem as editoras existentes a investirem no formato em áudio. “Temos notado, de um ano para cá, desde que lançamos, o quanto as editoras estão se movimentando no sentido de produzir audiolivros dos seus títulos. Existe um burburinho no mercado, de maneira geral, de que isso é algo que vai pegar, porque o brasileiro consome muito entretenimento em áudio. Audiolivro não é algo barato de se fazer; é demorado, custoso e tudo mais. Por isso, nunca foi uma prioridade dentro das editoras ‘tradicionais’, mas acho que está todo mundo nesse movimento”, observa Beltrão.
Apesar do momento próspero, ainda há uma grande escassez de livros contemporâneos em audiolivros. Uma das estratégias da editora brasileira foi trazer obras de autores modernos (principalmente autoras), como “As Pequenas Chances”, de Natalia Timerman, que em breve será publicado nesse formato, além de obras já conhecidas da vencedora do Nobel, Annie Ernaux, que ganharam voz pela atriz Isabel Teixeira.
“Acho que foi a vontade de disponibilizar audiolivros de qualidade no mercado, com títulos que provavelmente nunca seriam gravados. Obviamente, gravamos um Machado de Assis, mas também gravamos títulos que não seriam necessariamente escolhidos, que não são best-sellers. Por exemplo, acabamos de gravar um livro com a Alice Carvalho, ‘Coração Apertado’, que está fora de catálogo. Então, ele só vai existir em audiolivro aqui no Brasil”, comenta Maria Carvalhosa.
A experiência do livro lido
Um dos meios valorizados pela editora é a leitura realizada por algumas autoras brasileiras. Um exemplo é a obra “Também guardamos pedras aqui”, de Luiza Romão, vencedora do Prêmio Jabuti na categoria Poesia. Luiza, que também é atriz, valorizou ainda mais o livro com sua interpretação.
“O audiobook oferece uma leitura muito íntima. É uma relação entre quem fala, quem está enunciando essas palavras. Mais do que ler, acho que tem algo aí que é de vocalizar, que é descobrir a sonoridade, o ritmo, a respiração daquele texto impresso. No meu caso, é um fluxo de ida e volta, porque a vocalização é parte essencial da minha produção poética. Muitas vezes eu falo os poemas antes de escrevê-los, ou enquanto eu vou grafando na página, eu já estou enunciando”, afirma a escritora.
Luiza conta que uma parcela de suas poesias foram criadas primeiro em fala, num exercício que a atriz fazia de experimentação. Além disso, Luiza também é slammer; a oralidade, portanto, está no cerne de seu trabalho. “Isso também tem tudo a ver com minha trajetória, do fato de eu ser uma poeta que surgiu e foi formada, digamos assim, nas rodas de poesia, nos slams, nos saraus, então você tem, por exemplo, o poema da Androma, que ele tem já uma embocadura muito grande de manifesto, de uma roda de poesia, ele é um poema que ele está permeado por essa experiência compartilhada de falar o poema na rua, de falar o poema sobre os sons da cidade.”
Para a atriz-poeta, a experiência de leitura de seu próprio livro permitiu que ela encontrasse novas maneiras de interpretar as personagens de seus poemas, em um experimento cênico dirigido por Felipe Hirsch. Tivemos uma liberdade muito grande. “A Supersônica tem feito um trabalho que é não de ir para uma linha, de pensar uma neutralidade da voz, que é uma grande falácia, mas de pensa o audiobook como obra de arte. Tivemos poemas com delay, tem poemas com eco. Por exemplo, no poema de Andrômaca para Ajax, ela está bêbada. E está fazendo um acerto de contas com a Ajax. Eu queria fazer ele mais gritado, então eu falava ele para parede, de forma que o microfone captasse a reverberação do som. Coisas que numa linguagem mais convencional do audiobook, não pode”, compartilha a autora.
Futuro do livro convencional
Apesar do paralelo inicial com os podcasts, escutar um audiolivro é uma experiência bem distinta. Enquanto há uma facilidade maior em nos dividir em diferentes atividades quando escutamos um programa de variedades, por exemplo, escutar um livro ser lido exige um nível de atenção muito maior. Em um podcast, acompanhamos o ritmo de um pensamento, está mais próximo do discurso cotidiano, da linguagem falada. Já num audiolivro, a experiência é outra. A distração em um trecho pode prejudicar a compreensão em um momento posterior, o entendimento do percurso de uma personagem. Neste aspecto, ele dificilmente se torna um substituto para a leitura, mas muito mais como um complemento.
É assim que pensa Adriana Alcântara, diretora-geral da Audible. A aposta que a diretora faz é de que o audiobook estimulará ainda mais a leitura. Neste cenário, o Brasil ainda não é tido como um país de grandes leitores. Uma pesquisa realizada por Nielsen BookData e encomendada pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) demonstrou que 84% da população brasileira com mais de 18 anos não havia comprado nenhum livro nos últimos doze meses (a pesquisa foi publicada em dezembro de 2023).
“Gosto de pensar da seguinte maneira, se você está numa fase se alfabetizando e ganhando velocidade de leitura, uma coisa. Não está treinando os seus olhos a lerem mais rápido. Agora, tirando deste contexto, o que fica com a gente depois que lemos ou escutamos, é o aprendizado, o sonho, a imaginação, a história. Ela fica com você, tenha você escutado ou lido no livro tradicional. O audiobook vai fazer com que as pessoas leiam menos? Não, pelo contrário. Acho que ele é uma oportunidade para que as pessoas tenham contato com mais informação, mais conhecimento e mais sonhos e imaginação.”
Ao longo de sua trajetória, Adriana lecionou durante 14 anos nos cursos de graduação e pós em Marketing e Propaganda, na FAAP. Ela lamenta a falta desse recurso naquele período. “Diria que a minha vida teria sido muito mais fácil se eu tivesse esses livros em áudio e pudesse otimizar o meu tempo. Porque, se tem uma coisa que não falta na vida de quem mora em São Paulo, é trânsito. Eu saía da FAAP, no Pacaembu, e houve uma época em que eu morava perto do aeroporto de Congonhas. Imagino quanto tempo eu teria ganho se pudesse, enquanto meus olhos estavam ocupados, ler outra coisa. Acho que a facilidade e a praticidade são características marcantes dos audiobooks. Eles vêm para somar.”
Para a diretora, essa demanda que tem se expandido está relacionada a uma cultura que tornado ainda mais desafiadora a possibilidade de ter tempo para se dedicar a atividades prazerosas, como a leitura. “Temos a possibilidade de mais cultura, de mais informação, de tudo mais. É quase como se você multiplicasse, somasse algumas horas extras às 24 horas do dia.”
Em pouco tempo de operação, a Audible deu voz a alguns clássicos contemporâneos, como as sagas de Harry Potter e O Senhor dos Anéis, que estão entre as obras internacionais mais escutadas. Entre os títulos nacionais, destacam-se as obras de Carla Madeira, Ana Suy, Itamar Vieira Junior, Conceição Evaristo e Rita Lee.
Em 2023, a Audible encomendou um estudo ao grupo de pesquisas de mercado Kantar e descobriu o seguinte: A maioria dos brasileiros acredita que pode consumir mais livros por meio de audiolivros (95%) e muitos já ouviram conteúdo em áudio, como podcasts ou audiolivros (90%). Além disso, 51% dos brasileiros escutam histórias para relaxar, enquanto 27% o fazem durante tarefas domésticas e 27% enquanto cozinham.