Sobre a banalização da inconstitucionalidade
Precisamos tomar lição de tudo que nos aconteceu de verdade nos 380 anos de escravização para identificarmos e limparmos de nossa ideia de justiça
Me estarrece a camada de inconstitucionalidade que envolve nossa justiça no acontecimento diário da sociedade. Envolve os dias. Decide vidas. Acontece sob nossas barbas. Ao contrário da conhecida morosidade, que muitas vezes acaba — até sem querer — por ser conivente com o crime, a justiça não se descabela diante desta urgência. Deveria. Parece não se assustar com as emergências. Por exemplo: já faz tempo que, além de inútil e sem resultados positivos, a chamada guerra antidrogas, com suas desastrosas operações, mata um imenso contingente de nossa juventude negra — e mata mais do que morre gente de overdose. Vilipendia a dignidade das famílias. Uma violência do Estado contra o povo e que é financiada por este mesmo povo que, com impostos, remunera quem não o protege.
Normalizamos esta guerra onde quem ganha são os que lucram com a morte e o comércio bélico que a ela leva. Chocante.
Nos acostumamos a um certo não rigor constitucional, do ponto de vista dos costumes, de modo que dizemos e aceitamos, sem pensar mais atentamente, termos como “aquele militar é legalista”. Ora, o que isso quer dizer? Todo militar tem que ser legalista, ou então é inimigo da Democracia que jurou defender. É um bandido, um traidor explícito da Constituição pela qual tem o dever de zelar. Se não é legalista é o quê? Golpista?
Por que aceitamos sem protesto tais expressões verbais e as engendramos em nosso tecido discursivo com tamanha naturalidade que nem questionamos a gravidade do assunto e as autorizações de seu nefasto efeito? Como, por exemplo, o ex-presidente Bolsonaro que, quando era ainda parlamentar, cuspiu na cara da nação democrática ao votar pelo impeachment da Presidente Dilma — evocando o torturador da própria estadista, General Ustra —, e não sofreu nenhuma reprimenda institucional em um congresso herdeiro da integridade de um Ulisses Guimarães? Vergonha. Congresso este que teve também seus intelectuais torturados, perseguidos, assassinados e desaparecidos pela extrema direita. Isso tudo, sem nenhuma punição aos militares crápulas da história, sinistros autores do indecente Golpe de 1964. Eu tinha 6 anos na época. A Ditadura custou um atraso de mais de 20 anos ao nosso país e deixou sequelas profundas.
A maior penalidade que pode acontecer com o ser humano é a privação da sua liberdade. Só é menos importante do que estar vivo. Estar livre pode significar estar vivo. No entanto, para parte da sociedade é consenso que essas pessoas “criminosas”, ou fora da lei, devam viver em condições sub-humanas dentro dos cárceres. Como se fosse pouco o estado de encarceramento. Banalizamos coisas proibidas pela Constituição. Banalizamos o não acesso a bens básicos à população mais pobre, encarcerada ou não.
Ainda bem que temos um Presidente especial, dotado de grande inteligência política e com um senso de coletividade impressionantemente exemplar. É natural um gestor competente do Brasil, como ele, notar que há uma grande contradição entre comandar o G20 e continuar tendo 4 milhões de brasileiros sem banheiros. Perceber isso, o sintoma flagrante da insustentabilidade da cidadania, é uma qualidade do Lula.
Há leis que não precisam ser escritas para serem exercidas. São as famosas leis dos costumes, leis morais. Por exemplo, apesar do povo preto brasileiro, principalmente, frequentar as religiões de matriz africana, seus babalorixás e yalorixás não podem entrar nas cadeias. Do ponto de vista da regra institucional podem, mas do ponto de vista dos costumes não. Estão liberados padres, pastores; cultos podem ali nas cadeias serem realizados, mas não sei como é possível que se exerçam ritos do candomblé nos interiores das cadeias, sem sofrer punições por isso. E, ao mesmo tempo, todo mundo tem direito a exercer sua fé. É uma liberdade que a nossa democracia nos garante. E não está escrito na Constituição que a liberdade religiosa não acolhe presos e doentes. Pois também nos hospitais se costuma ver unções, bênçãos evangélicas e missas, mas raramente acontecem rituais afro-brasileiros.
Muitas estadias de privação de liberdade são envoltas em tortura. A aprovação aparentemente geral desta barbárie está muito ligada aos princípios punitivistas da Casa-Grande. A mesma gente que chamava de preguiçosa quem subia a ladeira íngreme daquela rua onde fica o Elevador Lacerda em Salvador — e que a chamou de Ladeira da Preguiça porque os escravizados subiam devagar por conta do excesso de peso das mercadorias levadas para os brancos nas costas deles —, é a mesma que aplaude os maus tratos na cadeia e que acha que todos os presos levam “vida boa”, com cama e comida, sem trabalhar. Se enganam. A vida nos cárceres é conhecida como o inferno na terra, e o que nos cabe afirmar aqui é: torturar é inconstitucional. Presos vivendo em superlotação, com ambientes infectos, comida de má qualidade e sendo torturados para confessar o crime não faz parte da pena, minha gente. A ideia básica era recuperá-los, refundá-los na cidadania.
