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“O olhar dourado do abismo”, a paixão e o espanto que acompanham mulheres

Leia um trecho do único volume de contos de Olga Savary, publicado originalmente em 1997 e recém-lançado pela Editora Instante

Por Redação Bravo!
2 jun 2024, 10h00

Orinalmente publicado em 1997, Olhar Dourado do Abismo – contos de paixão e de espanto, da paraense Olga Savary, acaba de ganhar uma nova edição pela Instante. O livro de uma das maiores poetas brasileiras do século XX ganha prefácio de Joselia Aguiar e apresentação assinada por Rafael Domingos Oliveira.

“Na prosa de Olga Savary, assim como em sua poesia, o erotismo ocupa lugar central. Nos contos de O olhar dourado do abismo, as vozes narrativas evocam signos, utilizam-se de estereótipos e elaboram imagens que permeiam o universo erótico humano. Mas vai além. Por serem narrados a partirn de experiências femininas (as narradoras são sempre mulheres, e isso não é um acaso), esses signos, estereótipos e imagens passam a funcionar, na estrutura narrativa, como instrumentos de afirmação da autonomia feminina para o amor, o sexo e o desejo de viver. Em relação aos estereótipos, por exemplo, a leitora e o leitor perceberão que, em algumas circunstâncias, a narradora vai até o limite e, muitas vezes, até mesmo o ultrapassa”, argumenta Oliveira.

A publicação é composta por 19 enredos curtos de intensa voz poética onde o feminino ocupa lugar central das discussões como autonomia e rompimento de estigmas machistas, controle da própria sexualidade diante de uma maternidade opressora ou violência física e sexual dentro da estrutura patriarcal. Por meio do erotismo e referências à cultura pop, Savary brinca constantemente oregional e o erudito. Seus textos também nos presenteiam com figuras de linguagem inusitadas dos reinos animal, vegetal e mineral.

Filha única de pai russo e mãe paraense, Olga Savary nasceu em Belém, Pará, em 21 de maio de 1933. Construiu uma carreira sólida no jornalismo, ao mesmo tempo que se dedicava à poesia. Publicou sua primeira obra, Espelho provisório, em 1970, ganhando, em 1971, o Prêmio Jabuti na categoria Autor Revelação. A escritora dedicou mais de 70 anos à literatura: além da própria produção, que lhe rendeu mais de 30 prêmios entre os mais importantes do ramo no Brasil, também organizou inúmeras antologias e traduziu obras de Pablo Neruda, Mario Vargas Llosa e os grandes mestres do haicai. Faleceu em 14 de maio de 2020, em decorrência de complicações da Covid-19, em Teresópolis.

Leia abaixo, a íntegra do conto King Kong × Mona Lisa (o texto foi dedicado para Zélia e Ariano Suassuna)

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“A primeira coisa que dele teve foi a ameaça de sua morte. Uma ameaça vinda através de guinchos, gaitadas, pios, rugidos, uivos, assobios, risadas, toda a algaravia por ele usada para a sedução. Era possível um ser tão vital com essa obsessão pela morte?

Ela acha que o amou desde esse primeiro momento, embora não aceitando esse amor, esse seu sim à vida ao saber-lhe a ex-futura morte, e esse se dar tanto, o se dar todo, até demais. Era possível, tão exclusivista, amar um ser se dando assim, tão selvagem, tão espontâneo, se dando a todos: um ciúme a crucificar. Imaginou ser ele o mar para não sofrer. Por ser o mar de todos, e, assim, que outro jeito teria senão aceitar um tal requintado primitivo.

Um amor sem quase nada de particular, forte e violento, mas quase impessoal, algo de amplo, sem espaço ou tempo, como por um mito ou coisa arquetípica. Amor seria isso? Então era isso amar? Amor não era. Era é paixão. A paixão não lhe era estranha; antes, velha companheira. Mas a paixão com tal violência a assustava um pouco, como antes o medo da vida, ainda que não mais agora. E a paixão era um tanto trágica. Assim a aceitava: com esforço, com dor, mas também com gozo.

Caça ou caçador, quem era? Aparentemente era ele o caçador, com tantos meneios mais a sedução, a estranha 18 tensão de não poder passar tempo sem tocá-la. Era uma impossibilidade não tocá-la — dizia ele —, saber-lhe levemente a pele, a quentura e o morno da carne pressionada para mais tarde conhecer coisas mais rudes e tensas. Era ele o caçador. Mas quem lançou senão ela o que deflagrou tudo, uma distraída provocação sensual sobre as coxas de Pelé? Nem ela soube se teria sido intencional, mas falou assim, de como eram belas as coxas de Pelé, o que o intrigou. Como tão grande timidez deixava escapar tal insolência?

Não se teria sabido o esplêndido animal que era à falta deste esplêndido animal que via agora e que, à primeira vista, a ameaçava e se ameaçava para ela com a proximidade passada de sua morte. E essa morte não vista, apenas entrevista, já passada, era a grande ameaça para que ela conhecesse sua real vida e quem ela realmente era a partir do conhecimento dessa fera. King Kong — ela pensou —, vou chamá-lo assim, assim vou chamar a fera que me dará vida, como uma nova mãe-terra, a força animal até então desconhecida, a força primeira que, tomada nos dentes como o seu bocado primevo, a faria florescer e aceitar a vida com seus jogos, acertos e armadilhas. O perigo? É, era o perigo. Mas também a vida, a vida com suas espadas, seu cheiro acre e álacre, seu bafo feroz e comovente.

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De uma vez que lhe dissera o nome que secretamente lhe dava, houve o espanto: mas não combina com você, que é minha Mona Lisa. Ela sorriu sem dizer nada, pensando: mas é de você que falo. Como fazê-lo entender? E era preciso? Uma fera é uma fera — e pronto. Nada de fazê-lo entender o que ele é. King Kong. Claro que era uma insolência. Só que agora fazia parte do jogo. Era tão fácil perceber. Não tinha ele só a maciez da polpa, também possuía as unhas. Mais que isso: as garras. A boca não era só um fruto do mato, toda polpa, úmida e abrangente, toda língua. Era também dentes, as presas afiadas, esplêndidas mandíbulas.

Um ser amorável essa fera, mas também de aguda crueldade e um tanto sádico, seu corpo marcado a fogo (o da 19 paixão) como as reses que têm dono: dois K ardiam-lhe na anca. Poderia ela amar uma tal mistura de prazer e perigo? Mas era já impossível retroceder. Seduzida pela fera, já não podia reconquistar a si mesma. Agora que sabia seu corpo através do outro, seu espelho. Era a guerra, a paz dos abis- mos e da beira do desfiladeiro dos que nascem do furor da paixão, da lambida de sua língua rubra. King Kong: o êxtase e o horror. Rodeado de mandacarus, de cactos.”

 

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