Infelizmente, estamos perdendo uma guerra onde religiões e facções tem mais poder do que o Estado, e estamos perdendo a oportunidade de fazer dali um instituto educacional, profissionalizante, cheio de aulas e conteúdos, que muitos deles nunca receberam.
Meu deus, ali é criadouro de vingança, de maldade. Pessoas ficam esperando julgamento, às vezes mais tempo do que a pena que lhes será imposta. Então o sujeito fica detido cinco anos esperando julgamento, e posteriormente é decidido que sua pena é de três anos. Quem pagará pelos dois anos que lhe foram roubados, cumpridos injustamente? Aceitamos isso? Até quando? Até quando a injustiça não atingir a gente ou nossos parentes.
Qual saída que o cidadão tem?
Meu pai, um dedicado advogado, seguro de que haveria uma nova abolição através do conhecimento, investiu nos filhos como intelectuais, autores de pensamentos, estudiosos, criadores, de modo que tivessem familiaridade com os conceitos da lei, com os princípios do bem estar coletivo. Esse assunto sempre esteve no meu radar e agora dei de olhar para essa nossa incoerência que grita nos meus olhos, me espanta, e por isso esse texto. Para alertar.
Claro que quem fala aqui é uma leiga, não sou uma pessoa letrada em conhecimento jurídico, mas são impressões de uma cidadã que investiga a palavra e gosta dela. Uma cidadã artista que acredita na democracia como sistema ideal para que uma arte possa cumprir seus desígnios, educacionais inclusive. O fato é que se olharmos para a justiça e a população ao mesmo tempo, não as encontramos juntas. A população pobre, grande maioria brasileira, não acredita na eficiência da justiça e não confia que, mesmo havendo defensor público, justiça seja uma coisa feita para ela. Os dispositivos da lei são interpretados para fazer a corda quebrar para o lado dos mais fracos e dos mais pobres, quando na verdade essa lei foi criada para proteger esse cidadão também.
Dr. Lino Gomes, meu pai, que defendeu de graça os pobres, dizia: “Todo mundo tem direito ao direito”. Só que isso não é senso comum entre os desfavorecidos. Alguém excluído que é agredido pela polícia tem medo de denunciar. Se não tiver um cobertor cidadânico grossinho o suficiente, uma camada de cidadania que inclua a justiça protegendo este indivíduo do frio da calúnia, do frio da suspeição racista, homofóbica, transfóbica e outras desumanidades, ele não tem estofo para buscar defesa.
O próprio conceito do código penal de Excludente de Ilicitude vem sendo usado para justificar o racismo policial e a matança de nossa população preta jovem. Aí vemos como é senso comum, para a classe média e a burguesia em especial, uma certa ideia de merecimento desse homicídio que extermina um jovem negro a cada 20 minutos (segundo o Atlas da Violência), mesmo não havendo pena de morte no Brasil. Os olhos que nos condenam veem no menino negro um potencial agressor, um mal elemento, uma “semente do mal” até, já ouvi dizer.
Indiferente ao corpo morto, pobre e negro do adolescente, há sempre um rumor de vozes que nem imaginam o que aconteceu ali, proferindo a sentença: “Mas eu soube que ele estava envolvido”. Envolvido com o tráfico, envolvido com o mal feito. É como se isso justificasse o assassinato do rapaz, do brasileirinho.
Uma polícia paulistana que afirma publicamente, e com tranquilidade, que a ronda feita nos Jardins não é a mesma no Capão Redondo, também não tem dificuldade em concluir que o Excludente de Ilicitude é mais usado na periferia do que dentro dos Jardins. Tudo lambuzado de inconstitucionalidade.
Todos nós conhecemos casos de corrupção, muitos casos de corrupção. Não há brasileiro que não tenha sabedoria disso. Pensemos agora meu querido leitor e leitora, quantos desses corruptos são negros? E quantos são brancos? Certamente sua conclusão será a de que a maioria corrupta é branca. E é verdade. Não sou advinha, não é uma hipótese. Está aí para todo mundo ver. Dos quase quarenta golpistas revelados pela Polícia Federal agorinha, não lembro de ter visto sequer um preto entre os indiciados. No entanto, olhamos para as prisões, e a semelhança com a senzala é inevitável. A maioria dos encarcerados é negra. A maioria avassaladora. Há algo errado aí, com tanto ladrão branco solto. Ostensivamente livre.
Há também uma ligação muito desonesta, promíscua, contaminada e indecente do dinheiro com a Justiça. Não é possível que alguém a quem se confiou a guarda, o cuidado, a responsabilidade de uma criança de quatro anos, como foi o caso do menino Miguel, filho de Mirtes Renata, que a responsável pela morte dessa criança esteja em liberdade porque pagou fiança. Quem tem dindin pode usar todos os recursos para não ser preso e, quem não tem recursos, recebe um recado da justiça: “Eu não sou para você. Eu enxergo sim, é mentira que eu sou cega… E eu tô de olho é no rico!”.
Para mim, a ideia da justiça cega é metáfora de que ela não discrimina ninguém, de que é imparcial, para que ela faça a justiça para todos indiscriminadamente. Porém ela grita em nossa cara: “Não adianta, eu tenho predileção pelos ricos!”. É esse o recado da fiança. Ou, podemos dizer de outra forma, a fiança é que nos diz: “Você é pobre, então você está perdido. Já era! Fuck you!” Porque se você tivesse dinheiro, não estaria preso! Seu pobre!”.
Um escárnio. Acho que não deveria haver fiança para homicídios, crimes contra a sociedade, crimes de corrupção. Roubar dinheiro de merenda infantil? A fiança não garante o direito igual a todos, e isso fere a Constituição.
Nós, progressistas, temos algumas vitórias, mas estamos vivendo um parlamento que chega a nos dar saudade do tempo do baixo clero, quando dizíamos: “Ali há uma turminha que não é democrática, que só quer saber do dinheiro dela, de poder”. Mas agora me parece que isso virou endêmico, metástase, tomou conta do nosso parlamento, do nosso Congresso, de tal maneira que a Comissão de Constituição e Justiça (que ironia essas palavras aqui) aprovou na Câmara o projeto de lei (que certamente nosso STF não vai deixar vigorar) que obriga uma menina estuprada a seguir com a gravidez fruto de uma agressão dessa ordem. Detalhe, tais defensores, tais eleitores, tais aprovadores dessas leis são os que bradam o nome de Deus enquanto traem o “Vinde a mim as criancinhas”, enquanto ignoram solenemente o “Não matarás!”. Importa a vida “que Deus deu”, dizem eles, mas não a vida dessa menina violentada? E, além disso, esse projeto incentiva o agressor, o estuprador, a fazer seu serviço traumático e irreparável no enredo de uma menina, e não ser punido por isso.
Quando uma senhora, cafetina adulta, alicia uma menina de 12 anos para a prostituição, é papel da justiça prender e punir a aliciadora, a manipuladora da mente da criança, e entregar essa menor a sua família ou ao conselho tutelar. E nesse caso isso é feito, protege-se a vítima e pune-se a cafetina.
Porém, no caso de um menino de 12 anos que recebe moto, revólver e mil reais por semana de um traficante para trabalhar na boca, a justiça sempre acaba prendendo o menino, vejam só. Revitimiza-se quem deveria ser protegido. Quem o aliciou geralmente escapa. O Estado está sendo inconstitucional aí.
Talvez devêssemos ser educados em relação a esse livro da Constituição que nos rege, datado de 1988, e que, apesar de merecer uma atualização num Brasil que mudou muito nas últimas décadas, ainda pretende dar suporte a uma sociedade justa de verdade. E pode fazê-lo.
Nos salvaram a corajosa obstinação de Alexandre de Moraes e outro ministros do Supremo Federal nesta temporada de ataques da extrema direita. Bonito ver os limites constitucionais que nos amparam, mas pode acabar ficando muito caro para todos se não punirmos os que querem rasgar a Constituição toda. No entanto, vale refletir sobre a nossa consciência do que é ser constitucional ou não, na prática da vida civil brasileira.
Na minha modesta opinião, precisamos tomar lição de tudo que nos aconteceu de verdade nos 380 anos de escravização para identificarmos e limparmos nossa ideia de justiça, da banalização das maldades, das torturas.
Por muitos anos a branca Casa-Grande se manteve no poder à base de dinheiro do tráfico humano e chibatadas mortais. Os grandes mercadores se acostumaram a chamar a morte de alguns lotes de escravizados nos navios tumbeiros, de “perda de carga”. Tudo isso, meus amores, não traz boas notícias, mas sem falar disso é que não vamos chegar mesmo a lugar nenhum melhor do que este.
Nenhuma sociedade fica boa de cabeça tendo passado por isso, sem ter que revisitar tais danos. Sou signatária da democracia e acho que uma democracia que tem um sistema de justiça tão excludente e tão desigual guarda no próprio bojo o seu veneno.
Elisa Lucinda. 29 de novembro negro. 2024.